quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Parte 5 – O argumento da casa em chamas


Parte 5 – O argumento da casa em chamas

#75 – O argumento da casa em chamas

Nigro utilizou também um velho conhecido dos defensores dos animais: o argumento da casa em chamas (também conhecido como “dilema do bote”), apesar de tal argumento ter sido refutado incontáveis vezes, por diversos autores[6]. Nigro escreve:

“Um pequeno avião monomotor cai e você e seu filhinho de cinco anos sobrevivem. Vocês estão tomando só água e quase mortos de fome. Existem peixes. Como você não é especista tenho certeza que você jogaria uma folha para o ar: se cair de um lado você pesca e come peixe; se cair para o outro, você mata seu filho.[...] A casa está pegando fogo. Sua filha (não coloquei filho novamente para não me acusarem de machista) está lá dentro. Seus dois gatos também estão. É perfeitamente possível salvar primeiro um gato - até para deixar bem claro para os vizinhos e para sua família que você não é um especista. E depois de ter salvado o gato você poderia escolher entre salvar o outro gato ou sua filha. Não, você não pode agora automaticamente ir salvar sua filha porque senão você não estaria tratando-os como iguais, mas como membros de espécies e isso é especismo. Talvez fosse salvo o outro gato e neste maravilhoso mundo novo os avós chorariam a morte da neta - poderia não ter dado tempo para salvar - mas admirariam ainda mais o filho que não se apegou ao especismo. Eu pescaria e pegaria primeiro a menina porque, não sabia, sou um especista. O autor afirma que pessoas especistas como eu são seres imorais, deploráveis como “os racistas e os machistas”. Mas eu e, acredito, a maioria dos seres humanos não raciocinariam desta forma e nem passaria pela minha cabeça que fiz uma escolha. A própria ideia de que o pai ficasse raciocinando para escolher qual dos dois matar (peixe ou filho) ou quem pegar primeiro (mesmo que não fosse filho(a)), para mim, e para muitos, é que seria imoral”.

#76 - O que se pretende com o argumento da casa em chamas

Mesmo tendo sido refutado incontáveis vezes, é sempre interessante analisar novamente o argumento da casa em chamas porque ele dá a oportunidade de descobrirmos inúmeros erros de raciocínio, e, com isso, aprender a tomar mais cuidado ao raciocinar. Antes de começarmos a análise, contudo, é interessante perceber qual o objetivo dos que usam o argumento da casa em chamas: a pretensão é a de que, se você optar por salvar sua filha, então você é retratado como especista e hipócrita; se, por outro lado, você mantém que, mesmo numa situação assim, os indivíduos atingidos por sua decisão mantém um status moral igual, independentemente de espécie, então que você é retratado como um monstro moral. Com a argumentação a seguir, pretendo mostrar por que é que a espécie da vítima (sendo a vítima senciente) nunca é um critério moralmente relevante, nem mesmo nesse tipo de situação, e que a visão de que abandonar o especismo é ser um monstro moral só pode vir de uma mentalidade extremamente especista. Apelar às nossas intuições nesses casos não justifica o especismo; aliás, só mostra que, provavelmente, mantemos as intuições que mantemos por puro preconceito especista, que é fruto da falta de prática com o raciocínio moral. Vamos então à análise do argumento.

