quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Links para textos essenciais!

Uma das discussões centrais da ética contemporânea é sobre a consideração moral dos animais não-humanos. Animais não-humanos devem ser considerados moralmente? Se sim, a vida deles vale tanto quanto a de um ser humano? Devemos então parar de comê-los? Devemos então parar de fazer experimentos neles? Devemos parar de usá-los para nos servir, seja lá em qual área for? 

Segundo entendo os argumentos endereçados por ambos os lados da questão, todas as respostas para essas perguntas é "sim". Mas, que tal dar uma olhada nos argumentos com os próprios olhos, a partir de textos de filósofos que iniciaram a discussão?

Textos clássicos introdutórios sobre ética animal:

A Significância do Sofrimento Animal (Peter Singer):

http://www.olharanimal.net/capa/1034-petersinger/1047-a-significancia-do-sofrimento

O Caso dos Direitos Animais (Tom Regan):

http://www.olharanimal.net/capa/1058-tomregan/1071-o-caso-dos-direitos-animais
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Uma pergunta que sempre surge é: "se levarmos os interesses dos animais a sério, deveríamos impedir os danos que eles sofrem e que não são causados por nós? Por exemplo, na natureza há predação, inanição, parasitismo, doenças, morte por queimadura, frio, etc. Deveríamos tentar minimizar esses males?

A maioria dos filósofos da ética animal (e a maioria das pessoas, incluindo a maioria dos defensores dos animais) endereça alguns argumentos para dizer que não temos esse dever. É aí que minha posição se distancia da posição dessas pessoas, porque, em meu entender, nenhum dos argumentos realmente procede. Uma análise desses argumentos eu fiz aqui: http://lucianoccunha.blogspot.com/2010/08/sobre-danos-naturais.html

E agora, que tal dar uma olhada no que outros filósofos, que também defendem que temos esse dever, tem a dizer sobre a questão? Abaixo, coloquei alguns links com textos sobre o assunto.

Antes de entrarmos no debate ético sobre a questão, é importante ter em mente como é realmente a vida dos animais no mundo natural. Infelizmente, tal vida não é o paraíso que gostamos de imaginar - pelo contrário. Portanto, abaixo estão alguns links de textos que descrevem a vida natural:

DAWRST, Allan. How Many Animals are There? Disponível em http://www.utilitarian-essays.com/number-of-wild-animals.html


DAWRST, Allan. The Predominance of Wild-Animal Suffering over Happiness: An Open Problem. Disponível em http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf


DAWRST, Allan The Importance of Wild-Animal Suffering. Disponível em http://www.utilitarian-essays.com/suffering-nature.html 

«A quantidade total de sofrimento por ano no mundo natural está para lá de toda a contemplação decente. Durante o minuto que me leva a compor esta frase, milhares de animais são comidos vivos, outros correm pelas suas vidas, a gemer de medo, outros são lentamente devorados por dentro por parasitas vorazes, milhares de todos os tipos morrem de fome, sede e doença". (Richard Dawkins).

Tendo em mente já os fatos sobre o mundo natural, que tal entrar agora no debate ético sobre a questão?
Abaixo estão alguns excelentes artigos que podemos encontrar na internet sobre o tema:

Textos sobre intervenção na natureza e minimização do sofrimento:


Salvando o Coelho da Raposa (Steve F. Sapontzis):

http://www.olharanimal.net/capa/1145-steve-f-sapontzis/1358-salvando-o-coelho-da-raposa-1

Contra o Apartheid das Espécies (Yves Bonnardel):

http://www.olharanimal.net/capa/1119-yvesbonnardel/1121-contra-o-apartheid

Disvalue in Nature and Intervention (Oscar Horta):

http://www.olharanimal.net/pensata-painel/1138-devemos-intervir-na-predacao/1350-oscar-horta

"Quando nossos interesses, ou os interesses daqueles que nos importamos serão danados, não reconhecemos uma obrigação moral de 'deixar a natureza seguir o seu curso', mas, quando não queremos ser importunados com uma obrigação, 'esse é o jeito que o mundo funciona' provê uma boa desculpa" (Steve Sapontzis)

"Tivesse sido a 'Mãe Natureza' uma mãe real, ela estaria na cadeia por abuso infantil e assassinato" (Nick Bostrom)

Já o texto abaixo é para termos uma melhor compreensão do que nos ensina a teoria proposta por Darwin. É comum que muitas pessoas, inclusive algumas que afirmam aceitarem a teoria de Darwin, afirmarem que há, por trás dos processos naturais, uma inteligência guiando tais processos e uma meta nos mesmos. Nada poderia estar mais distante, e ser mais contrário, ao que Darwin quis mostrar com sua teoria. O artigo abaixo esclarece alguns desses equívocos:

A Natureza não Escolhe (David Olivier):

http://www.olharanimal.net/capa/1136-david-olivier/1327-a-natureza-nao-escolhe

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"Seja lá qual tiver sido o começo desse mundo, o final será glorioso e paradisíaco, para além do que nossa imaginação pode conceber" (Joseph Priestley)

Já imaginou um mundo real (e não imaginário) onde não houvesse sofrimento algum, e a felicidade fosse tão extrema que fizesse parecer quase nada o maior pico de felicidade que alguém já sentiu até hoje? Imagine que, além disso, nós manteríamos (aumentaríamos, na verdade) nossa inteligência, criatividade artística e senso crítico? Imagine que, além disso, não apenas os humanos, mas todas as criaturas sencientes também viveriam em paz, sem nenhum sofrimento.

Ficção? Não. Um filósofo inglês chamado David Pearce propõe exatamente isso, e argumenta que a construção de tal paraíso será tecnicamente possível num futuro não muito distante. O autor oferece razões também do porquê temos o dever de criar tal mundo.

(Em tempo: David Pearce estará no Brasil em Novembro de 2010, discutindo sua proposta).

Textos sobre transhumanismo e abolição do sofrimento:

O Projecto Abolicionista (David Pearce):

http://www.abolitionist.com/portuguese/index.html

Reprogramar os Predadores (David Pearce):

http://www.abolitionist.com/reprogramming/portugues/index.html

Neurociência Utopista (David Pearce):

http://www.superhappiness.com/portugues/index.html

Entrevista com Nick Bostrom e David Pearce:

http://www.hedweb.com/transhumanism/portugues.html



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"Não há argumentos biológicos, físicos, matemáticos ou históricos contra a filosofia. Qualquer argumento contra a filosofia teria de ser filosófico. Portanto, para rejeitar a filosofia temos de filosofar. O que demonstra que a filosofia é inevitável. Argumentar contra a filosofia é como gritar "Não estou a gritar!" (Desidério Murcho)

Infelizmente, vivemos em um mundo onde o pensamento crítico é algo raro. A maioria das pessoas sustenta com uma convicção gritante a idéia de que disputas sobre determinados assuntos como "o que é o certo/errado?", "o que é possível conhecermos?", "temos livre arbítrio ou somos determinados?", "O que sou eu?" não passam de meras questões de opinião pessoal. Talvez essas pessoas nunca tenham examinado mais de perto e com rigor metodológico essas crenças, e infelizmente continuam a pensar que a filosofia não passa de devaneios. Portanto, pra desfazer tais equívocos, deixo abaixo os links de dois textos ótimos, de autoria do filósofo Desidério Murcho, que esclarecem muito sobre o que é a filosofia e como o pensamento crítico pode desfazer alguns equívocos graves que costumamos sustentar:


ótimas introduções sobre filosofia em geral, argumentação e pensamento crítico:

A Inevitabilidade da Filosofia (Desidério Murcho):

http://criticanarede.com/html/inevitavel.html

Zen e a Arte de Manutenção da Filosofia (Desidério Murcho):

http://criticanarede.com/zen.html

Raciocínio Ético: Conteúdos (parte 7)


PARTE 7 - SOBRE O RACIOCÍNIO ÉTICO: OS CONTEÚDOS

Luciano Carlos Cunha

Dando continuidade à lista de metas válidas para a ética que delimitam, umas, os excessos de outras:

6) Preocupação com os meios: Como vimos, muitas das metas da ética passam nos testes formais. Contudo, na busca dessas metas, os meios utilizados podem não necessariamente estarem de acordo com esses testes formais. Assim, diminuir o sofrimento é uma meta louvável, mas fazer isso através de causar dano a outros indivíduos não é. Assim, é sempre preferível buscar aliviar sofrimento sem causar danos a ninguém.

