terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Novo endereço dos textos do "Especismo Não!"

Devido a problemas com o servidor, desativei o endereço www.especismonao.net

Os textos que se encontravam no blog "Especismo Não!" podem ser todos encontrados agora no seguinte endereço:

http://www.olharanimal.org/pensata-animal/autores/luciano-carlos-cunha

Também estão disponíveis para download os meus artigos postados na minha página no academia.edu:

https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha

segunda-feira, 17 de março de 2014

Acabamos de lançar o blog Especismo Não!



O objetivo do blog é apresentar uma análise criteriosa dos argumentos que aparecem com frequência em debates, artigos, conversas ou pensamentos da própria pessoa quando o assunto são nossas decisões que atingem os animais não humanos, seja lá que conclusão o argumento em questão esteja a defender. Nossa meta a longo prazo é que a grande maioria dos argumentos em torno dessa questão esteja discutido no site. O blog será atualizado diariamente, sempre a cada dia com um a discussão de um argumento específico.

No momento, já temos 32 artigos no blog.

acesse: http://www.olharanimal.org/pensata-animal/autores/luciano-carlos-cunha

sábado, 19 de outubro de 2013

O DEBATE SOBRE A MORALIDADE DA EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL: O QUE É RELEVANTE E O QUE NÃO É

A maioria das discussões em torno dos experimentos feitos com animais não humanos têm girado em torno da necessidade ou não necessidade dos mesmos. De um lado, os que usam os animais defendem ser necessário o uso em pelo menos alguns experimentos. Do outro, alguns ativistas respondem apontando os riscos de se extrapolar dados de uma espécie para outra e outros problemas técnicos com a experimentação. Eu acredito que o debate se centrar nessa questão é um resultado infeliz, pois dá a entender que ambos os lados do debate assumem a seguinte premissa: “se um determinado meio é necessário para se chegar a um determinado fim, então esse fim e esse meio estão automaticamente justificados”.

Quando percebemos esse ponto, vemos que essa premissa é altamente questionável. Vamos supor que o objetivo de pelo menos alguns experimentos seja o de curar doenças. Esse fim é justificável, até louvável. Mas, segue daí que qualquer meio para se chegar a um fim louvável é automaticamente justificado, desde que seja necessário para se chegar nesse fim? A maioria de nós, incluindo os que experimentam em animais, não concordaria com essa conclusão. Imagine que, para se curar uma determinada doença fosse necessário assassinar e torturar algumas crianças. A maioria de nós defenderia que é um erro fazer isso, e que os cientistas deveriam buscar descobrir outro meio de procurar curar a doença. Assim sendo, a discussão não deveria girar em torno da necessidade ou não da experimentação animal, já que podem existir razões que mostrem que, mesmo sendo necessária em alguns casos, ainda assim ela não se justifica (discuto melhor essas razões abaixo).

O que precisa ficar claro é que o ponto central do debate não deve ser o que está sendo até agora. A questão central é que os animais que são utilizados o são porque não pertencem à espécie humana. Quando se desfavorece alguém por não pertencer a determinada espécie, o nome disso é especismo (da mesma maneira que desfavorecer alguém que não pertence a determinada raça chama-se racismo). Então, o ponto central deveria ser perguntar por que se acredita que é correto fazer experimentos em animais não humanos (ou usar para outros fins, como comer) mas não é correto usar seres humanos. Para explorar melhor esse ponto, vou sugerir um experimento mental: suponha que ficasse provado que experimentar em humanos é tecnicamente mais eficaz e, além disso, necessário para se curar uma determinada doença. O que poderia explicar o erro de se usar humanos nesse caso e que ao mesmo tempo explique que não é um erro utilizar animais não humanos?

O que poderia justificar o especismo? Para a maioria, a diferença parece óbvia: “como alguém não poderia perceber a diferença moralmente relevante entre humanos e animais de outras espécies?”. Mas, e que diferença seria essa? Não pode ser o mero fato de uns serem humanos e outros não, porque isso não explica nada. Não pode ser o fato de humanos serem mais racionais do que outros animais, porque nem todos os humanos são racionais (recém nascidos, crianças muito pequenas, idosos senis, portadores de determinadas doenças mentais, comatosos: existem animais não humanos muito mais racionais do que estes humanos). Aliás, em se tratando de humanos não racionais, ao invés de os utilizarmos como comida ou modelo de testes, damos atenção primordial aos seus cuidados, já que são mais vulneráveis e mais dependentes de nós. Então, apontar que os não humanos são menos racionais só mostraria que os cuidados sobre eles deveriam ser muito maiores; tão grandes quanto aquele que geralmente temos para com um bebê.

E quanto a apontar que na natureza o mais forte subjulga o mais fraco; os animais comem uns aos outros; e cada animal favorece aos da sua própria espécie? Teria poder para justificar o especismo? Não, porque isso seria assumir a seguinte premissa: “se algo é natural, então é justificado”. O problema com essa premissa aparece logo que perguntamos o que se quer dizer com o termo “natural”. No sentido que é empregue nesse argumento, quer dizer que é algo que acontece sem intervenção deliberada humana, ou que segue os processos evolutivos inconscientes. Mas, então, por que isso seria relevante moralmente? No que apontar que algo simplesmente acontece sem intervenção humana ou planejamento racional seria relevante para nos dar razões para agir dessa ou daquela forma? Não parece contraditório buscar razões para agir justamente em processos que, desde Darwin, sabemos que não são processos racionais? É curioso que alguns cientistas, muitos dos quais aceitam a teoria da evolução, baseiem-se nessa premissa muito problemática. Uma coisa é “como as coisas são?”; outra é “como as coisas deveriam ser?”. Dizer que algo é da maneira que é não dá razão alguma para concluirmos que, então, esse algo é automaticamente bom ou correto.

A falha em todas essas tentativas de se justificar o especismo está em não se perceber que a principal razão para se respeitar seres humanos não se dá por estes serem humanos, nem por serem racionais, e nem porque na natureza cada animal privilegia os da sua espécie, e sim, simplesmente porque seres humanos são capazes de sofrer e desfrutar. Essa razão muito simples é o que melhor explica o dever de se respeitar alguém. Alguém precisa de respeito porque valoriza estar em um determinado estado e não em outro e é vulnerável. Para isso, é preciso ser senciente (capaz de sofrer e desfrutar). Todo ser senciente prefere desfrutar de experiências mentais positivas ao invés de negativas. Todos nós reconhecemos que sofrer e/ou ser privado de desfrutar de algo bom, é ser prejudicado. Ser capaz de sofrimento/desfrute é uma razão suficiente para se respeitar alguém, pois então esse alguém pode ser prejudicado ou beneficiado de acordo com o que decidirmos. Para haver possibilidade de alguém ser prejudicado, basta ser senciente, independentemente de espécie, de grau de racionalidade e do que acontece na natureza. A mesma razão que explica por que devemos respeitar humanos explica ao mesmo tempo porque devemos respeitar qualquer ser capaz de sentir, independentemente de espécie.

Outro resultado infeliz do debate é que por vezes centra-se a discussão em se saber se houve ou não maus tratos durante o experimento. O que isso parece indicar é que, então, ambos os lados do debate estão a aceitar a seguinte premissa: “se não houver maus tratos durante um experimento, então, ele é automaticamente justificado”. Essa premissa só faria sentido se sofrer fosse a única maneira de se prejudicar alguém. Mas, existe pelo menos outra maneira bem conhecida de se prejudicar alguém: assassiná-lo, quando ainda lhe resta algo de bom a ser desfrutado.

Alguém poderia objetar, dizendo que é isso que explica a diferença entre humanos e não humanos quanto ao erro em matar: os primeiros fazem planos para o futuro e entendem o que é a morte; os segundos não. Essa objeção tem dois erros. O primeiro erro, menor, é que existem humanos (bebês, idosos senis, portadores de determinadas doenças mentais, etc.) que também não entendem o que é a morte e também não fazem planos para o futuro. O segundo erro, maior, é confundir “ser prejudicado” com “saber que será prejudicado”. A morte, quando é um dano, é um dano não devido ao que ela faz estar presente, mas devido ao que ela priva. Ela priva alguém de desfrutar sensações boas no futuro. E isso é assim independentemente desse alguém saber o que é a morte, ter feito planos para o futuro, ou sofrer antes da morte. Assim sendo, todos os seres com possibilidade de desfrutarem algo de bom no futuro são danados ao morrer. Então, não é tão importante discutir se houveram ou não maus-tratos durante os experimentos, haja vista que existem fortes razões para se objetar aos experimentos mesmo quando não existem maus-tratos, já que os animais, de qualquer maneira, são mortos depois.

Por fim, um comentário sobre outro argumento muito freqüente nos debates. Os defensores da experimentação acusam os defensores dos animais de hipocrisia por se beneficiarem da exploração animal (usarem remédios, comer comida de origem animal, andar de ônibus, por exemplo). Disso, eles concluem que, então, a exploração animal está justificada. O problema é que essa conclusão não seguiria da premissa nem que a premissa fosse verdadeira. É verdade, a acusação de hipocrisia poderia ser verdadeira em alguns casos (por exemplo, parar de comer comida de origem animal é algo que se pode fazer facilmente). Contudo, outras coisas são muito mais difíceis de se fazer, haja vista que absolutamente quase tudo em nossa sociedade é feito à base de exploração animal.

Mas, a questão não é essa. Mesmo que todas as acusações de hipocrisia fossem verdadeiras, será que segue daí que, então, a prática que o suposto “hipócrita” está a criticar tem boas razões a seu favor? Obviamente que não. Uma questão é “qual o caráter do interlocutor?”, outra é “qual a coisa certa a se fazer?”. Imagine, por exemplo, que o tratamento de água fosse feito a base de trabalho infantil. Ninguém pode deixar de tomar água. Será que segue daí que então não existem razões contra o trabalho infantil e que alguém deve ser proibido de objetá-lo? E, supondo que o trabalho infantil fosse utilizado em um produto não necessário, como café. Supondo que quem estivesse a protestar tomasse café e que a acusação de hipocrisia fizesse sentido. Segue daí que não existem boas razões para se abolir o trabalho infantil? Obviamente que não. O interlocutor, no nosso exemplo fictício, apesar de hipócrita, estaria a fazer a coisa certa ao criticar a exploração. Acusar os defensores dos animais de hipocrisia com vistas a concluir que a experimentação animal se justifica é nada mais do que um caso da famosa falácia ad hominem. Aliás, parece que o fato de quase tudo em nossa sociedade ser feito à base de exploração animal é mais uma razão para aboli-la, pois então mostra que sofrimento e morte estão sendo impostos a um número gigante de seres sencientes.