#77 - O argumento da casa em chamas não serve para justificar o uso de animais

O primeiro (e mais grave) problema dos argumentos do tipo da casa em chamas (o que inclui o argumento da ilha deserta, do bote, do avião monomotor, ou qualquer outra forma) é que ele cria uma falsa analogia. Isto é, ele trata duas situações como se tivessem supostamente características relevantemente similares, escondendo que há pelo menos uma diferença moralmente relevante entre tais situações. Uma das coisas que se pretende com o argumento da casa em chamas é concluir que, se existirem razões para salvar o humano numa situação do tipo da casa em chamas; então temos razões para fazer uso dos animais não humanos como se fossem recursos (seja para fins fúteis como o uso culinário, seja para fins importantes como a pesquisa médica). A analogia não funciona porque os dois tipos de casos diferem em uma característica crucial: em um tipo de caso, não há como salvar os dois indivíduos, e é só por isso que não se salva os dois; em outro tipo de caso, um indivíduo é visto como um mero recurso para salvar o outro (ou seja, como se o seu valor fosse tão pequeno que fosse justo obrigá-lo, contra sua vontade, a terminar sua vida antes do que normalmente terminaria, para beneficiar outro indivíduo). Um exemplo ajudará a ver por que a conclusão em um caso não sustenta o mesmo tipo de conclusão em outro. Vamos supor, para efeito de argumentação, que eu tenha razões para preferir resgatar a minha filha ao invés de resgatar o Dr. Carlos Nigro, na casa em chamas. Eu ter razões para dar prioridade a um indivíduo quando não tenho como ajudar a ambos não indica que eu tenha direito de ir à casa do Dr. Nigro e obrigá-lo a servir como cobaia para pesquisas médicas (nem mesmo para uma pesquisa que fosse salvar a vida da minha filha). Então, vamos supor, para efeito de argumentação, que fosse correto (ou mesmo um dever) salvar o ser humano, numa situação do tipo da casa em chamas. Mesmo que isso fosse verdade, não serviria para apoiar a conclusão de que, então, temos justificativa para utilizar os animais não humanos como se fossem meros recursos. Decidir quem deve receber prioridade na ajuda é uma coisa; decidir que os que não devem receber prioridade devem ser tratados como meros recursos (mostrando-se uma desconsideração total pelas suas necessidades) já é outra coisa, que não pode ser deduzida da primeira. Sendo assim, mesmo que houvesse um dever moral de salvar o humano numa situação dessas (e, como pretendo mostrar a seguir, existem razões de peso para rejeitar mesmo essa conclusão), isso não serviria para justificar a escravidão sobre os animais não humanos. Nigro ainda teria que defender não só o veganismo, mas a abolição total do uso de animais enquanto recursos (incluindo para pesquisas médicas importantes). Novamente, mesmo se eu tiver razões para preferir resgatar a minha filha ao invés de Carlos Nigro, isso não prova que existem razões que justifiquem eticamente utilizá-lo como um mero recurso (ou seja, obrigá-lo a doar sua vida, contra sua vontade, por exemplo) para salvar a vida da minha filha. Sendo assim, é falsa a premissa de qual Nigro parte para construir toda a sua argumentação. “Para quem discorda”, escreve Nigro, “de que uma pessoa vale tanto quanto um peixe ou uma formiga porque não existiria nada que justifique ‘a crença de que os animais humanos tenham status superior [...] todo o artigo não serve para nada”. A conclusão de Nigro é falsa porque, mesmo que os humanos possuíssem um status moral superior, meu artigo ainda serviria para mostrar que isso também não justificaria utilizar os animais não humanos como se fossem meros recursos. Teríamos todos, ainda, o dever de abolir o seu uso enquanto recursos.

#78 – Não se começa bem um raciocínio sobre uma questão controversa apelando a outras questões igualmente controversas

O argumento da casa em chamas é um argumento problemático porque pretende provar que a espécie da vítima é um critério moralmente relevante (e que pertencer à espécie humana prova que alguém deve possuir status moral superior) apelando a critérios também altamente controversos para estabelecer a moralidade de uma decisão: o grau de envolvimento afetivo do agente para com o paciente da decisão e o apelo às nossas intuições sobre o que se deve fazer em casos particulares. No máximo tais critérios poderiam colocar um ponto de interrogação como ponto de partida para o raciocínio, mas não servem, sozinhos, para provar um critério e dar por resolvida uma questão. Quando se quer provar uma questão controversa, não se começa bem apelando a outras questões igualmente controversas. O melhor seria apelar a outras premissas mais amplamente aceitas como válidas, tanto por quem concorda com a validade moral do especismo tanto por quem discorda; só assim seria possível um argumento cogente.

#79 – O vínculo afetivo do agente para com o paciente é um critério relevante para desculpar alguém que tomou uma decisão errada, dependendo do tipo de dano envolvido