Contudo, aqui os filósofos também discordam sobre se essa regra deve ser absoluta e sobre quando é legítimo quebrá-la. Por exemplo, defensores dos direitos dirão que é sempre errado aliviar um sofrimento grande em muitos indivíduos causando um dano (seja lá qual o tamanho do dano) a poucos indivíduos. Por exemplo, parece óbvio que é errado matar um indivíduo para salvar outros. Outros filósofos, mais consequencialistas, dirão que a preocupação imparcial exige que os danos sejam quantificados. Por exemplo, não é tão óbvio que seria errado causar um dano pequeno a poucos (ou mesmo muitos) indivíduos com vistas a aliviar um sofrimento muito maior em muitos outros.

Um exemplo fictício pode ajudar a clarear as coisas aqui: supondo que fosse descoberto que a cura do câncer estaria num remédio feito com cabelos. Para tal, seria preciso toneladas de cabelo, de tal forma que a única maneira disponível fosse obrigar as pessoas a doarem seus cabelos. Os filósofos consequencialistas apontariam, penso eu, que ficar careca é um dano menor do que morrer de câncer, portanto, teríamos obrigação de doar o cabelo – do contrário estaríamos sendo egoístas. Por outro lado, poderia-se objetar que, se o necessário fosse doar uma perna ou um braço talvez a resposta não fosse tão óbvia. Novamente, o que esse exemplo ilustra é que as discordâncias surgem nem tanto com relação a metas totalmente divergentes, mas sobre onde traçar a linha do dano admissível.

7) Direitos: Como vimos, alguns filósofos defendem que certas coisas jamais deveriam ser feitas, de tão ruins que são, mesmo que com isso a conseqüência não traga a maior felicidade nem traga o maior alívio de sofrimento possível para todos os atingidos. Os teóricos dos direitos defendem que certos interesses deveriam ter uma proteção especial, de tão importantes que são, e que não podem ser sacrificados apenas porque isso diminuiria muito sofrimento de muitos inocentes -  como o direito à vida e à integridade física. Os teóricos utilitaristas, ao contrário do que comumente se coloca, não precisam rejeitar por completo a idéia de direitos, pois, pode ser que a maior felicidade/diminuição de sofrimento seja alcançada, em longo prazo, se certas coisas que, aparentemente trariam maior felicidade em curto prazo, forem proibidas. Por exemplo, manter a idéia de um direito à vida pode incentivar os cientistas a buscarem novas formas de curarem doenças sem que tenham de matar ninguém para chegar nisso.

Nessa mesma linha, alguns defendem que temos direito também a outras coisas, como em terem cumpridas as promessas que nos foram feitas ou em receber a verdade. Por exemplo, supondo que conheçamos um caso de alguém que diz amar a esposa, mas, na verdade, está apenas a usando para conseguir dinheiro. Pode ser que sua esposa fosse mais feliz se nunca soubesse que aquele que ela ama e diz corresponder esse sentimento, na verdade, está mentindo. Contudo, alguns teóricos dos direitos diriam que tal pessoa tem o direito moral de saber a verdade, mesmo que isso a faça sofrer muito. Vale lembrar aqui que os utilitaristas diriam que, se realmente estamos preocupados com ela, e sabemos que dizer a verdade poderia até matá-la ou deixá-la louca, então seria melhor não dizer a verdade. Mais uma vez, aqui, a discussão parece depender da quantidade de dano tolerada por se dizer a verdade.

Direitos morais e direitos legais: Até agora falamos de direitos morais (direitos que existem independentemente de leis). Pode ser que determinados direitos morais não estejam positivados na forma de lei, e que determinadas leis não sejam direitos morais (ou não sejam nem éticas). Contudo, pode ser que direitos morais sejam utilizados como justificativa para a criação de direitos legais. Por exemplo, poderíamos dizer que, se é válida uma idéia como o direito moral à vida de todos os pacientes de uma decisão, então são esses pacientes que portam esses direitos; e os portam independentemente do que pensam os outros agentes. Assim, se conclui que é legítimo existir uma lei obrigando todos os agentes a cumprirem tal direito, pois seria violar a imparcialidade se déssemos mais peso ao interesse do agente em violar tal direito (ou, ao nosso interesse em não obrigar os outros a cumprir os princípios éticos) do que à proteção do interesse que é base para a existência de tal direito. Assim, por exemplo, não faz sentido dizer que “reconheço que animais não-humanos tem direitos morais, mas sou contra existir uma lei que obrigue as pessoas a pararem de comê-los porque é sempre errado impedir os humanos de realizarem suas preferências”. Se é dito isso, não se reconhece os direitos morais, nem se está sendo imparcial (pois dá mais peso ao interesse injustificável dos humanos).

8) Justiça: Como vimos anteriormente, essa meta diz respeito a eqüidade, e está no cerne da ética, pois pode ser derivada diretamente da exigência de imparcialidade. O fomento da justiça pode ser dividido em: (a) Distributiva: quando há certa quantidade de benefícios (ou danos) a serem distribuídos. Pode parecer estranho a justiça mandar distribuir danos, mas é que existem algumas decisões onde todas as opções disponíveis inevitavelmente danam alguém. (b) Retributiva: onde a preocupação com a justiça dependerá do merecimento dos que serão atingidos pela decisão. Daí vem a idéia de, por exemplo, recompensar alguém que fez algum bem para além do que era devido, e punir com o impedimento da liberdade corporal (prender) alguém que, com seu movimento, causa danos a outros. (c) Restitutiva: quando trata de restabelecer benefícios que foram perdidos. Essa última vertente é similar ao princípio da restituição de beneficência, com a diferença que a preocupação maior aqui é com como fazer isso eqüitativamente.

9) Relação x imparcialidade: A maioria dos pensadores da ética concorda que devemos ter uma preocupação com a imparcialidade, mas concorda também que as relações especiais (por exemplo, familiares e de amizade) são coisas muito importantes na vida. O que discordam é o quanto de peso deve ter cada preocupação. Do lado das relações pessoais, pode-se apontar que aquele que tem uma preocupação excessiva em tratar por igual todos indivíduos afetados pela sua decisão, e que por isso deixa de se dedicar para sua família ou amigos, não está agindo bem – como apontam algumas feministas da ética do cuidado. Contudo, do lado da imparcialidade, podemos dizer também que aquele que favorece alguém, em um concurso público, só porque é seu parente, comete uma injustiça. Ainda, do lado da imparcialidade, muitos pensadores apontariam que aquele que compra coisas para os familiares além do que necessitam ou dedica tempo demais para si ou para os que mantém uma relação especial, enquanto poderia ajudar indivíduos que morrem de fome com tal tempo e tal dinheiro, também não age bem - como diriam os utilitaristas. A grande pergunta é então buscar um meio termo, sobre o quanto se dedicar às relações pessoais e o quanto se dedicar à imparcialidade.

10)Altruísmo x preocupação consigo: Vimos que, no cerne da ética, está o bem do outro, haja visto que o egoísmo trata interesses semelhantes com consideração diferenciada, por isso não pode estar correto. Contudo, uma preocupação legítima é “o quanto devo me dedicar para os outros?”. Aqui também, uma resposta exata é sempre difícil de ser dada, mas podemos traçar alguns extremos. Se alguém se dedica tanto para os outros a ponto de causar mais dano a si mesmo do que beneficiar os outros, está fazendo algo que está para além do seu dever (sendo, portanto, um ato heróico, supererrogatório). Por outro lado, aquele que se nega a pedir socorro aos bombeiros enquanto vê uma casa em chamas também está exagerando ao extremo sua falta de preocupação com os outros. Os filósofos utilitaristas têm, ao longo das décadas, sustentado a tese de que o padrão geral atual da maioria das pessoas é demasiadamente preocupado consigo mesmo, pois nos damos ao luxo de gastarmos muito com coisas das quais não necessitamos realmente ou gastarmos tempo demais com a preocupação conosco quando existem indivíduos que estão em situação de miséria absoluta e sofrimento absoluto das quais poderíamos, com pouco custo, diminuir drasticamente.