Essas questões deveriam ser o ponto central do debate. As razões acima são as razões mais básicas para se rejeitar o especismo, e, com ele todas as práticas exploratórias sobre os não humanos, incluindo a experimentação animal. É a partir daí que o debate deveria se desenvolver. E é por não se estar discutindo os argumentos principais e se estar a perder tempo com argumentos que já assumem de antemão que o especismo está justificado que nosso entendimento das questões éticas que envolvem animais não humanos está, infelizmente, em um nível dos mais rasos.

Luciano Carlos Cunha (Mestre em Ética e Filosofia Política pela UFSC)

sábado, 4 de maio de 2013

A favor dos animais, contra a natureza

No link abaixo, se encontra um artigo de minha autoria, sobre o mesmo tema já tratado no artigo "Sobre Danos Naturais": a importância moral dos males que os animais não humanos padecem que não tem origem no seu uso enquanto recursos, mas sim, de fontes naturais (doenças, inanição, predação, deformidades, etc.). No artigo, intitulado "O Princípio da Beneficência e os Animais Não Humanos: Uma Discussão Sobre o Problema da Predação e Outros Danos Naturais", apresento o argumento central a favor de se considerar moralmente esses tipos de danos, e defendo que o grau de prioridade que um dano deveria receber em ser minimizado não deveria depender de qual sua fonte de origem, mas sim, do quanto afeta suas vítimas. No artigo também respondo a algumas das objeções comuns à perspectiva que defendo, objeções essas que geralmente são centradas na crença de que aquilo que é natural é sagrado, idéia que apresento razões para rejeitar.

É de se esperar, dada a veneração pelos processos naturais amplamente aceita pela maioria (pelo menos quando as vítimas são animais não humanos) e o grau altíssimo de especismo e desconsideração pelos animais não humanos presentes no pensamento da maioria das pessoas, que tal tema seja um tabu. Contudo, um fato curioso é que o lugar onde esse tabu parece ser maior ainda é exatamente dentro do movimento de direitos animais. Os que se intitulam defensores dos direitos animais não exitam em defender que devemos deixar a natureza seguir o seu curso e que é uma blasfêmia socorrer um animal silvestre que está a padecer de inanição, por exemplo. Deveres de beneficência, defendem eles,dizem respeito apenas a males que nós já fizemos no passado. Obviamente, eles não pensam assim quando as vítimas de danos naturais são seres humanos (nem que para alguns, isso se restrinja a eles próprios, como no caso dos egoístas), revelando especismo. Mas, enfim, existirão boas razões para se pensar que os deveres de beneficência com relação a animais não humanos se restrigiriam a casos onde o dano é fruto da exploração feita no passado? Penso que não, e o artigo no link abaixo, espero, ajudará a explicar por que os danos naturais são tão importantes moralmente quanto os danos causados pela exploração.

Link para o artigo: http://minerva.usc.es/bitstream/10347/7399/1/101-133.pdf

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O Consequencialismo e a Deontologia na Ética Animal

Deixo o link para download (gentilmente postado nos sites www.masalladelaespecie.wordpress.com e www.criticanarede.com) da minha dissertação de mestrado: O Consequencialismo e a Deontologia na Ética Animal: Uma Análise Crítica Comparativa das Perspectivas de Peter Singer, Steve Sapontzis, Tom Regan e Gary Francione.

Resumo da dissertação:

A presente dissertação tem como objetivo comparar criticamente duas abordagens distintas, uma centrada no consequencialismo e outra centrada na deontologia, sobre o problema do estatuto moral dos animais não humanos. Inicialmente, são apresentadas as críticas de Gary Francione e Tom Regan, que propõem uma abordagem deontológica centrada na idéia de direitos, à proposta de Peter Singer, consequencialista, centrada no utilitarismo das preferências. A proposta de Singer é então apresentada, e a plausibilidade das críticas é avaliada. Por fim, é apresentada a análise de Steve Sapontzis, que tenta ver se é possível juntar, num único sistema de raciocínio moral, as principais preocupações tanto das formas consequencialistas quanto deontológicas da ética animal.

Abraços!

Luciano Carlos Cunha.

Links para download:

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sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

IGUALDADE SENCIENTE - Parte 3 (final)

VERDADE, RAZÃO, JUSTIFICATIVA EM ÉTICA E OS SERES SENCIENTES

Luciano Carlos Cunha

Parte 3 - Por que rejeitar o egoísmo; por que isso implica no dever de igual consideração para os seres sencientes e algumas implicações práticas.

Comecemos por lembrar a objeção cética que aponta para a regressão de princípios que visam sustentar uma conclusão moral: “uma razão sustenta uma conclusão, mas, se formos perguntar o que sustenta essa razão, e o que sustenta a outra mais básica que a dá sustentação, uma hora chegaremos a um sentimento que não está aberto à avaliação racional”. Por esse motivo, conclui o cético, alguém que não se sente motivado a levar os outros em consideração está justificado a ser um egoísta. O que quero apontar primeiramente é que, quando se trata do nosso próprio bem, se dá a mesma coisa, em termos de regressão de razões até chegarmos em um motivo que não pode ser justificado com base em outro. Por exemplo, supondo que alguém me pergunte por que eu coloquei o despertador para tocar às seis horas, e eu responda que era porque precisava, antes de ir trabalhar, passar numa farmácia. Se me perguntassem por que eu queria ir na farmácia, eu responderia que queria comprar um remédio. Se me perguntassem por que eu queria comprar um remédio, eu responderia que era para ficar curado de uma doença. Se me perguntassem por que eu queria ficar curado de uma doença, eu responderia que não queria sofrer e queria desfrutar felicidade. Se me perguntassem por que eu não queria sofrer e por que queria desfrutar felicidade, a resposta seria que sofrer é algo ruim e desfrutar felicidade é algo bom. Nesse ponto, a justificação teria que terminar. O sofrimento ser algo ruim e a felicidade ser algo bom não são justificados com base em outra coisa; são intrinsecamente (explicarei essa noção mais detalhadamente adiante) ruim e bom, respectivamente. Note que, ao chegar nesse ponto inicial de justificação, há uma sutil mas importante modificação na forma da justificação: o apelo não se dá mais ao “por que eu quero x”, mas sim, a algo que  é ruim ou é bom, e que é por isso, (e não o contrário) que eu quero evitar ou buscar certas coisas. Quero evitar o sofrimento por que ele é ruim (isso é um julgamento de valor, não uma mera descrição de um fato); quero buscar o prazer porque ele é bom (isso é um julgamento de valor, não uma mera descrição de um fato), e não, que o sofrimento e o prazer se tornam, respectivamente, ruins e bons, porque eu quero evitá-lo e buscá-lo, respectivamente. Isso seria deixar tudo ao contrário. Por isso afirmei anteriormente que o desejo surge depois de um julgamento de valor.

Então, quando se trata de buscarmos nosso próprio bem individualmente também temos de nos basear num princípio baseado em um valor (o de que o sofrimento é intrinsecamente ruim e o prazer intrinsecamente bom) que não pode ser justificado com base em outro. Contudo, note um detalhe importante: ele não pode ser justificado com base em outro, mas isso não indica que aceitá-lo ou não seja uma questão de gosto pessoal e que escolhê-lo ou não seja uma questão não aberta à avaliação racional. Por exemplo, supondo que alguém fizesse exatamente o contrário: que buscasse tudo aquilo que lhe causa sofrimento e evitasse tudo aquilo que lhe causa felicidade (por pensar que o sofrimento é bom e a felicidade é ruim): ele deceparia seus próprios membros e atearia fogo no próprio corpo, por exemplo. Faria todo sentido dizer que alguém assim é um tolo, um irracional (e a irracionalidade aqui consiste em não perceber que é o sofrimento que é ruim e a felicidade que é boa, e não o contrário). Nesse ponto, poderia surgir uma objeção: mas, às vezes é racional escolher passar por um sofrimento, e às vezes é irracional buscar determinada satisfação. Por exemplo, supondo que eu tivesse que fazer uma operação extremamente dolorida, mas que fosse a única forma de salvar minha vida: após a dolorida recuperação, eu ainda teria muito a desfrutar pela frente. Seria racional escolher esse sofrimento. E, por exemplo, supondo que sei que, apesar do meu gosto por determinada comida, ela me causa problemas no fígado, seria irracional se eu buscasse a satisfação de comê-la (isso porque me impediria o desfrute no futuro e causaria sofrimento). Embora o que esses exemplos apontem esteja correto (no primeiro caso, é racional passar por tal sofrimento, e no segundo, é irracional buscar tal satisfação), eles não provam que o sofrimento possa ser algo bom em si e nem que a felicidade possa ser algo ruim em si. Pelo contrário, esses argumentos só fazem sentido se o sofrimento for algo ruim e a felicidade for algo bom. Note que o que se quer, nos dois exemplos, é evitar um sofrimento ainda maior e proporcionar oportunidade para a felicidade. Então, esses exemplos partem de um quadro geral de sofrimento e felicidade na vida de um indivíduo, e afirmam, corretamente, que não vale a pena provocar um sofrimento maior e impedir desfrute maior por causa de um desfrute pequeno, e que vale a pena passar um sofrimento menor com vistas a evitar o maior e a proporcionar desfrute. Tais exemplos são formas do que chamamos de raciocínio prudencial (em oposição ao raciocínio que visa apenas fomentar interesses momentâneos, sem se preocupar com o quadro geral de sofrimento/felicidade da própria pessoa ao longo do tempo).

Foi por esse motivo que caracterizei o sofrimento como intrinsecamente ruim e a felicidade como intrinsecamente boa. O que eu quis dizer é que o sofrimento não pode ser bom nele mesmo; a única maneira do sofrimento ser bom (em termos de raciocínio sobre o bem individual) é que seja um instrumento para a felicidade (ou alguma outra coisa que também tenha valor intrínseco positivo) ou para impedir um sofrimento ainda maior. A felicidade não pode ser ruim nela mesma; a única maneira dela ser ruim (em termos de raciocínio sobre o bem individual) é que seja um instrumento que impeça uma felicidade maior ou que cause sofrimento maior (ou que cause alguma outra coisa que tenha valor intrínseco negativo). Assim, em termos de raciocínio sobre o bem individual (sem levar em conta o impacto sobre outros indivíduos), o sofrimento só pode ser instrumentalmente bom, não intrinsecamente bom; e a felicidade só pode ser instrumentalmente ruim; e não, intrinsecamente ruim. Note que essas constatações apontam apenas para o valor intrínseco do sofrimento e da felicidade, mas não assumem que essas são as únicas coisas possíveis de serem boas ou ruins em si próprias. A lista fica em aberto, em termos de outras coisas possuírem valor intrínseco negativo ou positivo.