Começemos pelo apelo ao envolvimento afetivo do agente para com o paciente da decisão, com vistas a provar a moralidade de uma decisão. Tal apelo é controverso porque, embora o envolvimento afetivo seja com certeza, nos casos de prioridade ao salvamento de uma vida, um critério relevante para se desculpar alguém por não ter tomado a decisão que deveria, não segue daí que é um critério relevante para estabelecer que decisão deve-se tomar. Considere o seguinte exemplo: supondo, para efeito de argumentação, que ficasse provado que a vida de A possui maior valor do que a vida de B e que, em caso de não ter como salvar ambos, então deve-se salvar A. Supondo que o agente C, mesmo reconhecendo a validade da conclusão acima, tem, porém, um vínculo afetivo muito forte com B, que é sua filha. Infelizmente, é C quem se depara com a situação entre salvar A ou B. Embora reconhecendo que deveria salvar A, acaba salvando B, devido ao forte vínculo afetivo com B. Num caso como esse, é perfeitamente desculpável a atitude de C, pois, ele estava diante de uma decisão extremamente difícil. Contudo, faria sentido dizer que a coisa certa a se fazer é ter tomado a decisão oposta (se fosse verdade que A vale mais do que B). Note que não estou dizendo que uns valem mais do que outros. O objetivo do exemplo é mostrar que mesmo se uns valessem mais do que outros, o fato do agente ter um vínculo afetivo com a vítima que possui valor menor  seria um critério relevante para desculpá-lo por tomar a decisão errada. Note que, mesmo sendo um critério relevante para se desculpar alguém por tomar a decisão errada, não é um critério determinante para tal desculpa. Isso porque um critério relevante pode, contudo, ter menor peso do que outros critérios relevantes, e, portanto, ser anulado por esses outros critérios. Não seria correto, por exemplo, desculpar alguém que favoreceu alguém por ter maior vínculo afetivo com esse alguém, num concurso público, por exemplo. Faz sentido, por outro lado, desculpar alguém que deu prioridade a salvar a vida da sua filha, em relação a salvar a vida de um estranho, mesmo que tivesse o dever de salvar o estranho. Uma das diferenças entre os dois tipos de caso é que uma situação depende da quantidade de dano para a vítima (“salvo esse ou aquele?”) e outra depende de mérito (passar em um concurso público), por exemplo.

#80 – Controvérsia quanto ao critério do vínculo afetivo, seja na forma objeto-dependente, seja na forma agente-dependente

O fato do vínculo afetivo entre agente e paciente ser um critério relevante para desculpar alguém por tomar uma suposta decisão errada em um contexto de salvar vidas não prova que o mesmo é relevante para saber qual a decisão correta nesse mesmo contexto de salvar vidas. Note que não estou dizendo que tal critério não é relevante para saber qual a decisão correta. Estou dizendo apenas que seria necessário outro argumento para dizer o porquê de ser relevante, porque existem objeções contra a relevância desse critério. A principal objeção ao critério do vínculo afetivo para estabelecer qual a decisão correta é que também se trata de um mero fato contingente e coloca o agente num pedestal que, de um ponto de vista objetivo, não faz sentido que ele ocupe. Eu, enquanto agente, por acaso tive um vínculo afetivo maior com alguns indivíduos do que outros. Isso porque alguns outros eu nem conheço pessoalmente. Dos que eu conheço pessoalmente, alguns eu tenho um laço afetivo enorme, outros eu não tenho laço afetivo algum. Contudo, se eu tivesse nascido em outra família, ou ido a outros lugares, estudado em outra escola, procurado outros protetores para adotar cães, etc., eu teria criado vínculos afetivos com outros indivíduos, não com os que tenho hoje. Então, meus vínculos afetivo são meros fatos contingentes a meu respeito. A verdade, que quase ninguém quer admitir, é que o fato de eu ter uma relação próxima com alguém não prova que esse alguém tem maior valor. Seriam então geradas razões “objeto-dependente”: qualquer agente teria o dever de salvar o mesmo indivíduo. Assumir que os seres que tenho maior vínculo afetivo tem objetivamente valor maior seria assumir, por algum motivo, que eu sou mais especial do que os outros; que meu “toque mágico” de relação afetiva faz tais indivíduos adquirirem maior valor. Isso é ridículo. Mas, e se Nigro, por outro lado, modificasse sua posição alegando que não é um agente específico que torna os que têm vínculo afetivo com ele mais especiais, mas cada agente, cada qual com seus vínculos especiais? Seriam, então, geradas razões agente-dependentes: cada agente teria razões para salvar indivíduos diferentes. Contudo, mesmo modificado assim, os mesmos tipos de problemas surgiriam: ao invés de um agente pensar que é mais especial do que os outros (o que já é ridículo), cada agente pensaria que é mais especial do que os outros (o que é logicamente impossível de ser verdadeiro). Lidaremos mais detalhadamente com esse tipo de argumento quando analisarmos a questão do egoísmo (#147 até #157), na sessão seguinte. Por ora, quis apenas apontar que o critério do vínculo afetivo é um critério relevante para estabelecer a decisão correta é, no mínimo, altamente controverso (ainda que seja relevante para desculpar alguém por tomar a decisão errada). Contudo, apesar de ser um critério controverso, admito que não está provado que é irrelevante. Para efeito de argumentação, então, vamos supor que ele é um critério relevante também para saber qual a decisão correta.