11) Fomento de sentimentos morais (compaixão, bondade, etc.). Essa categoria não é exatamente um conteúdo para a moralidade, mas sim, virtudes que podem facilitar o cumprimento dos conteúdos do que a ética prescreve. Alguém que conhece racionalmente os conteúdos da moralidade, mas não possui tais sentimentos, pode ter maior dificuldade em realizar tais conteúdos, embora, alguém que consiga realizar tais conteúdos sem ter tais sentimentos possua uma força moral maior ainda. Pode acontecer também que um sentimento vá contra o que o raciocínio aparentemente prescreve fazer. Pode ser que o sentimento seja um preconceito, mas pode ser que o sentimento revele, no final da análise minuciosa racional, que era o raciocínio anterior que estava movido por preconceitos.

12) Fomentar o uso do raciocínio ético. Como vimos acima, o raciocínio crítico é essencial para compreendermos o que a ética prescreve e para não cairmos em preconceitos, falácias, distorções, etc. Aqui, no entanto, o fomento do raciocínio aparece também como uma virtude, pois como o raciocínio ético está fundado na imparcialidade, e como nossos sentimentos dificilmente são imparciais (tendemos, por exemplo, a ter mais compaixão por determinados seres em detrimento de outros), o fomento do raciocínio pode denunciar que há problemas éticos graves onde o sentimento ainda não percebeu. Pode também mostrar que é possível causar mal a alguém mesmo que estejamos movidos pelos melhores sentimentos, o que deve ser um sinal de alerta.

Com a coluna de hoje terminamos a longa exposição sobre as características centrais de um raciocínio ético. Trabalhamos muitos conceitos e talvez alguns deles sejam um pouco complicados, então talvez ler novamente do início até aqui ajude a clarear as coisas e facilite o entendimento do que virá depois. Na próxima coluna daremos início à parte prática: analisaremos alguns argumentos comumente utilizados contra a idéia de igualdade para os animais não-humanos.

Até lá!



Raciocínio Ético: Conteúdos (parte 6)


Sobre o raciocínio ético: os conteúdos (Parte 6)

Luciano Carlos Cunha

Na coluna anterior, após termos concluído que o benefício/malefício sobre os atingidos pelas nossas decisões deve ser o ponto central do raciocínio ético, preparamos terreno para investigar a possibilidade da existência de outros conteúdos válidos para a ética.

Abaixo, encontra-se uma lista de conteúdos que serão utilizados ao longo dessa análise. Estes, em meu entender, passam nos testes formais e são metas válidas para a moralidade (ainda que nenhum deles seja absoluto). E não são absolutos justamente porque um tipo de preocupação pode limitar os excessos de outra. Assim, nos comentários abaixo citarei algumas críticas quanto a essas metas, mas isso não significa que devamos descartá-las; significa apenas que essas críticas apontam os excessos que devem ser evitados na busca de tais metas.  

Vale lembrar que todos esses conteúdos precisam ser universalizados, ou seja, se alguém adota, por exemplo, o conteúdo do fomento da liberdade como meta da ética, só entra aquela liberdade que é conseguida sem impedir a liberdadede outros indivíduos, e, essa liberdade dos outros indivíduos deve seguir o mesmo critério. Se a meta é a autonomia, não pode violar outras escolhas autônomas universalizáveis; se a meta é a felicidade, não pode violar outras satisfações da felicidade que também são universalizáveis, etc. Seguem-se exemplos disso abaixo:

1) Satisfação/felicidade. A maioria dos filósofos não usa esses termos como sinônimos. Por falta de espaço, aqui, no entanto, serão utilizados assim. Tal preocupação pode ser dividida, de acordo com o que o agente terá de decidir, da seguinte maneira: (a) Não-maleficência: todos aqueles atos que visam não causar mal aos atingidos. Esse princípios diz respeito a algumas coisas que os agentes devem deixar de fazer (omissão), a fim de evitar causar danos. Os danos podem vir na forma de uma inflição de algo ruim, ou de uma privação de algo bom, sendo que na privação, não necessariamente há percepção do dano por parte do indivíduo prejudicado (como, por exemplo, quando alguém é assassinado enquanto está inconsciente). (b) Beneficência: envolve produzir um benefício, o que geralmente vêm com uma ação (mas também pode acontecer por parte de omissões). Pode ser dividida em: (b1) curar um dano já existente (b2) prevenir que novos danos aconteçam; (b3) restaurar um benefício que foi perdido; (b4) aumentar benefícios a partir do nível que estão.

Como vimos, a preocupação com a satisfação pode indicar limites em várias outras preocupações: (a) pode mostrar que seguir uma regra que cumpre os critérios formais causará mais danos do que benefício, em determinados casos, como vimos com o exemplo da regra “jamais tirar uma vida humana”; (b) pode mostrar que uma preocupação excessiva em fomentar a liberdade corporal pode trazer mais danos do que benefícios, caso outros interesses importantes não estejam sendo satisfeitos. Por exemplo, não é exatamente verdade que todos os casos de animais domesticados estariam melhor na rua, por estarem livres – a satisfação de outros interesses como viver livre de sofrimento, fome, frio, doenças, etc. poderiam estar em falta. (c) Pode mostrar que uma preocupação excessiva com satisfazer preferências pode danar estes mesmos indivíduos. Por exemplo, uma criança pode preferir brincar em um lugar onde poderá ser atropelada; (d) Uma preocupação excessiva com que “a justiça seja feita, sejá lá quais forem os custos” pode gerar conflitos futuros intermináveis, ainda piores; (e) Atos danosos podem vir de boas motivações (“de boas intenções, o inferno está cheio”) e alguns atos, mesmo com motivações ruins, podem causar benefícios. Contudo, um proponente do critério da satisfação reconheceria aqui que decisões movidas por motivações boas têm chances muito maiores de terminarem em boas conseqüências; (e) Uma preocupação excessiva com dizer a verdade pode ser a ruína do recebedor da verdade, como, por exemplo, quando contamos a alguém que está muito doente e isso afeta de tal modo seu estado psicológico que o impede de se recuperar.

2) Preferências: Pode ser extremamente difícil, em muitos casos, determinar o que vai fazer alguém feliz, ou o que vai aliviar seu sofrimento. Com base nisso, alguns filósofos sugerem que devemos perguntar a tal indivíduo o que ele prefere, independentemente de sabermos se isso será o melhor para ele a longo prazo ou não. Embora ajude em muitos casos, um problema com essa visão é que certamente certas preferências que dão satisfação a curto prazo causam sofrimento a longo prazo – como, por exemplo, fumar. Alguns autores, que vêem a satisfação de preferências como algo bom em si mesmo, dirão que é melhor permitir à pessoa satisfazer seu desejo por fumar, mesmo que isso venha lhe causar câncer. Outros, que vêem a satisfação de preferências como um caminho para garantir a felicidade, teriam de admitir que fomentar a preferência nesse caso não é caminho para fomentar a felicidade a longo prazo, ou, até mesmo, para fomentar outras preferências. Outro limite dessa visão é que existem indivíduos que sabemos que possuem preferências (crianças muito pequenas, animais não-humanos) mas não podem, em muitos casos, nos comunicá-las. Pode acontecer ainda, que eles nos comuniquem, mas certamente satisfazer tal preferência irá daná-los. Por exemplo, um cão que pede para ir brincar na rua, quando sabemos que certamente será atropelado. 