Como isso tudo mostra que o egoísmo é eticamente indefensável? Comecemos por notar que, embora o valor intrínseco negativo do sofrimento e o valor intrínseco positivo da felicidade não possam ser justificados com base em outra coisa mais básica, todos nós aceitamos que tais premissas são verdadeiras quando se trata de buscar o nosso próprio bem. Afinal de contas, não há nenhuma razão para duvidar da validade dessas premissas (na falta dessas razões contrárias, deve-se, então, considerar racional – e não apenas uma preferência aleatória não aberta à avaliação racional - buscar a felicidade e evitar sofrimento). Quando se trata de buscar o nosso próprio bem e evitar o nosso próprio mal, nenhum de nós exige que se ofereça uma justificativa para além dessa. Tais exigências só aparecem quando a questão é levar em consideração o bem dos outros. Nessa hora, a maioria de nós pede por uma justificativa para além de se apontar que o sofrer é algo ruim e que a felicidade é algo bom. Contudo, isso mostra que esse pedido é uma racionalização (ou seja, ninguém acredita sinceramente nele). Se acreditássemos, teríamos iguais dúvidas quando se trata de fomentar o nosso próprio bem, e, então, ninguém pensaria estar justificado em buscar o próprio prazer e evitar o próprio sofrimento. O que fiz, para explicar esse erro, foi apelar à regra de tratar casos relevantemente similares de maneira similar. Não faz sentido dizer que algo (no caso o sofrimento e a felicidade) não funciona como justificativa em um caso, e em outro caso, dizer que funciona. E, mesmo que alguém dissesse que não funciona nos dois casos (na busca do próprio bem e do bem dos outros), a menos que a pessoa sugerisse algum argumento que demonstrasse que o sofrimento e a felicidade não possuem valor em si (negativo e positivo, respectivamente), a pessoa em questão seria culpada de irracionalidade, como vimos anteriormente. Assim como o raciocínio prudencial parte da constatação que cada um dos instantes no quadro geral da vida de alguém não possui um status especial, o raciocínio ético parte da constatação de que cada um dos indivíduos não possui um status especial. O raciocínio prudencial depende da percepção de alguém como existindo ao longo do tempo; o raciocínio ético depende da percepção de alguém como existindo entre outros. Como vimos, a única maneira de justificar que o meu sofrimento/felicidade são razões para buscar o meu próprio bem, ao mesmo tempo que o sofrimento/felicidade dos outros não são razões para buscar o bem deles, seria apontar uma diferença moralmente relevante entre os dois tipos de casos. Essa diferença teria que mostrar que, apesar dessa característica comum (que é moralmente relevante; como vimos, não existem razões para duvidar de que o sofrimento é intrinsecamente ruim e a felicidade intrinsecamente boa), devemos, contudo, tratá-los de maneira diferente devido à outra característica moralmente relevante mais forte que anule a primeira.

Qualquer tentativa nesse sentido (de provar que somente o meu bem é que importa) teria que apelar a uma característica que possuo, para fundar a “diferença moralmente relevante”. Afinal de contas, seria circular responder que “somente o meu bem deve ser considerado porque eu sou eu”. Isso é óbvio, mas também é irrelevante. O que se quer saber é “o que há em determinado indivíduo que o torna mais especial?”. A única maneira de tentar algo nesse sentido seria apontar para uma característica que esse alguém possui, que não o fato de ele ser ele mesmo. Contudo, isso gera um problema, se o que se pretende é justificar o egoísmo. Como vimos, a principal característica da razão é sua generalidade. Quando apontamos uma característica que justifica um caso, automaticamente apontamos que a mesma característica justifica outros casos que a apresentem. Assim, por exemplo, se alguém aponta “eu sou mais especial porque todos os outros dependem de mim”, não oferece um argumento a favor do egoísmo. A regra geral a que apela é “é mais especial aquele do qual todos os outros dependem”. Ou seja, tal proponente teria que admitir que, se não fosse ele que ocupasse essa posição, mas qualquer outro, somente esse outro deveria ser considerado. A generalidade das razões gera um problema para a defesa desse tipo de egoísmo, pois toda característica que se aponte (com exceção de que “eu sou eu”, que, como vimos, é circular), cairá no mesmo tipo de impessoalidade, não fornecendo assim, razão alguma a favor do egoísmo.

Outra tentativa de justificar o egoísmo toma uma forma que chamo “universalizada” (em contraste à tentativa anterior, que chamo de egoísmo individual): ao invés de se tentar provar que um indivíduo específico é o único que tem valor (que todos deveriam considerar), tenta-se sugerir que cada um considere apenas o seu próprio bem (que cada um pense que é mais especial que os outros). Esse argumento também não funciona como justificativa. Como vimos, uma justificativa precisa ser racional. Faria sentido cada um considerar apenas si próprio somente se fosse razoável acreditar que cada um de nós é mais especial que os outros. Mas, é exatamente isso que é impossível de ser verdade: “cada um de nós individualmente” não pode ser mais especial que “cada um de nós individualmente” (se um é mais especial, é porque outros não o são). Isso mostra o seguinte: a possibilidade de se universalizar uma prescrição (no caso, “que cada um considere apenas os seus interesses”) não indica que tal prescrição seja racional. Nesse ponto, o egoísta poderia objetar, dizendo que não está a propor que cada um seja mais especial que todos os outros objetivamente (o que, como vimos, é impossível), mas, mais especial “para si”. O problema com essa tentativa é que ela é apenas uma outra forma de expressar a anterior. O que se quer dizer com “eu sou mais especial para mim”, ou “para mim, eu sou mais especial” ou “ele é mais especial para ele”, ou ainda “para ele, ele é mais especial” parecem coisas diferentes, mas, para fazerem sentido, dependem todas da validade de: “na minha opinião eu sou mais especial (objetivamente)” e “na opinião dele, ele é mais especial (objetivamente)”. Ambas as crenças não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo (se um for mais especial, o outro não é). É por isso que afirmar que todos são mais especiais do que todos é uma irracionalidade, e o egoísmo não se justifica, mesmo na forma universalizada[6].

A terceira tentativa de justificar o egoísmo é apontar que a diferença moralmente relevante entre um caso e outro é a motivação. O egoísta afirma que, em relação ao seu próprio bem, sente-se motivado a fomentá-lo; já com relação ao bem dos outros, não se sente. É isso, no entender do egoísta, que justifica que ele considere apenas o seu próprio bem. O problema com esse argumento é que, para essa motivação ser uma diferença moralmente relevante, ela precisa ser racional. Ou seja, precisa haver uma razão (geral) que sustente que é adequado que ele se sinta motivado a fomentar apenas o seu próprio bem. Que razões poderiam ser endereçadas quando a esse ponto? Apenas as razões oferecidas anteriormente pelas defesas do egoísmo individual e do egoísmo universal. Como vimos, tais argumentos são péssimos (um é auto-refutante e o outro é culpado de irracionalidade). Então, o agente em questão não tem razões que sustentem a motivação exclusiva que tem, de fomentar apenas o seu próprio bem. Sua motivação deveria ser outra. O principal erro dessa tentativa de justificar o egoísmo consiste em confundir “o que quero fazer” com “o que devo fazer[7]”. O que se quer saber é “tenho justificativa para fazer somente o que me sinto motivado a fazer?”,  ou ainda, “tenho razões para me sentir motivado apenas dessa maneira?”. Responder que “sim, porque é somente isso que me sinto motivado a fazer” é circular.

A partir do que foi exposto acima, temos então, boas razões para rejeitar o egoísmo. Essa rejeição envolve reconhecer um dos pilares centrais da ética: a imparcialidade. A imparcialidade é a noção de que cada um dos indivíduos a quem devemos considerar moralmente possui igual valor – ou seja, o de que o bem de cada um importa em igual medida; ninguém possui um status especial por ser o indivíduo que é. Assim como o raciocínio prudencial surge do reconhecimento de que um estágio particular da vida de um indivíduo não possui status especial (ele é apenas mais um entre outros), o raciocínio ético surge do reconhecimento de que nenhum indivíduo particular possui um status especial (cada um é apenas mais um entre outros). A noção de imparcialidade não deve ser confundida com a idéia de que devemos dar tratamento igual aos atingidos pela decisão. O ideal de igual consideração, na maioria das vezes, irá requerer tratamento diferente[8]. Isso se dá porque geralmente os indivíduos se encontram em níveis diferentes de sofrimento/felicidade: alguns estão muito bem, outros estão vivendo um verdadeiro inferno. O reconhecimento de que o sofrimento é intrinsecamente ruim e a felicidade é intrinsecamente boa, juntamente com o reconhecimento de que ninguém está intitulado a um status especial conduz à conclusão de que, quanto pior alguém está, maior deve ser a prioridade de seu atendimento (em termos de elevar o seu nível de bem-estar). Note que isso não significa dizer que os indivíduos que se encontram na pior situação possuem um status especial:  se fossem outros indivíduos ocupando a pior situação, a prioridade deveria ser deles (essa é a essência da idéia de imparcialidade: que as razões morais sejam impessoais). A meta é que os bens (no caso, o bem da felicidade) sejam distribuídos de maneira eqüitativa: ou seja, dar mais a quem tem menos, e menos a quem tem mais, até que os resultados finais sejam igualitários. Contudo, a meta não é apenas essa, pois, se fosse, então uma situação seria automaticamente boa, desde que os níveis de bem-estar fossem igualitários, mesmo que todos estivessem numa situação igualmente ruim. A meta não é apenas atingir uma situação igualitária de bem-estar entre os indivíduos: é também que esse bem-estar individual seja o maior possível. Essa posição também surge do reconhecimento de que o sofrimento possui valor intrínseco negativo, e a felicidade valor intrínseco positivo. Então, faz sentido pensar que, quanto mais felicidade melhor, e quanto menos sofrimento melhor. Note que isso não é dizer que, desde que uma decisão maximize a felicidade e diminua o sofrimento, então que ela é moralmente correta. Como vimos, a maneira como uns indivíduos estão, comparativamente a outros (e também comparativamente ao que poderiam estar) é importante. Essa última consideração vêm do reconhecimento de que nenhum indivíduo têm um status especial.

Na explicação acima, parti da idéia de que, dos indivíduos a quem devemos considerar moralmente, nenhum possui status especial. Agora temos de perguntar: “a quem devemos considerar moralmente?”. Ou seja: “qual a característica moralmente relevante para se saber quem deve ser moralmente considerado?”. Que característica é necessária que apresente determinada entidade para que seja um dever moral levá-lo em consideração, respeitá-lo? 

Uma resposta bastante comum a essa pergunta é dizer: “devemos respeitar todos os seres humanos”. Freqüentemente, os que se dizem defensores da igualdade se posicionam contrariamente ao racismo e ao sexismo, elegendo como critério de consideração moral o pertencimento à espécie Homo sapiens (“somos todos humanos”, é o lema freqüentemente pronunciado por tais defensores”). Na seqüência, explicarei por que esse critério (o especismo) é igualmente ruim, enquanto critério de consideração moral, em comparação ao racismo e ao sexismo. Todos esses critérios se baseiam em características moralmente irrelevantes.