#81 – Investigando se um critério é relevante ou não, e a sua importância, frente a outros critérios

O principal problema com o argumento da casa em chamas é que ele trabalha com tantas variáveis (vínculo afetivo, espécie do indivíduo atingido, situação de desespero x situação cotidiana, grau de racionalidade da vítima, opções disponíveis para o agente, por exemplo) que se torna mais difícil, tendo como exemplo um caso prático onde elas aparecem em conjunto, descobrir quais delas são relevantes e quais são irrelevantes, e, das que são relevantes, qual peso devem ter na moralidade da decisão. Uma maneira de evitar essa dificuldade é manter constante cada uma das variáveis que sobraram e modificar apenas uma. Dessa maneira, é possível ver se um critério é, ele mesmo, relevante ou não. É essa estratégia que seguirei na seqüência.

#82 – A falácia naturalista e como ela aparece em argumentos do tipo “casa em chamas”

Outro erro grave com o argumento da casa em chamas é que ele é um exemplo da conhecida “falácia naturalista”. A falácia naturalista consiste em, da constatação de que algo é do jeito que é, deduzir que, então, por esse motivo, ele deveria ser assim mesmo (está certo que seja assim, é justo que seja assim, etc.). Por exemplo, seria uma falácia naturalista alguém tentar justificar o egoísmo assim: “o mundo é e sempre foi egoísta mesmo, logo, devemos ser egoístas”. Do fato de que algo é, não se pode saltar logicamente para a conclusão de que está correto que seja assim. Não há nada no fato de que algo aconteceu, acontece ou aconteceria que sirva de apoio para dizer que foi justo que tenha acontecido no passado, que aconteça agora, ou que será justo se acontecer no futuro. Fazer essa confusão é confundir fatos (como as coisas são) com valores (como as coisas devem ser). Onde está a falácia naturalista no argumento da casa em chamas? O argumento inteiro é baseado no que eu faria (um fato) na situação da casa em chamas, com vistas a provar o que deveria ser feito em tal situação. Mas, o que eu faria não importa para estabelecer o que deveria ser feito. Afinal de contas, a constatação de que eu faria x, ou que faria y não prova que x ou y estejam corretos, respectivamente. Outros argumentos teriam de ser endereçados para provar que x seria preferível a y, ou vice-versa. A conclusão importante, com relação ao presente exemplo, é essa: se eu optasse por tratar as vítimas como tendo igual valor, independentemente de espécie, isso não prova que o especismo está errado; se eu optasse por tratar os seres humanos (ou membros de alguma outra espécie) como superiores, isso não prova que o especismo está certo. A resposta sobre se o especismo é justificável ou não tem de ser buscada em outros lugares, com outros argumentos. E, nós já analisamos os argumentos oferecidos por Nigro para defender o especismo e vimos que todos eles têm sérios erros (#3 até #28). Ofereci também alguns argumentos para explicar por que o especismo é injustificável (#16 até #22). Dentre eles, o principal é: naquilo que é a característica mais relevante para se descobrir se alguém precisa de respeito ou não (a saber, a vulnerabilidade da vítima e a possibilidade dela ser prejudicada, por inflição ou privação), estamos, independentemente de espécie, enquanto seres sencientes, todos na mesma categoria.

#83 – A resposta para saber o que devemos fazer não pode ser encontrada no que faríamos

Sendo assim, o argumento da casa em chamas, pelo menos na forma com a qual Nigro o coloca, perde de vista uma característica crucial do raciocínio ético, que o difere de outros tipos de raciocínio: estamos querendo descobrir o que deveríamos fazer, e não, o que faríamos. O que eu faria numa situação assim é totalmente irrelevante para se descobrir o que se deve fazer. Eu poderia fazer todo o tipo de coisa, que isso não indica que o que eu fizesse estaria correto, ou que estaria errado. Supondo que na situação da ilha deserta eu matasse Nigro para salvar a minha filha. Para além de isso não indicar que, em outros contextos, é correto eu matá-lo, mesmo que fosse certo eu matá-lo nesse contexto, o mais importante é o que se segue:  do fato de que eu mataria Nigro num contexto assim não se pode inferir disso que a coisa certa a se fazer nesse contexto mesmo. A resposta teria de ser descoberta em outro lugar, que não no que faríamos.