3) Autonomia: Com base nos problemas da satisfação de preferências x satisfação da felicidade, alguns filósofos sugerem o seguinte: com relação a indivíduos que possuem capacidade para compreender e julgar as conseqüências de suas escolhas (possuem autonomia), devemos respeitar suas escolhas, mesmo que isso venha a lhes causar sofrimentos futuros; já indivíduos que estão destituídos de autonomia (temporariamente ou permanentemente), devemos adotar uma posição mais paternalista e buscar sua felicidade (o que, às vezes, irá nos colocar contra a sua satisfação de preferências quanto ao momento presente). Uma forte crítica a essa visão diz respeito à dificuldade de saber se alguém, mesmo sendo um humano adulto, compreende as conseqüências de suas escolhas e os possíveis danos envolvidos. Outra crítica diz respeito a algumas visões restringirem a moralidade ao respeito pela autonomia. Sabemos que alguém ter liberdade para fazer escolhas autônomas não é o bastante para alguém se sentir razoavelmente bem, pois todas as escolhas disponíveis podem ser muito ruins. Assim, muitos filósofos defendem que, além de respeitarmos a autonomia, teríamos deveres de, por exemplo, beneficência, ou seja, ajudar outros indivíduos. A autonomia, em alguns autores, aparece como sendo boa em si mesma (mesmo que não traga felicidade) ou como derivada da felicidade (“as pessoas se sentem melhor quando suas escolhas autônomas são respeitadas”).

4) Liberdade corporal. A liberdade corporal é vista, em alguns pensadores, como boa em si mesma; em outros, como condição para o fomento da felicidade. Os do primeiro tipo podem apontar que mesmo que, por exemplo, um animal não-humano seja extremamente feliz sendo cuidado por humanos, algo a que lhe é devido está faltando, que é viver solto, mesmo que isso for deixá-lo numa condição pior. Os do segundo tipo diriam que a liberdade corporal só é importante enquanto for condição necessária para a busca de satisfação e que, quando se torna um inferno (como pode ser o caso de um animal que viva livre mas não tenha o que comer, nem com quem se relacionar e esteja vulnerável a doenças ou predação), deixa de ser um bem. Como vimos, a do primeiro tipo entra em conflito direto com a exigência conseqüencial, por pretender ser independente de preferências, satisfação, felicidade, dos atingidos – portanto, deveria ser descartada.

5) Motivação correta. Como falamos, é possível causar um mal, mesmo tendo uma boa intenção. Contudo, não é verdade que o valor moral de uma decisão reside todo nas suas consequências. Se assim o fosse, uma ação que visa uma preocupação consigo próprio, e que por acaso evita a morte de alguém, seria tão recomendável quanto uma que tem realmente a intenção de evitar a morte desse alguém. Podemos citar como exemplo o veganismo motivado pela preocupação com a saúde do próprio agente e o veganismo motivado por evitar a morte dos animais. A preocupação com a motivação correta também pode estar sendo vista ou como boa em si mesma ou como fundada nas conseqüências. No primeiro caso, uma decisão que começa com uma intenção ruim já é errada. No segundo, aponta-se que é mais fácil resultarem boas conseqüências de boas intenções. Contudo, os defensores dessa última posição têm de admitir também que, se de uma intenção ruim estiverem saindo boas conseqüências, e a outra opção com boa intenção tiver conseqüências não tão boas, então a consequência boa da intenção ruim é melhor.

Raciocínio Ético: Conteúdos (parte 5)


Sobre o raciocínio ético: os conteúdos (Parte 5)

Luciano Carlos Cunha

Na última coluna, vimos que temos, diante de nós, duas opções: ou adotamos a visão de que, além de levarmos em conta as exigências formais, devemos levar em conta também o bem dos atingidos pela decisão ou adotamos a visão de que devemos cumprir as exigências formais, sem nos preocuparmos com as consequências.

Defesa da exigência consequencial:
Peter Singer, em The Expanding Circle¹  oferece um argumento em defesa da preocupação com as consequências , observando em primeiro lugar que existem duas possibilidades do princípio formal absoluto (um que não leve em conta benefício/malefício sobre os atingidos) ser recomendado: ou ele está sendo recomendado como uma preferência pessoal (uma mera opinião pessoal de quem está falando), ou como tendo validade universal (algo que deveria ser válido para todos cumprirem). Todas as duas maneiras falham. Vejamos por que:

(1) Se é uma preferência pessoal (“eu acho que a vida humana jamais deveria ser abreviada, mesmo quando a pessoa está suplicando para morrer há meses, porque me deixa mais satisfeito ver a vida humana preservada”), então lidamos adequadamente com ela pesando-a contra preferências contrárias, afinal de contas, ela é apenas uma opinião pessoal (não um argumento), que foca no interesse pessoal – não é um princípio ético. Com isso, vemos que não há por que dar mais peso à preferência desse alguém e não a qualquer outra preferência contrária, já que sua decisão irá atingir outros, não somente ele. A posição subjetiva acaba, ironicamente, na imparcialidade. Poderíamos dizer que, no exemplo acima sobre a eutanásia, embora devamos levar em conta a preferência de alguém por ver uma regra jamais ser violada, temos de levar em conta também a preferência daquele que vive tal vida e suplica por ela ser abreviada. Qual sofrimento é maior?

(2) Se é uma recomendação em bases universais (que todos devem cumprir, independentemente do que achem ou prefiram) e não leva em conta se os afetados pela decisão vão ser atingidos maleficamente por ela, então precisa supor que existe uma esfera de fatos éticos no universo que prescreve o que devemos fazer, sendo esta uma esfera com total independência do que é melhor para os atingidos (independentemente de seus interesses, preferências, sofrimentos etc.). No dia a dia não pensamos assim. Consideramos errado, por exemplo, maltratar um cachorro porque ser maltratado é ruim para ele, e não devido a alguma intuição misteriosa que independe da consequência sobre ele. Na falta de provas a favor da existência da misteriosa esfera de fatos éticos independentes de consequências, devemos ficar com a explicação mais simples de que a ética visa trazer felicidade ou satisfazer preferências de uma maneira imparcial, universal, geral etc. – é o que nos diz o argumento de Singer.

Juntando as duas classes de exigências: Concordar que a ética deve reconhecer como conteúdo uma preocupação com a satisfação/frustração dos atingidos pela decisão não nos compromete ao consequencialismo estrito (atingir as melhores consequências finais, seja lá por que meios forem), já que as outras exigências formais também estão sendo levadas em consideração. As exigências formais apresentam ainda a preocupação deontológica de fazer a coisa certa pelo motivo certo. Portanto, ao incorporarmos a exigência consequencial (causar benefício, evitar malefício) não significa que uma ação que causa benefício, mas, pelo motivo errado, seja ética. Por exemplo, ser vegano por motivos de saúde não demonstra uma preocupação ética, embora possa ter boas consequências. Por outro lado, com a adição da exigência consequencial, uma ação que é feita pela motivação correta, mas causa mais danos do que benefícios, não é ética (como diz o ditado, “de boas intenções o inferno está cheio”). O que diferentes pensadores discordarão nesse sentido é sobre o quanto de peso devem ter as consequências e sobre o quanto de peso devem ter outras considerações (por exemplo, a motivação do agente, os meios usados para chegar nas boas consequências etc.). É raro encontrarmos posições extremas, seja defendendo que apenas consequências contam, seja defendendo que apenas as outras considerações contam. Discordância entre as posições que dão peso às consequências também surgem: consequências sobre quem devem ser consideradas? – Todos os atingidos? Apenas os diretamente atingidos? O quanto considerar os desdobramentos de consequências? Apesar da discordância sobre o ponto exato onde traçar a linha, é possível delinear pontos extremos dos dois lados onde com certeza nenhum raciocínio ético bom pretende cair.

