quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Parte 3 – A (ir)relevância das intuições


Parte 3 – A (ir)relevância das intuições

#29 – O argumento de que a crença no status superior dos humanos é uma intuição básica

O terceiro argumento de Nigro para tentar demonstrar o maior status moral dos membros da espécie humana apela a intuições, não a razões:

“... e somos especiais também por motivos que sinto, que intuo, que não sei verbalizar nem racionalizar porque “o coração tem razões que a própria razão desconhece” - no sentido original pascaliano. A razão é uma ferramenta humana para descrever a realidade que intuimos e sentimos por experiência direta. [...]Na verdade, as razões do coração são princípios que não são demonstráveis; escapam à razão, mas não os admitir como verdades impossibilitaria qualquer raciocínio”.

#30 – Mesmo que o apelo a intuições básicas inescapáveis para o raciocínio seja legítimo, a intuição de que humanos são superiores não é esse tipo de intuição legítima

O que Nigro quer dizer com o que foi exposto acima é que ele possui uma intuição muito forte de que os humanos possuem maior valor. A discussão sobre o status e a relevância das intuições em um raciocínio sério é objeto de amplo debate na filosofia. Sem querer entrar detalhadamente nesse debate no presente artigo, o que pretendo fazer é expor o que penso que seja a melhor defesa de que algumas intuições são relevantes para o raciocínio, para em seguida, mostrar que, mesmo que algumas intuições sejam relevantes, a intuição de que humanos são superiores não é uma delas.

#31 – O fato de algo ser uma intuição não diz se ela condiz com a verdade ou se é um preconceito

A oposição que muitos filósofos, mais notadamente Peter Singer e James Rachels fazem ao apelo a intuições começa por notar que diferentes indivíduos possuem diferentes intuições. Algumas pessoas têm a intuição de que humanos são superiores; outras têm a intuição de que humanos não são superiores. Teríamos de investigar: quem possui a intuição correta? Assim, a questão mais central é essa: como distinguir intuições que condizem com a verdade de intuições que são fruto de preconceitos? Não há outro meio senão apelar à razão e testar essas intuições com base em argumentos. Não devemos esquecer de que, há poucas décadas atrás, era amplamente difundida a idéia de que pessoas de pele branca valiam mais do que pessoas de pele negra. Hoje, é muito fácil, para quem quer descobrir a verdade, ver que tais intuições eram apenas o reflexo do condicionamento a preconceitos culturais ou da pura maldade mesmo. Assim, de acordo com os filósofos que rejeitam o apelo a intuições, não haveria uma conclusão final inatacável: sempre deveríamos testar novamente nossas crenças (inclusive aquelas mais básicas, de onde partimos para formar os outros raciocínios), afim de ver se não estamos a reproduzir, novamente, um preconceito.

#32 – Princípios de raciocínio derivados e básicos (auto-evidentes)

O que penso ser a melhor defesa da relevância das intuições, por outro lado, é a que está exposta a seguir. Os defensores do apelo a intuições começam por apontar que aquelas coisas que consideramos como razões secundárias tem apoio em princípios mais básicos e mais gerais que dão sustentação a essas razões secundárias. Talvez um princípio que enxergamos como básico seja, na verdade, produto de outro princípio mais básico. Após investigação, talvez descobríssemos outro mais básico, que dava sustentação aos outros e serviria para justificá-los e assim, por diante. Contudo, em algum momento, o apelo a outros princípios precisa parar. Alguns princípios básicos de raciocínio terão de extrair sua justificação deles próprios, e não de outros. É o que se comumente chama de princípios auto-evidentes.

#33 – “Intuições” básicas que estão presentes em qualquer raciocínio que faça sentido: por que rejeitar a razão por completo é auto-refutante