Para conseguirmos saber o que é relevante para respeitar alguém, temos de perguntar, em primeiro lugar: “por que alguém precisaria de respeito?”.  Uma maneira de chegar até à resposta é imaginar uma situação onde não faria sentido prático o dever de respeitar alguém. Do que dependeria essa situação? Por exemplo, imagine que existam seres que são invulneráveis. Por invulneráveis, eu quero dizer que é impossível prejudicá-los, seja lá de que maneira. Seja lá o que for que tentemos com nossas decisões, é impossível causar um sofrimento sequer (físico ou psicológico) aos seres do exemplo fictício. Também é impossível diminuir-lhes a felicidade que lhes aguarda: toda e qualquer decisão nossa não conseguirá alterar a quantidade de felicidade que eles têm a desfrutar pela frente. Imagine também que esses seres nunca podem ser enganados: eles nunca acreditariam numa mentira; então, não poderiam ser prejudicados desta maneira. E, de nenhuma outra; seja lá o que for que tentássemos fazer. Num caso como esse, falar que temos o dever de respeitar tais seres não teria nenhuma utilidade prática, pois, seja lá o que for que fizéssemos, não seria possível alterar o seu bem individual, nem para mais, nem para menos. Esse exemplo fictício é importante para encontrarmos aquilo que é relevante para saber se alguém deve ser considerado moralmente: alguém precisa ser respeitado porque é vulnerável (o seu bem-estar pode ser alterado para melhor ou para pior) às nossas decisões práticas (sejam essas decisões ações ou omissões, haja vista que ambos os tipos de movimento implicam em alteração do bem-estar).

Das considerações abaixo, vimos que, da parte de quem toma a decisão, existem duas maneiras básicas pelas quais é possível um indivíduo ser prejudicado: ou prejudicamos um indivíduo diminuindo ou cessando (ou, permitindo que algo ou alguém diminua) o seu nível de bem-estar (incluindo o bem-estar a ser desfrutado no futuro), ou prejudicamos não aumentando (ou, permitindo que algo ou alguém não aumente) o seu nível de bem-estar (incluindo o bem-estar a ser desfrutado no futuro). Da parte do indivíduo a ser considerado, existem duas maneiras básicas nas quais é possível de ele ser prejudicado: por inflição de sensação ruim (sofrimento físico ou psicológico) ou por privação de satisfação (impedimento do prazer e da felicidade, por exemplo[9]). O primeiro tipo de dano explica onde está a razão principal para ser um erro moral causar (por ação ou omissão) sofrimento. O segundo tipo de dano explica onde está a razão principal para ser um erro moral (por ação ou omissão) assassinar (o indivíduo é privado de todo e qualquer desfrute no futuro). 

São essas razões que tornam errado desrespeitar seres humanos. E, ao mesmo tempo, são essas razões que explicam o que há de errado com o racismo e o sexismo: a raça e o gênero de alguém são características moralmente irrelevantes para saber quem deve ser respeitado porque são características que não têm influência alguma nas possibilidades de alguém ser prejudicado por inflição ou privação. O problema, para os especistas, é que o fato de alguém pertencer a uma determinada espécie biológica (no caso, à espécie Homo sapiens) também é uma característica igualmente irrelevante com relação às mesmas possibilidades de prejuízo. O motivo pelo qual é errado torturar um bebê humano não é que ele é um ser humano. O motivo é que ele é possível prejudicá-lo por inflição de sofrimento. Os motivos que tornam errado assassinar esse bebê também não tem a ver com o fato de ele ser humano. O motivo principal é que ele será impedido de todo e qualquer desfrute no futuro (será prejudicado, ainda que não tenha consciência do prejuízo, pois estará morto). Qual a característica moralmente relevante, então, que um indivíduo tem que apresentar, para ser considerado moralmente? Já que a idéia de respeito só faz sentido onde há vulnerabilidade, e já que a vulnerabilidade depende de alguém poder ser prejudicado (por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa), a única característica que faz sentido exigir é que o ser em questão seja capaz de sensações (sofrer e desfrutar),  ou seja, que seja senciente. Note que essas características dão iguais razões para se concluir que é igualmente errado prejudicar (por inflição ou privação) todo e qualquer ser senciente, independentemente de espécie, e não apenas humanos. Isso mostra que eleger como critério de consideração moral o pertencimento à espécie humana é se basear num critério tão moralmente imbecil quanto a raça, gênero ou número de letras no nome de alguém: nenhuma dessas características influi na possibilidade de alguém ser prejudicado. É por isso que especismo, racismo e sexismo são moralmente injustificáveis. A senciência não é mais um critério arbitrário como os mencionados acima, pois influi diretamente na possibilidade de alguém ser prejudicado por inflição ou privação – por isso, é uma característica moralmente relevante para saber quem merece consideração moral[10]. As considerações acima mostram que temos não apenas fortes razões para considerar moralmente os seres sencientes de outras espécies, mas que temos também fortes razões para dá-los igual consideração (ou seja, não atribuir um status especial a membros da espécie humana).

Tendo entendido que o critério da espécie é tão arbitrário quanto o da raça, gênero ou número de letras no nome, alguns defensores da idéia de que os seres sencientes de outras espécies não merecem igual consideração apontam para uma objeção. Alegam que não estão a dizer que deve-se respeitar apenas os seres humanos porque estes pertencem à espécie humana (o que seria um argumento circular), mas sim, devido a uma característica moralmente relevante que apenas os humanos possuem: são dotados de razão. “Somos todos racionais”, é o slogan dessa tentativa de defender a igualdade somente entre humanos. Eu poderia apontar aqui que tal argumento não serviria nem para defender a superioridade humana, porque é falso que todos os humanos sejam dotados de razão. Afinal de contas, os bebês, os idosos senis e portadores de determinadas doenças mentais são muito menos racionais do que qualquer cão normal, por exemplo. Contudo, se eu respondesse ao argumento dessa maneira, não poderia me opor a alguém que defendesse a igualdade apenas entre seres racionais (digamos, se esse alguém resolvesse excluir da consideração os humanos destituídos de razão e os seres sencientes de outras espécies). Então, essa resposta não explica o que há de errado com o critério da posse da razão, enquanto critério para saber quem merece respeito.

O que explica o que há de errado com o esse critério é o seguinte: ele reside numa confusão entre o que é relevante para saber quem merece respeito (a possibilidade de ser prejudicado, que, como vimos, depende da senciência) com o que é relevante para saber quem tem o dever de respeitar os outros (a posse da razão). A posse da razão é um critério relevante para saber quem tem o dever de respeitar os outros porque não faz sentido responsabilizar alguém pelas escolhas que faz se esse alguém não consegue raciocinar sobre essas escolhas. É por esse motivo que não faz sentido responsabilizar crianças muito pequenas, bebês, idosos senis, portadores de determinadas doenças mentais e seres sencientes não humanos, por exemplo. Mas, com relação ao que é relevante para se saber se alguém deve ser respeitado (a possibilidade de alguém ser prejudicado), a posse da razão não é necessária. É possível alguém ser prejudicado, por inflição de sensação ruim ou privação de desfrute sem ser capaz de raciocinar. Aliás, geralmente se dá o contrário: quanto menos capaz de razão alguém é, maior sua vulnerabilidade (porque não sabe defender seus direitos sozinho, por exemplo), então, a conclusão que deveria se seguir disso é que precisa de uma proteção ainda maior, e não, que podemos fazer com eles o que bem entendermos. É por esse motivo que se oferece maior proteção aos bebês do que aos adultos, por exemplo. Só que, se reconhecemos isso, temos de reconhecer o mesmo no caso dos seres sencientes de outras espécies: o fato de serem menos racionais do que nós (que os impede de reivindicar seus direitos) é uma razão para dar-lhes maior proteção, devido à sua maior vulnerabilidade.

As considerações acima nos mostram que existem fortes razões para darmos igual consideração a qualquer ser senciente, independentemente da espécie, raça ou gênero que ele pertence. Vimos também que a maior vulnerabilidade dos seres sencientes que possuem menor capacidade racional é uma razão para lhes oferecer maior proteção. Antes disso, vimos também que a igual consideração requer que se dê prioridade aos indivíduos que estão na pior situação, comparativamente a outros. Quanto maior o número de indivíduos em um nível de bem-estar muito ruim uma situação apresenta, maior a urgência moral em acabar com essa situação[11]. Essas considerações apontam que a situação na qual passam agora os seres sencientes de outras espécies deveria ser vista como prioritária[12]. Essa conclusão está de acordo com a exigência de imparcialidade: se fossem outros indivíduos no lugar desses indivíduos, a prioridade deveria ser deles. Quem sabe o que eles passam nas granjas industriais, na produção de ovos, leite e carne, ou nos outros setores nos quais são utilizados (são mutilados, queimados vivos, não podem se mover, tem os ossos quebrados, etc.), além do fato de todos eles serem assassinados, prontamente precisa reconhecer que eles são, de todos os indivíduos sencientes, os que estão na pior situação. Quem se libertou da ilusão proporcionada pela visão idílica da vida na natureza também reconhece que a situação na qual os seres sencientes viventes na natureza passam, devido aos próprios processos naturais, não é menos pior do que a das granjas industriais (se levarmos em conta o número de indivíduo em situação de sofrimento extremo, pode ser até pior): a maioria só tem sofrimento extremo e nada de desfrute desde o momento que nasce até o momento que morre (a maioria morre de inanição, por parasitismo, ou é predado[13]). Quem ainda não conhece essas realidades precisa conhecer. Não tenho espaço aqui para descrever detalhadamente essas realidades, mas, boas descrições detalhadas podem ser encontradas em outros artigos ou vídeos. E, para quem acredita que, no segundo tipo de caso, não temos dever de abolir tais danos, por serem danos naturais, é preciso dar uma olhada mais de perto nessa idéia, para ver se ela se sustenta após alguns minutos de análise crítica. Afinal de contas, não pensamos que é errado para nós nos medicarmos se estivermos sofrendo de um câncer, igualmente natural. Abordo essa questão mais detalhadamente em outros dois artigos[14]. O reconhecimento de que existem algumas situações piores do que outras e alguns indivíduos numa situação muito pior do que a de outros mostra que a conclusão de que “quando se escolhe uma causa para lutar, todas são igualmente válidas” é moralmente errada. O que a imparcialidade requer é que se dê prioridade a quem está na pior situação, independentemente de quem estiver nessa pior situação. Não temos apenas o dever de não contribuir com essas situações; temos o dever de erradicá-las.