O ponto de vista do paciente da decisão:
Outra observação importante é que, se adicionamos a preocupação com o bem/mal que os afetados pela decisão podem sofrer, deixa de haver uma distinção rígida entre ação e omissão. Não cabe mais dizer que é errado eu prejudicar alguém, mas não tenho nada a ver com isso se o prejuízo for causado por outro alguém (supondo que eu poderia impedir esse prejuízo sem graves conseqüências para mim). Não cabe mais distinguir, por exemplo, se um ato é matar ou deixar morrer, mas sim, ver se o resultado final (morte) é benéfico ou maléfico para aquele que morre, quer por minha ação, quer por minha omissão. Como vimos, também não cabe mais distinguir entre males causados por minha ação ou pela ação de pacientes morais (forças naturais, animais não humanos, crianças etc.) porque se eu tenho condições de intervir num resultado maléfico e me omito, a decisão a favor do estado maléfico também é minha embora não tenha origem na minha ação (teve continuidade na minha omissão). Juntando todas essas exigências, vemos que, na ética, é o ponto de vista do paciente da decisão (que pode incluir também aquele que decide, caso seja atingido pela decisão) que é o centro de toda a questão – por exemplo, para um animal que vai ser morto, tanto faz se ele vai ser morto por mim, por outro humano, por outro animal, ou por um raio ou vulcão.

Supondo, por exemplo, que temos de escolher entre permitir um animal viver livre na selva com uma existência curta e extremamente infeliz (doenças, estar sujeito à predação, inanição etc.) ou permitir-lhe viver em contato com humanos (mas não sendo escravizado; inclusive ganhando suprimento de suas necessidades físicas e psicológicas) com uma existência longa (morrer de velhice) e feliz. Se alguém defende que é melhor a primeira opção, não está adotando o que o animal provavelmente escolheria caso pudesse escolher e tivesse compreensão das informações relevantes; está apenas fomentando um ideal (no caso, o da liberdade corporal) que é dele (de quem decide), mas não necessariamente do paciente da decisão. Assim, as exigências que acabamos de ver tiram todas as nossas ilusões e tornam muito claro para nós se estamos tomando alguma decisão baseada no fingimento (por exemplo, diferenciar ação e omissão quando elas não são relevantes, já que as consequências são iguais).

Paralelos com exigências formais:
Adotar o ponto de vista do paciente da decisão também explica por que o princípio, para ser ético, deve prescrever a mesma decisão independentemente do agente que a toma (que também é uma exigência formal): do ponto de vista do paciente, o malefício/benefício que lhe recai sobre independe de quem o realiza/permite realizar. Outra exigência formal diz que as decisões são um dever, certas ou erradas independentemente do que quem decide gostaria que fosse. Com a adição do ponto de vista do paciente da decisão, vemos também que a decisão que lhe afeta independe de se quem decide gosta ou não dele, sente ou não compaixão por ele etc. Com a adição das exigências consequenciais, vemos que alguém pode ter bons sentimentos por outro indivíduo (amor, compaixão etc.) e ainda assim causar um mal a esse indivíduo, caso não faça a ação correta. O outro lado também é verdade: alguém pode não sentir absolutamente nada por quem será atingido pela decisão, e ainda assim beneficiá-lo, caso reconheça que é um dever fazê-lo. É claro, também pode acontecer que sentimentos (amor, compaixão etc.) proporcionem uma abertura ao indivíduo compreender melhor o ponto de vista dos pacientes de suas decisões, assim como pode acontecer que um indivíduo cumpra uma regra que julga ser um dever ético, mas não percebe que está errando justamente por não saber se colocar no lugar dos pacientes da decisão.

Corrigir desigualdade: Por fim, podemos derivar, de todas essas exigências tomadas juntas, uma final, que é a ética se basear na equidade, ou seja, em corrigir as desigualdades. Assim, quando tomamos uma decisão, não devemos ver simplesmente o quanto ela afeta cada indivíduo atingido por ela, mas em que situação esses indivíduos estavam antes e continuarão depois da decisão. Por exemplo, se temos que distribuir, para cinco indivíduos, cinco quilos de comida, uma distribuição igual diria para dar um quilo para cada um. Contudo, se vemos que quatro desses indivíduos já possuem comida em abundância e um deles está lutando para sobreviver com muito pouca, então a equidade manda distribuir os cinco quilos para este último. Interessante notar que, mais uma vez, vemos que, do ponto de vista do paciente da decisão, tanto faz se ele vai sofrer desigualdade vinda das mãos de humanos ou de qualquer outra fonte. Por exemplo, na natureza, o que mais há é desigualdade de oportunidades: uns poucos nascem fortes e sadios; muitos nascem com terríveis doenças ou deformidades; os mais fortes e espertos quase sempre se dão melhor etc. Podemos até dizer que, de males que provêm de nossas ações temos mais responsabilidade ainda porque eles têm origem em nós, mas não podemos mais fingir que não devemos ter responsabilidade alguma sobre nossas omissões, porque fazer isso seria realmente escancarar que não estamos realmente nem um pouco preocupados com o bem do outro. Portanto, longe de ser uma veneração pelos processos naturais, a ética existe para corrigir desigualdades, sejam elas existentes devido a alguma decisão deliberada, sejam elas naturais. A existência de desigualdades no universo é, por si só, algo de valor moral negativo.

Na próxima coluna veremos algumas outras metas válidas para a ética.

¹SINGER, Peter. The Expanding Circle: Ethics and Sociobiology. New York: Farrar, Straus & Giroux, 1981. p. 108-11.

Raciocínio Ético: Conteúdos (parte 4)


Sobre o raciocínio ético: os conteúdos (Parte 4)

Luciano Carlos Cunha
Nas colunas anteriores, discutimos doze critérios a respeito da forma que um raciocínio ético deve tomar. Como mencionei, esses critérios não estão esgotados; pode ser necessário aumentar a lista, a fim de iluminar melhor nosso guia para decisões. Independentemente dos futuros aperfeiçoamentos, ainda não adicionamos nenhum conteúdo a essa forma. Devemos ser imparciais, mas devemos considerar imparcialmente exatamente o que? Devemos aumentar a quantidade de ações éticas no mundo, mas que ações exatamente são essas?

Forma validando o conteúdo/ mais de um conteúdo

É importante notar que os possíveis conteúdos que preencherão a forma serão apontados como válidos ou não a partir da própria forma. Ou seja, além dos critérios formais guiarem as decisões, guiam também a escolha de conteúdos. Chamarei esses conteúdos de “metas da moralidade”, que são simplesmente aquilo que as decisões éticas devem buscar aumentar no universo. Veremos agora que não existe apenas um, mas vários tipos de conteúdo que passam nos testes propostos pelos critérios formais. Talvez daí venha a confusão com pensar que então a ética é relativa ou subjetiva. É importante ter em mente, contudo, a diferença entre existir mais de um conteúdo possível para a moralidade e qualquer conteúdo valer como conteúdo moral. Portanto, a ética continua objetiva, mesmo havendo várias metas legítimas de serem buscadas.

Conteúdos em conflito

Optei por considerar aqui vários tipos de conteúdo porque é assim que geralmente pensamos no dia a dia. É verdade, algumas teorias filosóficas sobre a ética só admitem um determinado tipo de conteúdo como válido. Porém, poucas pessoas comuns são, por exemplo, totalmente kantianas ou totalmente utilitaristas. A maioria de nós se preocupa, por exemplo, tanto com as motivações por trás de nossas decisões quanto com as consequências que surgirão delas. Por isso, vamos optar pela tarefa mais difícil de reconhecer a validade de vários conteúdos, já que a decisão ética na vida real também geralmente se apresenta desse modo. Porém, pode acontecer que às vezes os conteúdos entrem em conflito, e, ao buscarmos cumprir um, violemos outro. No meu entender, isso não é um problema tão grave. Talvez a importância de optar por termos conteúdos com preocupações morais distintas é que elas servem para limitar os excessos umas das outras. No final desse item, veremos exemplos de como isso pode acontecer. É verdade, existirão casos muito difíceis de serem resolvidos, onde não saberemos ao certo qual conteúdo deve ter primazia. Porém, isso não invalida os casos fáceis de se perceber qual preocupação deve pesar mais. Além disso, essa dificuldade não é um “defeito” da ética; em outras áreas do conhecimento (por exemplo, as ciências empíricas), também existem problemas muito difíceis de serem resolvidos, e nem por isso  descartamos tais áreas, ou consideramos inválidas as soluções que proporcionam para outros casos mais fáceis, ou ainda, as consideramos relativas ou subjetivas.