Dentre esses princípios estariam, por exemplo, as regras básicas da lógica. Quanto a isso, Nigro está correto ao apontar que as intuições justificáveis seriam aqueles “princípios que não são demonstráveis; escapam à razão, mas não os admitir como verdades impossibilitaria qualquer raciocínio”. Para entender que princípios são esses, imagine que alguém está tentando oferecer um argumento para provar que jamais devemos confiar na razão (que a razão é uma mera construção social, ou uma mera ferramenta evolutiva, por exemplo). O argumento diz o seguinte: “Justificar a razão na própria razão é circular; justificar a razão na desrazão (intuições) é contraditório – logo, devemos descartar a razão”. Para entender por que esse argumento não tem sucesso, perceba que ele só faz sentido se apelar à razão. Afinal de contas, não-contradição e não-circularidade são dois princípios básicos da razão e que, portanto, só tem validade se a razão tiver (se a razão não for uma mera construção social ou mera ferramenta que nos ajudou no curso da evolução). Argumentos desse tipo só conseguem exemplificar que, toda vez que tentamos afirmar, negar, criticar algo, temos de nos apoiar em determinados princípios para dar sustentação ao que está sendo reivindicado. É por esse motivo que não é possível descartar a razão por completo. Embora as regras de não-contradição e não-circularidade não possam, aparentemente, ser justificadas com base em outros princípios mais básicos (ao que parece, eles são dos mais básicos possíveis), não admiti-los impossibilitará de pensar qualquer outra coisa que faça sentido. Penso que é esse tipo de intuição que se tem em mente na segunda metade do argumento de Nigro.

#34 – Mesmo princípios básicos podem ser aprimorados com base em outros princípios básicos

É importante lembrar, contudo, que isso não significa que as regras de lógica e outros princípios racionais básicos não estejam abertos à dúvida. É possível colocá-los todos sob dúvida, mas, um de cada vez; nunca todos ao mesmo tempo. Isso porque, temos de nos basear em um para colocar o outro em dúvida. Não é possível criticar algo munido de nada. À medida que fazemos essa atividade auto-corretiva (como tem sido feito ao longo da história da filosofia), melhoramos nossas ferramentas de raciocínio.

#35 – A crença de que humanos são superiores não é uma “intuição” básica da razão

Contudo, mesmo admitindo o status dessas regras básicas de lógica, às quais Nigro chama pelo nome “intuições” (a saber, como aquilo que, embora não possa ser demonstrado, não os admitir como verdadeiros impossibilitaria qualquer raciocínio), daí não se segue que a intuição de que seres humanos possuem status moral superior seja uma dessas intuições. É perfeitamente possível pensar qualquer coisa, fazer qualquer bom raciocínio, analisar criteriosamente qualquer argumento e ao mesmo tempo negar que os seres humanos possuem status moral superior. Negar que humanos são superiores é muito diferente de querer oferecer um argumento para negar a razão como um todo, por exemplo. Ao que parece, a intuição de que seres humanos possuem maior valor moral está mais perto da intuição de que humanos de pele branca possuem maior valor moral do que humanos de pele negra – ou seja, puro preconceito irracional – do que uma verdade básica da razão, embutida em qualquer pensamento com sentido.

#36 – A crença de que humanos são superiores não é uma intuição básica do raciocínio moral

Nigro poderia replicar aqui que a intuição de que humanos são superiores é uma intuição básica moral, ainda que não seja uma intuição básica da razão em geral. Assim, o status de tal intuição dependeria não da impossibilidade de se pensar qualquer coisa sem ela, mas, da impossibilidade de qualquer pensamento sobre ética sem ela. Mesmo concedendo essa chance ao argumento, ele não funciona. É perfeitamente possível a construção de teorias éticas que não incorporem (inclusive rejeitem) a intuição de que humanos são superiores. Basta dar uma olhada, por exemplo, nas teorias de Bentham, Primatt, Singer, Regan, Sapontzis, Francione, etc. Mesmo a teoria de Kant, que rejeitava deveres diretos aos animais não humanos, também não se baseava na idéia de que alguém possuía status moral superior por ser membro da espécie humana, mas sim, por ser racional (o que abre a possibilidade para haverem seres com tal status que não pertencem à espécie humana, e seres pertencentes à espécie humana que não gozem de tal status). A crença de que humanos são superiores é que, na maioria das vezes, impede as pessoas de fazerem bons raciocínios morais (como vimos, os argumentos que visam dar sustentação a essa crença são culpados de circularidade, irrelevância, arbitrariedade, etc.).