Fora essas implicações, a conclusão que se segue é que, mesmo que fosse verdade que os seres sencientes de outras espécies valessem menos do que os humanos, ainda assim teríamos que mudar radicalmente nossos hábitos. Por exemplo, supondo que fosse errado causar danos aos seres sencientes de outras espécies apenas quando o interesse humano fosse fútil, ainda assim teríamos que abolir, por exemplo, o seu uso como comida. Como sabemos, a produção de ovos, leite e carnes provoca extremos de sofrimento e mortes. Como vimos, sofrimento e morte são danos graves para os seres sencientes, pois o primeiro inflige sensação muito ruim e o segundo impede totalmente o desfrute. O interesse humano em questão, que compete com esses interesses básicos (não sofrer e desfrutar) é um interesse fútil: o gosto por uma comida específica. Já que podemos viver com outro tipo de comida menos danosa (comida vegana), teríamos o dever de abolir o uso de animais como comida mesmo que estes valessem bem menos do que os humanos. Mas, a verdade, como vimos com a argumentação desenvolvida durante todo o artigo, é que temos fortes razões para acreditar que os seres sencientes de outras espécies possuem igual valor, o que gera em nós o dever moral de aumentar o seu bem-estar até que eles estejam tão bem quanto possível (e, se possível, cada vez mais). Então, as implicações de tudo isso são muito mais radicais do que abolir o seu uso enquanto recursos. Isso é só o começo, o mínimo que qualquer pessoa moralmente decente faria. A igual consideração vai muito mais longe do que isso.

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Notas:

[6] Essa argumentação contra o egoísmo pode ser encontrada mais detalhada em NAGEL, Thomas. The Possibility of Altruism. New Jersey: Princeton University Press, 1970, capítulos IX - XIV. Também pode ser encontrada em MURCHO, Desidério. Como não Compreender a Moral. In: Crítica na Rede. 01/12/2009b. Disponível em: http://criticanarede.com/html/pensamentomoral.html

[7] Essa confusão é criticada em  MURCHO, Desidério. Ética e Direitos Humanos. In: Crítica na Rede. 27/11/2009a.
Disponível em: http://criticanarede.com/html/valoresrelativos.html

[8] Cf. SINGER, Peter. Ética Prática. 3 ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo. Martins Fontes, 2002, p. 32.
 
[9] Essas duas modalidades básicas de dano são melhor desenvolvidas em REGAN, T., The Case for Animal Rights, 2nd ed, Los Angeles: University of California Press, 2004, pp. 87-103.

[10] Para uma defesa do critério da senciência, ver HORTA, Oscar. Por qué la Capacidad de Sufrir y Disfrutar es lo Importante. In: Ética Más Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos,  2009. http://masalladelaespecie.wordpress.com/2009/11/20/la-capacidad-de-sufrir-y-disfrutar/

[11] Para uma análise da questão da prioridade, ver HORTA, Oscar. Questions of Priority and Interspecies Comparisons of Happiness. In: Ética mas Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos. 2010. http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2010/05/questions_priority_interspecies.pdf.; Id. Igualitarismo, igualatión a la baja, antropocentrismo y valor de la vida. In: Revista de Filosofía da Universidad Complutense de Madrid. Vol. 35 Núm. 1 (2010), pp. 133-152, ISSN: 0034-8244.

[12] Os dados da FAO (2010) apontam que entre 55.000 e 60.000 milhões de mamíferos e aves são mortos por ano mundialmente. Cf. FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations (2010): “Livestock Primary”, FAO Statistical Database, http://faostat.fao.org/site/569/default.aspx#ancor [visitado o 26 de outubro de 2010]. Nesse tipo de cálculo, não é computado o número de peixes, que são a imensa maioria dos animais mortos por humanos. Segundo Mood e Brooke (p. 9), o número de peixes capturados poderia oscilar entre 0,97 e 2,74 trilhões. Cf. Mood, Alison e Brooke, Phil (2010): “Estimating the Number of Fish Caught in Global Fishing Each Year”, Fishcount.org.uk, http://www.fishcount.org.uk/published/std/fishcountstudy.pdf [visitado o 18 de outubro de 2010].

[13] Para um crítica à visão idílica da natureza, ver HORTA, Oscar. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. In: Télos, vol. 17, 2010, 73–88, Allan Dawrst nos lembra que o número de animais utilizados por humanos some frente ao número de animais padecendo de danos naturais. Cf. DAWRST, Alan, “How Many Animals are There?”, Essays on Reducing Suffering, 2009a; Id, “The predominance of wild-animal suffering over happiness: An open problem”. Essays on Reducing Suffering, 2009b, http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf.

[14] Cf. CUNHA. Luciano C., O Princípio da Beneficência e os Animais Não Humanos: Uma Discussão Sobre o Problema da Predação e Outros Danos Naturais. In: Agora: Papeles de Filosofia, Vol. 30, N. 2, 2001. ISSN 0211-6642. Cf. CUNHA, Luciano C., Sobre Danos Naturais. In: Ética mas Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos, 2011. http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf







quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

IGUALDADE SENCIENTE - parte 2

VERDADE, RAZÃO, JUSTIFICATIVA EM ÉTICA E OS SERES SENCIENTES

 Luciano Carlos Cunha [1]

PARTE 2: Como a pretensão de objetividade é inescapável em qualquer juízo moral e o papel da razão em avaliar esses juízos.

Antes de iniciar, gostaria de esclarecer o que entendo pelos termos “ética” e “moral”, com vistas a evitar confusões de ambigüidade muito comuns. Muitas vezes, os termos ética e moral são utilizados como sinônimos; outras vezes não. No que se segue, utilizarei os dois termos como sinônimos, porque, segundo entendo, a confusão consiste não na questão sobre se esses termos são sinônimos ou não, mas o que se quer referir com cada um deles: a crenças ou à verdade. Muitas vezes, a palavra ética é utilizada para descrever as crenças de alguém sobre as decisões práticas (o que alguém acredita que não se deve e o que se deve fazer; o que é opcional fazer, etc.). Por exemplo, isso acontece quando se diz: “a ética de fulano permite fazer x”; ou seja, como significando a mesma coisa que “fulano acredita que é correto fazer x”. Contudo, às vezes a palavra “moral” também é utilizada nesse mesmo sentido: “a moral de fulano permite fazer x”; ou seja, como significando que “fulano acredita que é correto fazer x”. Chamarei esse uso de sentido descritivo (descreve aquilo que as pessoas acreditam – as crenças - sobre ética/moral) dos termos “ética” e “moral”. O outro sentido comum em que se utiliza essas palavras não é descritivo (não descreve o que as pessoas ou sociedades acreditam que se deve ou não fazer), mas avaliativo: se está a fazer um juízo de valor sobre o que se deve ou não fazer; o que é opcional, etc. Esse é o sentido primário, valorativo, dos termos ética/moral. O outro sentido é só uma descrição sobre o que as pessoas acreditam que seja a verdade em ética/moral (ou seja, o que elas acreditam que seja a resposta correta para o sentido valorativo). Um sentido refere-se à verdade; o outro refere-se ao que as pessoas acreditam que seja a verdade. Por exemplo, quando se fala, no sentido valorativo: “fazer x é imoral (ou, anti-ético)”; se está dizendo a mesma coisa que “não deve-se fazer x”; “existem boas razões para não se fazer x”. Quando se fala “x é ético (ou, moral)”, está a se dizer “deve-se fazer x”; “existem boas razões para fazer x”. Inclusive quando se fala “tudo é moralmente (ou eticamente) opcional”, se está a exprimir o que se pensa ser a verdade sobre ética/moral: que todas as decisões são igualmente válidas. Para evitar a confusão entre os sentidos de descrição de crença e de julgamento sobre a verdade dos termos ética/moral, utilizarei um “(c)” para o primeiro (crenças) e “(v)” para o segundo (verdade). Fazendo essa distinção, o aparente paradoxo de afirmações do tipo “a ética/moral de fulano não é ética/moral” desaparece, pois o que se está a dizer é que “a ética/moral(c) de fulano - ou seja, o que fulano acredita ser ético/moral(v) – não é ética/moral(v)”. Tudo o que se quis dizer com essa afirmação é que alguém está enganado ao pensar que determinada coisa é certa, errada, opcional, etc.

O que se quer descobrir no raciocínio moral(v)? É importante perceber que o raciocínio moral é um tipo de raciocínio valorativo. O que se quer descobrir é o que devemos fazer, o que não devemos fazer, e o que tanto faz se fizermos ou não. Separarei essas questões em duas categorias: (1) moralmente obrigatório: inclui o que não se deve fazer (um dever negativo); e o que deve-se fazer (um dever positivo) e; (2) moralmente opcional: tanto faz se fizermos ou não. Com relação à primeira categoria, diz-se que algo é um dever negativo se existirem melhores razões para não fazê-lo (fazê-lo é um mal e não fazê-lo é um bem) e diz-se que algo é um dever positivo se existirem razões para fazê-lo (fazê-lo é um bem e não fazê-lo é um mal). Com relação ao moralmente opcional, fazê-lo ou não fazê-lo é igualmente neutro. Note que cada uma dessas razões, se existirem, dependem do conceito de valor (note a referência a algo ser um bem e ser um mal). Atentando para essa particularidade, é possível perceber que algo ser um dever negativo, dever positivo ou moralmente opcional dependerá não somente do valor embutido em cada uma das situações, mas da comparação entre as opções de decisão disponíveis para o agente. Se o agente tem, diante de si, várias opções e todas são igualmente boas (ou todas são igualmente ruins), escolher qualquer uma delas é igualmente opcional. Se o agente tem, diante de si, várias opções e algumas delas são igualmente as melhores, comparativamente às outras, escolher alguma das melhores é igualmente opcional; escolher qualquer outra é um dever negativo. Se só há uma opção melhor do que as outras, escolhê-la é um dever positivo.

Como veremos na seqüência, são essas razões objetivas (que dependem do valor) que tornam uma decisão moralmente obrigatória e outras moralmente opcionais que os perspectivistas morais negam a existência. Antes de oferecer os argumentos centrais contra o perspectivismo moral, cabe salientar o que o raciocínio moral não é:  descritivo. O que se quer descobrir não é o que as pessoas acreditam que seja (remete crenças) moralmente obrigatório e moralmente opcional. O que se quer descobrir é se existem decisões que são (remete à verdade) moralmente obrigatórias e moralmente opcionais, e como diferenciá-las.