Roteiro

Faremos agora o seguinte: reconstruiremos uma defesa de que os princípios da não maleficência (evitar de causar danos) e da beneficência (praticar ações que curem um dano, previnam um dano ou proporcionem um benefício) são conteúdos válidos para a forma que estabelecemos. Em seguida, faremos uma lista de outros possíveis conteúdos, que visam iluminar pontos não contemplados nos princípios da não maleficência e beneficência. Ao mesmo tempo, apontaremos também como é possível um conteúdo identificar um excesso da parte de outro. Assim, uma meta da moralidade pode ser complementar à outra, embora às vezes possa ir em sentido contrário.

Não maleficência e beneficência 

Vimos acima que esses princípios dizem respeito a fomentar o benefício (entendido aqui no sentido amplo de felicidade, satisfação de preferências, desfrute etc.) e diminuir o dano (no sentido amplo de dor física, psicológica, perdas, privações etc.). Como é um conteúdo para a ética, os benefícios e danos precisam ser considerados de maneira universalizável e imparcial, por exemplo (como visto na parte formal). É importante percebermos que preocupações com benefícios e danos dizem respeito às consequências das decisões. Se concluirmos que uma preocupação com as consequências de nossas decisões é essencial, de um ponto de vista ético, então todos os conteúdos que estão diretamente e totalmente em conflito tal preocupação (por exemplo, conteúdos que não levem em conta e em grau algum, as consequências), são inválidos. Isso não significa que não haja outros conteúdos tão válidos quanto a preocupação com as consequências , que possam estar, em algum grau, em oposição a ela.

A defesa dos princípios da não maleficência e beneficência se apoia em algo que é bastante óbvio para a imensa maioria de nós: benefícios são algo bom e danos são algo ruim, portanto, nada mais justo do que colocar como meta de nossas decisões aumentar um e diminuir o outro.  Porém, algumas pessoas possuem críticas a essa forma de pensar. A crítica mais comum é a seguinte: como poderemos prever as consequências de nossas decisões? É possível haver desdobramentos que sequer nos damos conta que existirão. Assim, defendem esses críticos, devemos seguir certas regras simples mais seguras como “não matar”, “não roubar”, “não mentir”, “não trapacear”, “não sermos violentos” etc. Tais regras, defendem essas pessoas, cumprem todas as exigências formais.

Por enquanto, temos duas opções, que aparentemente se mostram em conflito: ou adicionamos um conteúdo consequencialista em nossas decisões, e temos de raciocinar caso a caso para saber se a decisão terá mesmo as melhores consequências, ou seguimos regras simples, como as citadas acima, sem ter de fazer um raciocínio caso a caso. Antes, contudo, é importante perguntar: “em que base podem ser defendidas tais regras simples?”.

Um tipo de defesa é a que se segue: (1) Veja, essas regras se mostraram, ao longo da história, como produzindo as melhores consequências na grande maioria dos casos. Pode ser que “dizer a verdade” nem sempre traga as melhores consequências (pois, como no famoso exemplo, um assassino pode bater à nossa porta perguntando se ali se encontra algum inocente que ele possa matar), mas nos poupa do problema de não podermos prever os desdobramentos de consequências. Um exemplo típico dessa defesa é o ditado “violência só gera mais violência”.

Há várias respostas possíveis de serem dadas à essa primeira defesa. Uma delas é que ela não deixa de ser consequencialista. A justificativa apresentada para as regras é que elas “levam às melhores consequências na maioria dos casos”.  A única diferença é que, em vez de pensarmos em cada decisão, pensamos nas regras mais gerais. Contudo, alguém que adote o raciocínio caso a caso pode ainda questionar: “Dizer que devemos sempre falar a verdade e sermos sempre pacifistas pode ser um discurso lindo, mas, e nos casos onde vemos claramente que seguir a regra leva a consequências desastrosas, como no caso do assassino curioso, citado acima? Devemos, a despeito das consequências, dizer a verdade? E quando percebemos que a única maneira de impedir a morte de um inocente é usar da força bruta para imobilizar o atacante por alguns instantes? A violência gera mais violência nesse caso? Se admitimos que existem exceções para dizer a verdade e para sermos pacifistas, então voltamos ao raciocínio caso a caso, o que acaba ainda por apontar que em determinados casos, temos, sim, uma boa capacidade de probabilidade (ainda que não certeza) dos desdobramentos das consequências. Assim, poderíamos aceitar as regras curtas na maioria dos casos, mas elas não seriam absolutas – abririam exceções onde soubéssemos que segui-las provavelmente seria pior. Outra possível resposta é apontar que duas regras, no exemplo do assassino, entram em conflito, sendo uma “não mentir” e outra “proteger a vida de um inocente”. Qual delas deveria ter prioridade? Se é dito que é o “proteger a vida de um inocente”, apontando-se para o dano pior que é perder a vida do que receber uma mentira, então continuamos consequencialistas.

Outro tipo de defesa da abordagem das regras simples possui um teor anticonsequencialista, e é oferecido na tentativa de tornar as regras simples como absolutas (não contemplar exceções). Segundo essa perspectiva (2), as regras simples devem ser seguidas não porque, na maioria dos casos, tem mais probabilidade de trazer as melhores consequências, mas simplesmente por serem “verdades morais autoevidentes” dignas de serem buscadas, independentemente de consequências. Olhando à primeira vista, tal proposta parece muito estranha. Contudo, é importante lembrar que a maioria das pessoas parece seguir tal proposta. Enfatizo aqui que o fato de a maioria seguir tal proposta não é, de maneira alguma, um argumento a favor dela, mas apenas uma constatação de um fato. Tomemos como exemplo a regra “nunca se deve tirar a vida de um ser humano inocente – sua ou dos outros”. Muitas pessoas que aceitam tal regra não admitem exceções. Se há uma vida sem a menor possibilidade de esta vir a ser outra coisa que não extremos de sofrimento total, sem nenhuma possibilidade de qualquer desfrute, e o indivíduo que a vive está há meses suplicando para morrer, ainda assim afirmam que tal pessoa deveria aguentar o sofrimento extremo, em nome de preservar algo de “valor moral autoevidente”, como a vida. Outras regras do mesmo tipo seriam “jamais mentir”, “jamais tirar a liberdade de alguém”, “jamais intervir no curso natural das coisas” etc.

Infelizmente (ou felizmente), dizer que algo é uma “verdade moral autoevidente” não é um argumento, é apenas retórica. A ideia de que certas regras são absolutas até mesmo em caso de extremo sofrimento é difícil de engolir, e precisa de justificação. Várias críticas podem ser endereçadas a esse tipo de visão: (1) Será que tais regras são mesmo “verdades morais autoevidentes”, ou elas existem por alguma razão que diz respeito às consequências na maioria dos casos, e, de tanto as usarmos ao longo da vida (pelo fato de a maioria dos casos se encaixarem nelas), elas acabam adquirindo a aparência de verdades autoevidentes? Por exemplo, pode ser que a regra “não matar” se baseie numa razão (a saber, de que a vida é algo bom para aquele que vive, ou de que, mesmo que seja ruim, matar vai contra os desejos da vítima), e às vezes não se perceba que tal razão não estão ali em determinados casos.

Para evitar que se cometa esse tipo de erro na aplicação de regras (aplicá-la em casos em que a razão que a sustentava não existe mais), muitos filósofos sugerem um teste. Defendem que, além de todas as exigências formais, o agente deve mostrar que aplicar o princípio naquelas circunstâncias possui boas consequências, ou seja, que vai trazer mais benefício do que malefício caso seja cumprido. É claro, como os conteúdos éticos precisam estar de acordo com a regra da universalidade, não podemos pensar o benefício/malefício apenas para quem está agindo, ou um determinado grupo de indivíduos, mas sim, a todos os indivíduos afetados pela decisão que podem ser beneficiados ou danados. Mas, como vimos, defensores da teoria das “regras absolutas independentes de consequências” pensam diferente. Qual caminho devemos escolher?
Discutiremos isso na próxima coluna.