#37 – Por que relevância e coerência são dois princípios básicos  da forma do raciocínio moral e por que é irracional rejeitá-los

Em comparação a outros princípios básicos morais, tanto quanto à forma do raciocínio moral quanto à substância (como veremos em exemplos a seguir), a idéia de que seres humanos são superiores com certeza não possui o mesmo status. Considere novamente a exigência formal de coerência (que casos relevantemente similares sejam tratados de maneira similar). É irracional se alguém afirmar: “esses dois casos são exatamente iguais em tudo o que é  relevante para saber como devemos tratá-los; contudo, penso que devemos tratá-los de maneira diferente”. É por esse motivo que, embora não se possa provar com base em outro princípio mais básico que “casos relevantemente similares devam ser tratados de maneira similar”, tal “intuição” precisa ser aceita, devido a ser irracional rejeitá-la. Considere outra exigência formal da ética: a relevância. Seria igualmente irracional se alguém dissesse: “Para saber o que devemos fazer em cada situação, temos de pegar somente o que for irrelevante para o que queremos descobrir, e descartar tudo o que for relevante”. Esse também é o tipo de “intuição” que precisa ser aceita, pois, mesmo não sendo possível explicar com base em outro princípio mais básico por que o correto é pegar apenas o que é relevante e descartar o que é irrelevante (já que isso é muito básico para qualquer raciocínio, não apenas o raciocínio moral, fazer sentido), rejeitar tal suposição impede alguém de fazer qualquer raciocínio com sentido.

#38 – Por que a o dano por inflição de sofrimento ser algo de valor negativo é um princípio substancial básico da moralidade

Considere outro princípio básico da ética, porém, dessa vez, um princípio substancial: o de que o sofrimento é algo intrinsecamente ruim e a felicidade algo intrinsecamente bom. Por intrinsecamente, o que se quer dizer é que as únicas situações onde existem razões para se pensar que o sofrimento foi bom e a felicidade foi ruim, é se forem, respectivamente, uma ponte para se chegar em outras coisas, respectivamente, boas e ruins (se o sofrimento for ponte para algo bom, ou se a felicidade for ponte para algo ruim). Se perguntarmos a alguém: “o que torna errado estuprar?”, é possível citar inúmeros motivos, mas, à medida que procuramos sempre por um princípio mais básico que sustente os outros, acabaremos chegando, inevitavelmente, no sofrimento que a vítima recebe (ainda que isso não esgote a possibilidade de haverem outros princípios básicos, como a violação das preferências da vítima, por exemplo), e que sofrer é algo ruim. O reconhecimento de que sofrer é algo ruim (de valor negativo), juntamente com a noção de que nenhum de nós é mais especial por ser quem é (de que cada um é apenas mais um indivíduo entre outros), é o que nos permite que concluamos que causar sofrimento em outro ser é moralmente errado.

#39 – Por que o desfrute (satisfação) ser algo de valor positivo (e, respectivamente, o dano por privação de desfrute ser algo de valor negativo) é um princípio substancial básico da moralidade

Da mesma maneira, quando tentamos explicar o que há de errado em assassinar, é possível chegarmos em muitas explicações, mas, inevitavelmente, chegaremos na idéia de que a perda do que a vítima teria ainda por desfrutar é algo de ruim. Desfrutar felicidade é algo bom; não desfrutar aquilo que poderia ser desfrutado de felicidade é algo ruim. Isso não é justificado com base em outra coisa, já que são sensações de valor mais básicas possíveis. Contudo, devemos aceitar tais intuições porque não faz sentido duvidar da validade de tais princípios –não há uma razão para duvidar disso. Qualquer um que já sentiu imensa felicidade reconhece que ela é boa; qualquer um que já teve um acidente ou doença terríveis sabe o quão ruim é o sofrimento.

#40 – A idéia de que alguém merece maior consideração por pertencer à espécie humana é um preconceito irracional

Sem as idéias de prejuízo e benefício se torna impossível qualquer raciocínio moral. Portanto, são “intuições” básicas. Note que isso é muito diferente da suposição de que humanos são superiores, e de que é correto matar animais não humanos. Existem inúmeras razões para se duvidar dessa intuição. Uma delas, é exatamente que entra em conflito com esses princípios básicos (de que a perda por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa são, por si só, coisas de valor negativo, e que o desfrute de felicidade tem valor positivo). O que acontece é que tais coisas são ruins ou boas por serem o tipo de experiência que são (na verdade, uma é uma experiência mental negativa; a outra, a ausência da experiência mental positiva; e a outra a presença da experiência mental positiva) – e a capacidade para tais experiências não depende do indivíduo pertencer à espécie humana; depende apenas que ele seja capaz de experiências (que seja senciente).

Assim, parece que a “intuição” de que humanos são superiores é mesmo como a intuição de que algumas raças de humanos valem mais do que outras: mero preconceito irracional.

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