Devido ao domínio da moralidade ser essencialmente normativo, qualquer argumento com vistas a provar que a ética é perspectivada (relativa, subjetiva) que se baseie na confusão entre os domínios normativo e descritivo está fadado ao fracasso. E, não são poucos os argumentos que padecem dessa confusão. Muitas vezes, quando se fala “não existe verdade em ética”, o que se quer dizer, na realidade, é: que as crenças das pessoas (ou das sociedades como um todo) divergem sobre o que é certo e errado fazer. O fato de haver divergência sobre certo e errado não mostra que todas as visões morais são igualmente plausíveis, assim como as divergências sobre qualquer outro assunto não mostram que as visões em questão são igualmente plausíveis. Se alguém replicar, alegando que “em ética, a coisa é diferente”, precisa oferecer outro argumento para explicar por que com a ética é diferente; apontar que há discordância não mostra o que há de diferente com a ética, haja vista haver discordância em qualquer assunto. O erro desse argumento é fazer uma constatação descritiva (“as crenças sobre o que é certo divergem”) e pensar que essa constatação sustenta um salto lógico para uma conclusão normativa (“todas essas crenças são igualmente corretas”). Esse é o erro conhecido como falácia naturalista (saltar de uma premissa descritiva para uma conclusão de valor). Supondo que o perspectivista se revele, no fundo um cético moral, e afirme que o que quer dizer, na verdade, é que ninguém tem conhecimento total sobre o que é certo e errado, ou  que certas decisões são muito difíceis de se encontrar a resposta. Contudo, o fato de ninguém ter conhecimento total sobre o que é certo e errado não prova que não há verdade moral (aliás, tal afirmação depende da existência de verdade moral); o fato de que certas questões serem difíceis de responder não mostra que não existe uma resposta objetiva sobre elas (mostra apenas que talvez não tenhamos chegado a essa resposta ainda). Nenhuma dessas alegações serve como base para sustentar a tese contra a objetividade da ética, da mesma maneira que a presença dos mesmos problemas (discordância de posições, questões difíceis, ninguém ter todo o conhecimento sobre a área, etc.) não depõe contra a objetividade da matemática ou das ciências empíricas. Aliás: a verdade nesses domínios (e também na ética, como pretendo mostrar) independe de quaisquer crenças. Assim como haver grande discordância sobre um assunto não prova que não existe verdade sobre esse assunto, o fato de todos concordarem com uma conclusão não prova que ela é verdadeira. A verdade tem de ser buscada em outro lugar, que não no fato de haver discordância ou concordância, pois, como mencionei antes, a verdade não é estatística nem consensual (porque a verdade é independente das crenças).

Outro exemplo de argumento que visa sustentar o perspectivismo moral (relativismo ou subjetivismo) que padece da confusão entre o domínio normativo e descritivo são os conhecidos exemplos de falácia genética. A falácia genética consiste em confundir a explicação sobre o surgimento de algo (no caso, sobre o surgimento de uma crença, uma determinada conclusão, uma teoria, etc.) com sua justificação ou “des” justificação. Ou seja, é comum se tentar mostrar que uma determinada conclusão é justificada ou injustificada explicando como é que as pessoas que nela acreditam chegaram até ela. No caso específico, os relativistas morais comumente afirmam: “você só tem os valores que têm porque nasceu na sociedade em que nasceu; tivesse nascido em outra, acreditaria em coisas diferentes”. Por exemplo, diriam que eu acredito no valor da igualdade porque nasci numa sociedade que possui valores igualitários, mas que acreditaria no valor das castas se tivesse nascido numa sociedade de castas. A partir disso, defendem a conclusão de que a verdade objetiva em ética não existe. Esse argumento não funciona porque mesmo que fosse verdade o que ele afirma em termos de descrição (que eu teria outros valores se tivesse nascido em outro tipo de sociedade, com outros valores), isso não prova que todos esses valores são igualmente plausíveis. Supondo que seja verdade que, se eu tivesse nascido numa sociedade de castas, eu defenderia as castas como moralmente corretas. Essa constatação não serve para sustentar a tese de que, então, defender a igualdade ou as castas é igualmente plausível. Isso porque considerações sobre o que eu acredito ou o que eu acreditaria são apenas descrições sobre minhas crenças, e não, fundamentações sobre juízos de valor. O domínio descritivo não possui poder para tirar conclusão nenhuma sobre questões normativas. Eu me perguntaria, após ouvir esse argumento: “e agora, devo defender a igualdade, as castas ou é tudo moralmente opcional?”. Dizer que eu defenderia uma coisa se tivesse nascido numa sociedade x e outra se tivesse nascido na y não ajuda em nada a responder essa pergunta. Não oferece nenhuma razão para se pensar que a igualdade é melhor do que as castas, nem que as castas são melhores do que a igualdade, e nem mesmo que ambas são igualmente plausíveis. A resposta para essa pergunta (saber se uma opção é melhor do que a outra, o que tornaria escolher uma um dever positivo e rejeitar a outra um dever negativo; ou se ambas são igualmente boas, o que tornaria a escolha moralmente opcional) tem de vir do próprio domínio normativo, não do descritivo. Quando pensamos moralmente, não queremos descobrir o que faríamos, nem o que faz com que tenhamos os valores que temos, e sim, o que devemos fazer, que valores devemos ter (mesmo quando se responde “qualquer um que se queira”, a resposta surge de crenças sobre o domínio normativo, não do descritivo).

Existem outros argumentos em defesa do perspectivismo moral (relativismo, subjetivismo) que também são culpados de falácia genética,  mas não envolvem suposições sobre que valores alguém teria se tivesse nascido em outra sociedade. Por exemplo: (1) “o altruísmo não vale nada; você é altruísta porque se sente feliz com isso ou porque tira vantagem disso”. Mesmo que o agente só fosse altruísta porque se sente feliz com isso ou porque tira vantagem disso (ou seja, mesmo que isso explique a motivação que dá origem ao altruísmo naquela pessoa), isso não mostra que o altruísmo não vale nada (não mostra que não há justificativa para o altruísmo). Ou ainda, (2) “O surgimento da moralidade se deu por motivos mesquinhos (‘eu não bato em você, e você não me bate’); logo, só temos razões para respeitar alguém se ele tiver poder de nos ameaçar”. Mesmo que fosse verdade que o surgimento da moralidade se deu com esse tipo de motivação (explicou a origem de algo), isso não mostra que, então isso foi certo naquela época e é certo agora (não justifica esse algo).

Tendo desfeito essas confusões, precisamos olhar agora para a reivindicação envolvida no perspectivismo moral:  que não é possível um critério objetivo (razões), para dizer que um valor é melhor do que outro. Existem dois tipos principais de perspectivismo moral. Um deles é o relativismo moral. O relativismo moral afirma que não existem julgamentos de valor objetivamente válidos, mas, apenas, válidos dentro de uma sociedade. O outro é o subjetivismo moral. O subjetivismo moral afirma que não existem julgamentos de valor objetivamente válidos, mas, válidos apenas para cada pessoa individualmente.

Endereçarei agora o que considero as principais objeções a esse tipo de perspectiva. O primeiro problema com esse tipo de perspectiva é que, tanto o relativismo quanto o subjetivismo moral só fazem sentido sob um pano de fundo objetivo no domínio ético (e não apenas, como uma reivindicação objetiva sobre o domínio ético). Ou seja, o que quero dizer é que essas posições contém embutidas nelas reivindicações morais (reivindicações sobre o que se deve ou não fazer, o que é opcional, etc.) ocultas que pretendem ser objetivamente válidas. Isso acontece não por um “defeito” dessas teses (ainda que, devido ao tipo de tese que são, isso é também um defeito), mas porque é impossível não fazê-lo. Analogamente ao que foi mencionado sobre as idéias de verdade e razão (onde é impossível nos situarmos em um ponto “de fora”, onde seja possível pensar alguma coisa sem pressupor a validade das idéias de verdade e razão), defendo que é impossível falar algo sobre moralidade sem, ao mesmo tempo, fazer um juízo sobre o que é moralmente obrigatório ou moralmente opcional (ainda que o juízo, no final das contas, afirme que tudo é moralmente opcional, como discutiremos na seqüência). Isso porque, também não é possível nos situarmos em um ponto neutro, “de fora” quando falamos sobre que decisão tomar.

O que quis mencionar com a alegação acima é que as visões perspectivistas da ética (relativismo e subjetivismo) sugerem (ao mesmo tempo que negam), ainda que de maneira oculta, um critério objetivo para se decidir questões morais. Quando, por exemplo, o relativismo diz que “a ética é relativa à cada sociedade”, na verdade sub-entende o seguinte: “Quer saber o que deves fazer? Pergunte o que a sociedade em que você está acredita que deve ser feito”.  Note que isso é a sugestão de um critério objetivo para decidir (um critério que não pretende ser, ele mesmo, uma mera construção social). O relativismo moral incorpora, de maneira oculta, as noções de moralmente opcional e moralmente obrigatório. Por exemplo, de acordo com o relativismo moral, é moralmente obrigatório concordar com os valores da sociedade na qual se está. Já quando, por exemplo, o subjetivismo diz “a ética é relativa às crenças e cada um”, o que se quer dizer, na verdade, é “qualquer decisão é igualmente plausível”, ou “Queres saber o que deves fazer? Faça qualquer coisa que quiseres”, ou ainda “Queres saber o que deves fazer? Faça qualquer coisa que achas que deve ser feito”, ou, em outras palavras, que “todas as decisões são moralmente opcionais”. Os dois tipos de visões sugerem, então, critérios objetivos para se responder as questões morais: uma sugere como critério as crenças das diferentes sociedades (relativismo moral); o outro sugere como critério as crenças dos diferentes indivíduos (subjetivismo moral).

Vimos que o relativismo incorpora as noções de moralmente obrigatório e moralmente opcional (tanto é, que torna errado discordar dos valores da sociedade na qual alguém se encontra). Já o subjetivismo afirma que todas as decisões são moralmente opcionais (segundo o subjetivismo, então, não é errado discordar dos valores da sociedade... embora também, segundo essa mesma visão, não seja errado a sociedade fuzilar quem discorda dos valores dela). Temos de perguntar, com relação ao relativismo, o seguinte: “por que sugerir como critério objetivo para saber o que devemos fazer as crenças sobre o que devemos fazer da sociedade em que estamos?”. Por que se basear nisso e não em qualquer outra coisa? Basear-se nas crenças da sociedade para obter a resposta correta sobre ética só faria sentido se os que constróem os valores das sociedades tivessem todo conhecimento moral do mundo. Mas, é exatamente isso que o relativismo nega. Eleger como critério de decisão sobre o que é certo e errado as crenças da sociedade só faria sentido se a sociedade jamais se enganasse (e se existirem verdades morais às quais os que constróem os valores das sociedades, e somente eles, tivessem acesso direto – que, ironicamente, é isso que o relativismo nega que exista). Mas, faz sentido discordar das decisões práticas da sociedade, não faz? Aliás, é essa a conclusão que se seguiria logicamente, se fosse verdade que todos os valores são meras construções sociais, desprovidas de razões a seu favor.