Raciocínio Etico: forma (parte 3)


Sobre o raciocínio ético: a forma (Parte 3)

Luciano Carlos Cunha

Finalizando a lista de exigências formais para uma decisão ser eticamente válida, iniciada há duas colunas atrás, temos o seguinte:

10 – Imparcialidade – A razão permite alguém perceber que é apenas mais um indivíduo, entre bilhões, podendo ser afetado pelas decisões de outros. Caso tenha o pensamento de que é mais especial que os outros indivíduos, a razão mostrará para ele que isso é uma ilusão, haja vista geralmente não existir motivo para tal crença. Mesmo se é oferecida uma razão, imediatamente tal afirmação compromete o falante a reconhecer que caso se ele mesmo deixe de apresentar tal característica, perde o valor que reivindica. Além disso, não necessariamente tal razão apontaria uma característica válida (veremos exemplos no item 11).
A exigência de imparcialidade é um paralelo, com relação aos pacientes da decisão, da exigência de que o princípio deve valer para todo agente cumprir. Se o princípio deve valer para todo agente moral cumprir, igualmente deve valer independentemente de quem for afetado pela decisão. Se digo que matar é errado quando a vítima serei eu (digo, por exemplo, que eu vou ser prejudicado pela perda do tempo de vida feliz que ainda tenho pela frente), estou comprometido a dizer que o mesmo ato é errado quando a vítima for qualquer outro indivíduo que ainda tenha tempo de vida feliz a desfrutar pela frente. Ou seja, o princípio precisa ser aplicado desinteressadamente. Por isso, preconceitos não são éticos. Os racistas, sexistas, especistas e egoístas, por exemplo, mantém decisões totalmente diferentes em contextos muito semelhantes, apenas por variar o indivíduo afetado. Isso viola a exigência de imparcialidade. Por exemplo, o princípio do egoísmo “que cada um faça apenas o que for melhor para si mesmo” é geral o bastante (por não fazer referência a indivíduos específicos) e pode ser recomendado a todos os agentes, mas, por tratar casos semelhantes de forma diferente (por exemplo, o interesse em sofrer é tratado de um jeito quando aparece em mim, e é tratado de outro quando aparece em outros), é um princípio prudencial, e não um princípio ético.

11 – Coerência.
Essa exigência diz: “casos semelhantes, decisões semelhantes”. A partir dos exemplos anteriores, você pode ter pensado várias exceções para os mesmos não serem aplicados a todos os agentes morais ou a todos os pacientes morais. Por exemplo, se o Sr. Pipóquio está acorrentado, obviamente não pode cumprir a regra “todos devem ajudar os pobres”. Ou, poderíamos dizer que a regra “todos devem dar lugar a idosos no ônibus” não se aplica quando o idoso é o Sr. Marmôncio, que detesta ir sentado. Em resumo, se um caso é parecido, mas vai ser tratado diferentemente, então precisa ser apontado que característica há nele que o torna uma exceção à regra. Essa característica precisa ser relevante para o que se está julgando. Por exemplo, se o que está em jogo é respeitar o interesse em viver, não é válido dizer que isso não se aplica quando a vítima for a Senhorita Emengarda, porque Emengarda não possui uma linguagem (ter ou não linguagem não tem nada a ver com o interesse em desfrutar da vida). Da mesma maneira, não é válido dizer que “o dever de ser vegano não se aplica a Fulano, pois ele vive numa cultura onde comer animais é um valor sagrado”. Já que é possível que ele contrarie sua cultura, e os padrões éticos não são a mesma coisa que padrões culturais, essa característica não é uma exceção válida.
12 – Subordinar princípios não-éticos. Como o princípio ético serve como guia para as decisões de um ser racional (justamente por ser fundado na razão), ele não pode estar subordinado a princípios de outras naturezas (prudenciais, instrumentais, estéticos, profissionais, etc.); pelo contrário, são esses outros princípios ou regras que devem ser avaliados em termos de justificação à luz do princípio ético. O princípio ético pode apontar como válidos outros valores de natureza não-ética (mas nem por isso, anti-ética) que cultivamos (por exemplo, determinados valores estéticos, prudenciais, etc.), mas também pode colocá-los sob dúvida e até mesmo revelá-los como inválidos.
A ética diz respeito àqueles princípios que comandam todas as outras decisões do agente. Por exemplo, pode existir um código de conduta de uma determinada profissão, mas esse código não é o padrão ético definitivo, pois ele pode ser avaliado em termos de outros princípios mais gerais, a fim de descobrirmos se o código  mesmo é ético ou não. Por exemplo, o código de conduta dos psicólogos pode mandar guardar sigilosamente, sem exceção, as informações reveladas pelos clientes. Contudo, se um cliente revela que irá assassinar a esposa naquela noite, o psicólogo não pode pretender que mencionar a proibição em revelar informações explícita no código se constitua uma justificativa ética para a decisão de não avisar a esposa. Aqui faz total sentido a pergunta: “é certo seguir o código, nessa situação?”. Isso é relevante, pois, em determinadas situações, o que o código manda fazer pode estar em conflito com outros princípios éticos que possuem peso maior. A decisão de violar o código poderia ser justificada, por exemplo, na base de que o princípio da não-maleficência tem peso maior do que o princípio de cumprir promessas. Portanto, como o agente tem liberdade para escolher seguir o código ou não, caso escolha for por não avisar a esposa e esta for assassinada, parte da culpa do assassinato é dele. Portanto, decisões éticas são aquelas das quais temos que assumir a responsabilidade pela escolha, já que ninguém as escolhe para nós, a não ser nós mesmos.
Outro exemplo: as regras de trânsito também estão subordinadas a princípios éticos que as validam. Assim, na maioria dos casos, é um dever obedecer às regras de trânsito, mas, em determinadas ocasiões, elas podem entrar em conflito com outros princípios éticos mais fortes, às quais se subordinam. Por exemplo, pela lei de trânsito, certas placas nos proíbem parar ou estacionar em determinados locais; mas, se um motorista vê alguém caído no meio da estrada, bem na frente dessa placa, ele tem aí uma razão para violar justificadamente a lei de trânsito nessa situação. Caso tivesse passado por cima desse alguém, não seria válida como justificativa ética mencionar que a lei de trânsito o proíbe de parar naquele local, já que as leis de trânsito, assim como os códigos profissionais, também estão subordinados aos princípios éticos que os validam. Isso não significa que então temos justificativa para violar tais regras quando bem entendermos; a justificativa precisa estar amparada num princípio ético que tenha peso maior do que a regra, e que aponte a contradição em seguir a regra, naquele momento. Por exemplo, se as regras de trânsito servem para proteger a vida de motoristas e pedrestes, é contraditório cumprí-las quando o resultado de obedecê-las for contrário a tal meta.
Outro bom exemplo de subordinação é a objeção ao veganismo comumente apontada: “mas, eu gosto de comer animais”. O que um proponente dessa objeção aponta é que há uma expressão de gosto pessoal (portanto, não um princípio ético, e não necessariamente um gosto válido eticamente) que conflita com o que o princípio ético manda fazer. Contudo, apontar isso não é objeção alguma, haja vista que também as expressões de gosto pessoal estão subordinadas logicamente aos princípios éticos. Afinal de contas, estupradores também adoram estuprar, mas nem por isso o estupro é válido eticamente.
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Até agora, vimos exigências formais (dizem respeito à forma que o raciocínio deve ter). Nessa forma, vários conteúdos podem ser aplicados. Nas próximas colunas sobre raciocínio ético falaremos sobre os conteúdos possíveis de preencherem essa forma e da importância em levarmos em conta as conseqüências sobre os atingidos pela decisão nas deliberações éticas.