Alguém poderia pensar que isso nos conduziria ao subjetivismo moral. Porém, com relação ao subjetivismo, o mesmo tipo de problema é pior ainda. Faz sentido fazer a mesma pergunta: “por que escolher como critério para descobrir o que devemos fazer as crenças sobre o que cada um acha que devemos fazer?”. Ora, tal critério só estaria correto se todas essas crenças fossem igualmente plausíveis. Mas, o que é pior, isso gera um problema para o subjetivismo: se absolutamente tudo (todas as nossas decisões possíveis) é moralmente opcional, então também é moralmente opcional tratar aquilo que é moralmente opcional como moralmente obrigatório ou tratá-lo como moralmente opcional. Assim, por exemplo, de acordo com o subjetivismo, escolher que cor de camiseta utilizar é moralmente opcional, mas, também colocar uma bomba em alguém ou estuprar também é. Note que, de acordo com o subjetivismo, se alguém tratar a escolha pela cor da camiseta como moralmente obrigatório (digamos, alguém resolve fuzilar todos que não usarem roupa lilás), então que isso também é moralmente opcional e a pessoa não comete nada de mal ao fazer isso. Então, se também é moralmente opcional afirmar que algumas coisas são moralmente opcionais e outras moralmente obrigatórias, que sentido tem em se dizer que tudo é moralmente opcional? O subjetivista teria de dizer que aqueles que negam que nem tudo é moralmente opcional estão igualmente certos. O subjetivista teria de dizer que aqueles que afirmam que “é falso que é tudo muito subjetivo em ética” estão, com relação às decisões morais que tomam, tão certos quanto os que aceitam o subjetivismo. Assim, na melhor das hipóteses, o subjetivismo é uma posição “nula”, que não oferece nenhuma razão a seu favor. Isso porque a idéia de algo moralmente opcional só faz sentido em comparação ao moralmente obrigatório. Dizer que fazer x é moralmente opcional automaticamente implica em dizer que qualquer agente têm obrigação moral de permitir que se faça x e de não obrigar a se fazer x. É por isso que não tem sentido prático afirmar que “tudo é moralmente opcional”.

O subjetivista poderia objetar, nesse ponto, que defende que todas as decisões morais são igualmente plausíveis justamente por não haver um critério objetivo que possa nos dizer quais são melhores que quais. É sobre esses critérios que vou passar a falar agora. Comecemos por notar que o subjetivismo elege como critério para cada um descobrir o que deve fazer as próprias crenças de cada um sobre o que deve-se fazer. Há alguma coisa muito errada nisso tudo. E o erro é que o subjetivismo não leva em conta as razões pelas quais as pessoas acreditam que devem fazer algumas coisas, que não devem fazer outras, que outras são moralmente opcionais, etc (não faz sentido que a razão seja a própria crença da pessoa, pois, dessa maneira, não haveria motivo para a pessoa possuir tal crença). O subjetivismo não leva em conta, por exemplo, a diferença básica que faz com que escolher qual cor de roupa vestir seja igualmente opcional e que seja um dever não estuprar: não existirem razões para se preferir esta ou aquela cor, mas o sofrimento e outros danos para a vítima serem uma boa razão para se pensar que estuprar é um mal. Nesse ponto, ressurgiria a objeção perspectivista, da mesma maneira que surgiu com relação aos princípios básicos da razão. Ou seja, alegaria-se que, mesmo que fôssemos oferecer razões para sustentar uma conclusão moral, teríamos de apelar a um princípio moral mais básico e menos controverso. Só que, se alguém perguntasse o que sustenta esse princípio, teríamos de justificá-lo com base em outro ainda mais básico e menos controverso, e assim por diante. Segundo a objeção perspectivista, se fizéssemos essa pergunta, no final das contas descobriríamos que o princípio básico que sustenta todas as outras conclusões é um mero sentimento de aprovação diante de algumas coisas e de desaprovação diante de outras. Esse sentimento, segundo essa perspectiva, não estaria aberto à avaliação racional. E, já que existem sentimentos básicos de fundação moral conflitantes, não há como dizer qual deles está correto (e, mesmo que houvesse concordância quanto a esse sentimento, não haveria como dizer que alguém deve ter esse sentimento, para quem não o tivesse); assim conclui o argumento perspectivista. Penso que esse argumento, que tem origem no pensamento do filósofo David Hume, é o melhor argumento em defesa do perspectivismo. Contudo,  mesmo esse argumento tem sérios problemas. O maior deles é inverter a relação das coisas: não é que as pessoas têm certos sentimentos aleatórios de aprovação ou desaprovação moral diante de algumas coisas e depois consideram essas coisas moralmente certas ou erradas, respectivamente; mas, ao invés, que temos os sentimentos morais que temos diante de determinadas coisas porque já fizemos anteriormente um julgamento moral sobre elas, com base em outras razões que são independentes dos sentimentos. Ou seja, temos os sentimentos morais que temos porque concluímos que algumas são justificáveis (possuem boas razões a seu favor) e outras não. E, o que quero apontar na seqüência, é que essas razões não dependem dos sentimentos dos agentes. Embora seja verdadeiro que, como toda justificação, a justificação moral precisa ter início em princípios que não podem ser justificados com base em outros (porque eles são os mais básicos possíveis), nem por isso deve-se pensar que esses princípios são mera particularidade de quem os professa, como um gosto pessoal por uma determinada cor, por exemplo. Devemos aceitar tais princípios como racionais simplesmente por não haver nenhuma boa razão para duvidar de sua validade, como pretendo mostrar a seguir.

Gostaria de começar mostrando como é que geralmente se raciocina sobre questões morais. Essa forma de raciocínio está implícita mesmo quando pensamos intuitivamente (de maneira não formalizada) sobre uma questão moral. Supondo que alguém defenda a seguinte conclusão moral: “Comer carne é errado”. O argumento que sustenta essa conclusão poderia ser algo como o seguinte: (1) É errado causar morte e sofrimento desnecessariamente (premissa de valor); (2) Comer carne causa morte e sofrimento desnecessariamente (premissa factual); (3) Logo, comer carne é errado. Como os raciocínios morais são aplicações de princípios morais (a premissa de valor, no caso) a casos reais, o raciocínio moral sempre dependerá, em algum grau, de constatações sobre os fatos (a premissa factual). Assim, mesmo que fosse verdade que todo princípio de valor fosse igualmente válido (e é isso que pretendo negar na seqüência), ainda assim haveriam outras duas maneiras de alguém cometer um erro moral (em termos objetivos): ou alguém faz uma análise factual ruim (ou seja, a premissa factual na qual se baseia é falsa), ou, mesmo que se faça uma boa análise factual, ainda assim alguém poderia cometer um erro de lógica na hora de derivar a conclusão. Um exemplo do primeiro tipo de erro (factual), seria o seguinte argumento: (1) É errado causar dano a seres sencientes (premissa de valor); (2) Tijolos são seres sencientes; (3) Logo, é errado quebrar tijolos. Nesse caso, a conclusão é falsa porque a segunda premissa (factual) é falsa, e não devido ao princípio de valor que parte (como defenderei mais adiante, esse princípio está correto), e nem devido ao tipo de inferência que se fez (se as duas premissas fossem verdadeiras, então a conclusão seria verdadeira). Já um exemplo do segundo tipo de erro (de lógica), seria o seguinte argumento: (1) É errado causar dano a seres vivos; (2) Animais e plantas estão vivos; (3) Logo, é correto comer animais e plantas. Nesse caso, o erro é de lógica porque, mesmo que, com certeza, as duas primeiras premissas fossem verdadeiras (tanto a de valor quanto a factual), elas não suportam a conclusão (na verdade, as premissas sugerem o contrário da conclusão, pois a conclusão lógica seria a de que, então, é errado, e não, correto, comer esses seres).

Defenderei agora que também é possível cometermos um erro na primeira premissa (premissa de valor moral). Para entender como isso é possível, é preciso entender outras duas características importantes do raciocínio moral: coerência e relevância. Falarei primeiro da coerência, embora ela seja menos importante, e ela sozinha não consiga mostrar se há erro ou não com a premissa de valor (e nem com cada decisão específica). O que me refiro por coerência, em termos de pensamento moral, é que um agente siga a exigência de tratar casos relevantemente similares de maneira similar. A idéia é que um agente aplique um princípio moral não apenas a um caso específico (afinal de contas, se ele é um princípio, não ajudaria muito se só servisse para um caso específico), mas, a vários casos que mantenham entre si, as mesmas características que o princípio indica que sejam moralmente relevantes. Assim, uma maneira de errar (objetivamente!) em ética é por tratar de maneira diferente casos que são similares em tudo o que for relevante para saber como devemos tratá-los, ou vice-versa (tratar de maneira similar casos que possuem diferenças moralmente relevantes). Minha ressalva quanto à importância da exigência de coerência, em termos de descobrir qual a decisão correta, é que, se tal exigência sozinha tivesse esse poder, então a moralidade se trataria apenas de escolher aleatoriamente um princípio qualquer e, desde que se julgasse os outros casos coerentemente de acordo com ele (de acordo com o que ele diz que é relevante), então estaria garantido que as decisões estariam todas justificadas. Mas, a coisa não é assim. Faz sentido criticar alguém por aplicar um critério, mesmo que a aplicação seja coerente. Faz sentido porque o critério mesmo pode ser imbecil (pode ser basear numa característica irrelevante para o que está em jogo, pensando ser relevante). Só faz sentido cobrar coerência a um bom princípio. A exigência de coerência não possui o poder de mostrar o que é moralmente relevante e o que não é. Então, ela sozinha não consegue avaliar um princípio de valor (embora seja importante no sentido de exigir que se aplique coerentemente um bom critério).

Por exemplo, supondo que eu sou um médico e preciso escolher qual dos meus pacientes deve receber prioridade no atendimento. Supondo que o critério que eu escolha para construir o princípio moral que vou seguir é esse: pacientes com exatamente seis letras no primeiro nome recebem atendimento prioritário; com mais de seis letras recebem atendimento depois, e com menos de seis letras são largados para morrer. Suponha que eu seguisse coerentemente esse critério: que realmente desse prioridade a todo e qualquer paciente com exatamente seis letras no nome, e realmente atendesse depois os que têm mais letras no nome, e que realmente deixasse para morrer todos os que têm menos de seis letras. Minha decisão foi moralmente correta só porque foi coerente com o princípio que adotei para guiar a decisão? Não, exatamente porque escolhi um mau critério. E, é possível explicar o motivo pelo qual esse é um critério ruim: ele se baseia numa característica (o número de letras no nome) que é irrelevante para o dilema moral em questão. “Como saber o que conta como uma característica moralmente relevante e o que não conta?”, perguntaria o perspectivista. A resposta depende da seguinte pergunta: “o que há naquela situação específica que faz com que ela seja um problema moral?”. Na questão da prioridade no atendimento, por exemplo, poderíamos listar o dano causado pela morte, pelo sofrimento, a falta de recursos para atender a todos ao mesmo tempo, a maior ou menor vulnerabilidade de uns ou de outros, etc. Com certeza, o número de letras no nome não seria uma dessas características que tornam aquela questão um dilema moral. Portanto, alguém que seguisse um princípio moral baseado numa característica assim teria escolhido o princípio errado, objetivamente errado. Note que eu até poderia acertar, por sorte, em algum dos casos, mesmo tendo escolhido um critério imbecil (por exemplo, supondo que alguém que tivesse exatamente seis letras no nome fosse, por coincidência, também alguém cuja vulnerabilidade fosse maior e que necessitasse dos medicamentos antes de qualquer um dos outros, para poder sobreviver). 

Alguém poderia, nesse ponto, retrucar que tal raciocínio é de pouca importância prática porque quase ninguém segue um princípio baseado no número das letras do nome das pessoas atingidas pela sua decisão. Contudo, como pretendo mostrar na seqüência, a grande maioria das pessoas segue princípios morais, senão ainda piores, pelo menos igualmente ridículos, baseados nas características mais moralmente irrelevantes possíveis. A conclusão do raciocínio acima é que só faz sentido ser coerente com um princípio que se baseia numa característica moralmente relevante. Coerência por coerência não prova nem que em algum dos casos se tirou a conclusão correta. A insistência do apelo à coerência, por parte de alguns filósofos, talvez tenha levado algumas pessoas a pensarem que, em ética, tudo se resume à coerência. Quando se fala, por exemplo, “se você acha que é certo matar animais porque eles não são racionais, então tem que achar certo matar bebês, porque também não são racionais”, o que se pretende é mostrar ao interlocutor que, já que a falta de racionalidade dos bebês não torna certo matá-los, a falta de racionalidade nos animais não humanos não pode tornar certo matar estes. Não se quer dizer que, se a pessoa resolver sair assassinando animais não humanos e também bebês humanos porque eles não são racionais, então que ela está moralmente correta em todos esses casos, só porque foi coerente. Pelo contrário, como pretendo mostrar, se ela fizer isso, ela erra em todos os casos. Pensar que a moralidade se resume à coerência é esquecer do principal: só faz sentido ser coerente com um bom critério (ou seja, um que se baseie numa característica relevante). Da mesma maneira, quando se pergunta “mas, aceitarias que fizessem isso contigo?”, o que se quer é levar o interlocutor a pensar que, se quando ele é a vítima ele reconhece que fazer determinada coisa é errada (independentemente de se quem o faz é coerente ou não), e não há nenhuma característica moralmente relevante que o distinga de outras vítimas, então, que ele precisa reconhecer que é errado fazer a mesma coisa com os outros. O que não se quer dizer é que, se a pessoa em questão aceitar que façam alguma atrocidade com ela, então que ela está moralmente correta ao fazer atrocidades com os outros.  A coerência é um critério secundário, que só faz sentido à luz de princípios que se baseiem em características moralmente relevantes. Mesmo assim, atentando para a coerência é possível atentar para outra forma possível de se errar moralmente: tratar de maneira diferente dois ou mais casos que são similares em tudo aquilo que for moralmente relevante (ou, tratar de maneira similar dois ou mais casos que apresentam diferenças moralmente relevantes). Só que, isso tudo só faz sentido à luz da exigência de relevância.

Nesse ponto, alguém poderia perguntar: “por que você defende que as exigências de relevância e coerência geram razões que todos deveriam aceitar, e não são um mero sentimento seu de aprovação em relação a essas exigências?”. A resposta é que é irracional duvidar da validade desses critérios, e que isso não depende de sentimento nenhum (apenas de entendimento). Por exemplo, não faria sentido dizer “esses dois casos são similares em tudo o que for relevante para saber como devemos tratá-los, mas, mesmo assim, penso que devemos tratá-lo de maneira diferente um do outro”. Muito menos faria sentido dizer o seguinte: “Para descobrir como devemos tratar um caso, devemos pegar apenas o que for irrelevante para saber como devemos tratá-lo, e descartar tudo o que for de relevante para saber como devemos tratá-lo”. É por esse motivo que rejeitar esses critérios é ser irracional. Então, é falso que não existem razões (critérios que todos deveriam aceitar, sob pena de irracionalidade, independentemente de sentimentos), quando a questão é a moralidade. Note que dizer que relevância e coerência são essenciais ao bom raciocínio moral não quer dizer que eu sei exatamente quais são as características moralmente relevantes de cada caso e o que tornam dois casos relevantemente similares. Se alguém, por exemplo, objetar a minha análise anterior, alegando que levei em conta uma característica que não deveria (ou que faltou alguma que deveria ter levado em conta), não está a rejeitar a exigência de relevância: pelo contrário, está a dizer que me baseei em algo irrelevante (ou, que havia algo de relevante que não levei em conta). Tais críticas só fazem sentido se a exigência de relevância fizer. Portanto, não podem ser críticas contra a exigência de relevância.

Alguém poderia afirmar, mesmo aceitando a validade as exigências de relevância e coerência, que elas não nos dizem muita coisa sobre a moralidade, pois não oferecem nenhuma resposta “pronta” para nenhuma questão moral específica. É verdade que elas não oferecerão respostas prontas, pois são apenas o pilar inicial do raciocínio moral (o trabalho duro vêm em identificar o que há de relevante em cada situação), mas, é falso que elas não nos dizem muita coisa sobre a moralidade (pois, assim como se parte dos princípios básicos da matemática para desenvolver cálculos mais complexos, o mesmo acontece com a ética). Falarei agora de um segundo passo do raciocínio moral, que segue das exigências de relevância e coerência. Falei anteriormente da generalidade das razões. Quando se fala em razões no âmbito moral, essa generalidade tem formas específicas. As duas formas centrais dizem respeito à generalidade quanto aos agentes (os que tomam as decisões morais), e quanto aos pacientes (os que recebem o efeito da decisão). Note que essas duas categorias dizem respeito a condições, e não a indivíduos específicos: um mesmo indivíduo pode estar na condição de agente e de paciente, em diferentes momentos, e até ao mesmo tempo (como, por exemplo, quando é atingido por sua própria decisão). Quanto aos agentes, a generalidade das razões irá nos mostrar que, se eu tenho motivos para reconhecer que determinada decisão é moralmente obrigatória (ou, que é moralmente opcional), esses motivos não dependem de ser eu quem está pensando sobre elas (dependem, ao invés, de características moralmente relevantes da situação). Isso mostra que, se for moralmente obrigatório (ou moralmente opcional) eu fazer (ou deixar de fazer) determinada coisa, o é não apenas quando for eu que esteja tomando a decisão, mas qualquer agente. É isso que se quer dizer com generalidade: não se está a falar de justificativas para indivíduos específicos. Daí ser um erro o pensamento muito comum, de que a moralidade é uma coisa pessoal. A única maneira de justificar que um determinado agente não precisa cumprir um determinado dever moral, é dizer que característica moralmente relevante há no seu caso que o torna uma exceção (que faz dele um caso relevantemente diferente). Mas, note que essa justificativa também precisa ser geral: se a característica x for uma boa razão para dispensar A de cumprir determinado dever, é igualmente uma boa razão para dispensar qualquer outro agente que apresente a característica x (e não apenas A). Se, por sua vez, alguém alega que o agente B, apesar de apresentar a característica x, contudo, deveria cumprir o dever em questão, porque apresenta a característica y, então isso implica que (se o raciocínio estiver correto, ou seja, se a característica y realmente tiver o poder de anular x), não apenas B, mas qualquer outro agente que apresente as características x e y está dispensado de cumprir tal dever. A principal característica de uma razão é sua generalidade. Toda vez que se aponta uma exceção a uma regra, têm-se de apoiar em outra regra, também geral, que explique a exceção. Um erro muito comum é se pensar que o fato de um agente não acreditar que possui determinado dever o dispensa do cumprimento desse dever. Pensar assim é um erro porque qualquer razão que explique a existência de um dever não depende das crenças dos agentes para existir (e sim, de características da situação): como vimos, a verdade não depende da existência de crenças.

Já quanto aos pacientes da decisão, a generalidade das razões possui uma aplicação análoga. Se, por exemplo, é a característica x que torna errado matar o paciente A, então é errado matar todo e qualquer paciente que apresentar a característica x. Novamente, se apesar do paciente B apresentar a característica x, não for errado matá-lo porque ele apresenta também a característica y, então isso implica que não é errado matar todo e qualquer paciente que apresentar as características x e y, e assim por diante. Contudo, observe um ponto importante: nada nesse processo garante que escolheremos de certeza as características moralmente relevantes. Para garantir que a escolha esteja correta, não há outro remédio a não ser verificar sempre e sempre os mesmos raciocínios. Nesse ponto, os céticos morais (da maneira como uso o termo, me refiro àquelas pessoas que admitem que há verdade em ética, mas desconfiam do poder da razão em descobrir tais verdades), têm razão em apontar que o raciocínio ético não oferecerá demonstrações fechadas (imunes a críticas e novas revisões). Contudo, entre o extremo de se ter um método de raciocínio impecável e o outro de se descartar completamente a razão em um âmbito da vida, é melhor adotar um método de raciocínio qualquer, ainda que não seja perfeito. O raciocínio ético, mesmo da maneira que está desenvolvido até agora, permite sempre aprimoramento em seu próprio método. O raciocínio ético, embora não dê respostas fechadas, coloca o ônus da prova sobre o perspectivismo e ceticismo moral, em provar que tudo o que sai desse raciocínio é mera ilusão. E, quanto a não dar respostas imunes à novas críticas e revisões, o raciocínio ético não é exceção a outros tipos de raciocínio; não é, por isso, menos objetivo.

Essa moldura inicial do raciocínio ético pode parecer, à primeira vista, como tendo pouco poder de nos ajudar nos casos práticos. Mas, tal percepção inicial é ilusória. Na verdade, tal moldura é a única ferramenta disponível atualmente que pode nos ajudar a descobrir qual a decisão correta nos casos práticos (descobrir a verdade em ética). Por exemplo, ela já consegue mostrar por que o egoísmo é injustificável, e, tendo mostrado isso, podemos deduzir muitas outras implicações. Por “egoísmo” me refiro à teoria moral (ou seja, uma que visa dizer que decisões são justificáveis) e a prática que é conseqüência dela, embasada no seguinte pensamento: a possibilidade de diminuição ou aumento do meu bem-estar (necessidades, interesses, preferências, sofrimento, prazer, etc.) me oferecem uma razão para agir, fomentando o bem-estar, ao mesmo tempo em que o bem-estar de outros indivíduos (suas necessidades, interesses, preferências, sofrimento, prazer, etc.) não me oferecem (a menos que isso seja vantajoso para mim). Na seqüência, explicarei como a moldura inicial que expus do raciocínio ético consegue mostrar que o egoísmo é injustificável.