Raciocínio Ético: forma (parte 2)


Sobre o raciocínio ético: a forma (Parte 2)
Luciano Carlos Cunha
Dando continuidade à lista de exigências formais para a validação de uma decisão como ética, iniciada na coluna anterior:
5 – Clareza conceitual: Os termos do princípio ou regra precisam ser bem definidos, caso contrário, não ajudarão ninguém a escolher o que decidir. Por exemplo, se alguém propõe “devemos respeitar à natureza”, deve explicitar claramente o que significa “respeito” e “natureza”. Por exemplo, “respeitar a natureza” pode ser entendido como preservar plantas, animais silvestres, rios, montanhas, etc. Pode se referir também “deixar os acontecimentos naturais seguirem o seu curso (trovoadas, enchentes, erupções vulcânicas, predação, morte natural, não fazer a barba, não tomar remédio, não usar camisinha, etc). Pode se referir à só fazer aquilo que serve a uma “função” natural (por exemplo, fazer sexo apenas para ter filhos). Em cada uma dessas definições, a ação prescrita vai ser muito diferente uma da outra. Por exemplo, se é definido como “preservar animais e plantas” vai mandar socorrê-los de uma enchente provocada por causas naturais. Se não mandar, então é porque está sendo definido como “deixar as leis naturais seguirem o seu curso”. Se deixamos o termo vago, não saberemos exatamente o que fazer. Não estou afirmando que essas interpretações de “respeito à natureza” são eticamente válidas; trago-as apenas para ilustrar a dificuldade com a clareza conceitual.
6 – Fatos relevantes: Um bom raciocínio ético começa com a interpretação dos fatos como eles são, e não como gostaríamos que fossem. Além de coletar todos os fatos, precisamos ter atenção sobre quais são relevantes para a decisão e quais não são. Veremos um exemplo desse ponto no item 11.
7 – Generalidade: O princípio ético tem como objetivo ser recomendado a todos os agentes morais. Por isso, precisa ser geral em sua forma, ou seja, não pode fazer referência a indivíduos específicos, pois visam serem aplicados em muitos casos. “Que todos façam o que é melhor para o Luciano Cunha” ou “que João cumpra o que prometeu para Maria” não são princípios ético, apenas aplicações particulares de certos princípios. Se, no primeiro exemplo, dizemos que Luciano Cunha é, de todos os indivíduos salvos de um naufrágio, o que está em pior situação, então o mesmo vale para todo e qualquer indivíduo que pode se encontrar em seu lugar. A regra seria então: “atender primeiro o que estiver na situação pior”. No segundo exemplo, teríamos de tornar a regra geral o bastante para contemplar todo e qualquer indivíduo que pudesse se encontrar no mesmo tipo de situação. Por exemplo, “Que todos cumpram suas promessas”.
8 – Deve valer para todos os agentes morais. Se, como vimos, o princípio precisa ser geral na forma¸ então não faz sentido dizer que vale para um agente cumprir e outro não. Se fazer sofrer é errado, é errado pelo ato e a consequência em si, e não de acordo com quem o praticou. Por exemplo, dizer que “sou vegano, mas se outras pessoas quiserem comer animais, não há problema algum” não é uma posição ética a favor do veganismo. Pelo contrário, é uma posição que diz ser certo (mas não um dever) o carnivorismo. Uma posição ética a favor do veganismo teria de dizer “todos os agentes morais devem ser veganos”, que poderia estar baseada, por exemplo no princípio da não-maleficência. Assim, a menos que seja apontada uma razão válida para eximir um agente moral do cumprimento de um dever, é necessário reconhecer que, todas as outras coisas sendo iguais, um princípio ético é sempre recomendado para todos os seres racionais, pois esta é justamente sua finalidade (orientar as decisões de seres racionais).

Dever, certo e errado:
Importante notar que, se alguém fala que alguns atos são opcionais eticamente, também está prescrevendo que isso deve valer para todos os agentes morais. Mesmo quando alguém, por exemplo, diz que “doar órgãos deve ser opcional”, espera que todos os outros agentes concordem que isso deve ser opcional. Assim, está dizendo que tal ato é certo, mas não um dever. Vimos no item anterior que essa implicação (de valer para todos os agentes) está tão ligada ao próprio raciocínio, que nem os subjetivistas/relativistas podem deixar de reivindicá-la quando afirmam que a ética é subjetiva ou relativa, pois esperam que todos concordem com isso (mas, como vimos, isso também contradiz suas pretensões). Agora, quando alguém diz que “trapacear é errado”, está dizendo que é um dever não trapacear. Quando alguém diz que, “o certo é dizer a verdade”, está dizendo que dizer a verdade é um dever. As idéia de “Dever” e “o certo” deixam apenas uma única opção para o agente; “errado” proíbe uma opção, ainda que deixa em aberto se existem várias ou apenas uma correta e; “certo” valida uma opção, ainda que não a obriga. Contudo, na reivindicação de todas essas categorias, sejá lá quais forem, está implícita a idéia de que deve valer para todos os agentes.
Tomando novamente o exemplo anterior, podemos perceber agora que não apenas os que dizem “todos deveriam se tornar veganos” estão prescrevendo sua posição como válida para todos cumprirem. Os que dizem que “ser vegano deveria ser opcional” estão automaticamente dizendo que “comer animais é certo, mas não um dever”, portanto, pretendendo que todos os agentes concordem com essa afirmação. Na maioria das vezes, os que reivindicam um dever de praticar o veganismo são acusados de querer que todos adotem sua posição; contudo, isso vale também para os que defendem que o veganismo é opcional, bem como os que afirmam que o veganismo é errado. Em suma, qualquer posição que pretenda ser validada como ética, precisa incorporar essa exigência fundamental de valer para todos os agentes morais. Importante lembrar que isso não significa que toda posição que cumpra essa exigência seja válida eticamente. Isso não pode acontecer, porque do contrário, teríamos três posições válidas que estão diretamente em conflito (veganismo é um dever; veganismo é opcional; veganismo é errado). Por esse motivo foi mencionado que todos os critérios listados aqui são necessários, ou seja, não basta cumprir um deles, mas sim, todos. Veremos na terceira parte que apenas uma das posições acima cumpre todos os critérios listados aqui.
9 – Deve valer com independência de estados subjetivos dos agentes morais. Nossa preocupação é descobrirmos quais ações ou traços de caráter são errados, certos, um dever, etc. Como vimos, na refutação do subjetivismo feita algumas colunas atrás, essas coisas independem dos estados subjetivos de quem está decidindo. Só por eu querer que algo seja certo não faz esse algo deixar de ser errado. Portanto, um bom raciocínio ético reconhece que o certo, errado, dever são como são independentemente das inclinações, desejos e emoções de quem está decidindo. Alguém não consegue, por exemplo, fazer com que ajudar os pobres deixe de ser um dever só porque não gosta de ajudar. É por isso que não faz sentido pensar que questões como o status moral dos animais não-humanos é algo para quem “gosta de animais”, apenas.
O falácia do apelo à autoridade
Importante lembrar que o mesmo vale  para os desejos de uma autoridade moral. Supondo a maior autoridade moral que pudesse existir (por exemplo, um Deus, que tivesse todo o conhecimento moral do mundo). Se as coisas fossem certas ou erradas de acordo com a vontade de Deus, então, se Deus desejasse, o estupro seria correto. Mas, continuaríamos a achar o estupro errado, mesmo que Deus dissesse que é correto, pois mesmo Deus ainda teria que apresentar uma razão para nos convencer que algo tão ruim assim é correto – caso contrário, perceberíamos seu desejo como arbitrário demais (mesmo Deus estaria sujeito às regras racionais). Se, em contrapartida, é dito que Deus é bom, e jamais poderia desejar que algo como o estupro fosse correto, então admite-se um padrão ético objetivo, que é independente até mesmo da vontade de deus. O mesmo vale para qualquer outra autoridade moral. Se “A” é uma autoridade moral, a quem devemos nos inspirar, é porque faz as coisas que são corretas; e não que as coisas passam a ser corretas porque são feitas por “A”. Confundir esse ponto é cometer a falácia do apelo à autoridade (por exemplo, “x deve ser errado, porque A, que é uma autoridade em ética, disse que é errado”).  Isso é importante, porque, ao reconhecermos que as coisas são certas ou erradas independentemente de quem as pratica, podemos detectar erros até mesmo na posição de indivíduos considerados autoridades morais.
Na próxima coluna, continuaremos com as exigências formais para uma decisão ser validada eticamente.