#84 – O que a maioria faria também não é um bom guia para descobrir o que deve-se fazer/ as intuições da maioria podem ser preconceitos

O que quero apontar agora é que, se é uma falácia naturalista tentar deduzir do que um indivíduo particular faria numa situação, o que deveria ser feito; o mesmo acontece quando se quer deduzir a mesma coisa do que a maioria faria na mesma situação. Já vimos em outra sessão anterior (#29 até #40) por que o apelo à intuições sobre o que deveríamos fazer em casos particulares é perigoso: sem outro argumento adicional, não há como provar que tal intuição traduz a verdade ou se é meramente um preconceito. Se essa intuição pertence a poucos ou muitos, não muda essa possibilidade. Basta lembrar que a intuição da maioria das pessoas, pouco mais de cem anos atrás (e, lamentavelmente, de muitas pessoas hoje em dia) era  a de que humanos de pele branca valiam mais do que humanos de pele negra e de que homens valiam mais do que mulheres. Se o apelo a intuições sobre o que fazer em casos particulares fosse legítima, então chegaríamos na situação ridícula de ter que afirmar que, no século XIX, qualquer um que utilizasse como argumento “mas, nossas intuições dizem que brancos valem mais!”, teria então provado que o racismo está correto, e que brancos são mesmo superiores. Como percebemos facilmente hoje, essas intuições eram meros preconceitos. Então, o fato da maioria das pessoas ter uma intuição forte de que humanos valem mais não prova que humanos valem mais. Prova apenas que essa maioria é especista, não que o especismo é justificável. Para provar que o especismo é justificável, precisaríamos de outro argumento, que não meramente apontar que a maioria das pessoas tem um sentimento forte de que o especismo é justificável. A maioria pode estar enganada. Sendo assim, enxergar seres sencientes como iguais, independentemente de espécie, só parece imoral para a maioria porque essa maioria é especista. Da mesma maneira que, se alguém dissesse "seria imoral para o pai se ele ficasse raciocinando para escolher qual dos dois matar, filho branco ou filho negro" (e com isso desse a entender que o dever seria de salvar o filho branco), isso só pareceria imoral para quem fosse racista.

#85 – Analisando os critérios tidos como relevantes no argumento da casa em chamas: pertencimento à espécie humana; grau de racionalidade e vínculo afetivo do agente para com os atingidos

Já analisamos anteriormente os argumentos principais que Nigro utiliza para tentar justificar o especismo, e vimos que nenhum deles é um bom argumento. Todos têm sérias falhas, ou na sua forma, ou na falsidade de suas premissas. Um dos argumentos utilizados por Nigro, contudo, se estivesse correto, teria uma implicação curiosa, no dilema da casa em chamas: o argumento de que, quanto mais racional a vida, maior seu valor. Minha proposta é que analisemos duas das principais características que são tidas como relevantes no argumento da casa em chamas: (1) A espécie biológica dos indivíduos atingidos (que Nigro pensa estar atrelado automaticamente à maior capacidade racional) e; (2) O grau do vínculo afetivo do agente para com os atingidos.

#86 – Por que é falso que humanos possuem valor maior

Com relação à primeira, Nigro defende que membros da espécie Homo sapiens possuem um status moral superior. Já analisamos anteriormente os argumentos que ele endereçou para defender essa conclusão (#3 até #28), e vimos que nenhum deles se sustenta. Dentre esses argumentos, estavam: (1) A idéia de que todos os humanos possuem maior valor por serem indivíduos mais racionais que todos os animais não humanos. Tal argumento não se sustenta porque é falso que todo e qualquer humano é mais racional do que todo e qualquer animal não humano, e porque envolve uma confusão entre o critério relevante para saber quem deve responsabilizado (a posse da razão) e quem merece consideração (a vulnerabilidade). (2) A idéia de que os seres humanos possuem maior valor devido ao simples fato de serem humanos; que não se sustenta por ser circular. (3) A idéia de que animais não humanos não possuem valores em geral; que não se sustenta por ser uma falsidade empírica e; (4) A idéia de que animais não humanos, por não possuírem valores morais, possuem um valor inferior. Esse último argumento não se sustenta porque padece da mesma confusão do primeiro, entre os critérios relevantes para alguém ser responsabilizado pelo que escolhe e para alguém ser considerado moralmente. Naquilo que é relevante para saber o grau de cuidado que alguém precisa (a vulnerabilidade, e a possibilidade de ser prejudicado por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa, que depende da capacidade de sentir), humanos e não humanos sencientes estão em pé de igualdade. É por esse motivo que é falso que humanos possuem valor maior.

#87 – Mesmo se a posse da razão fosse um critério relevante para a consideração moral, isso não apoiaria a conclusão de que os humanos valem mais

Vamos supor, no entanto, que não fosse assim. Vamos supor, para efeito de argumentação, que a premissa maior do primeiro argumento de Nigro estivesse correta: que quanto maior a capacidade racional de um indivíduo, maior o seu valor. Veja que implicação curiosa teria esse argumento na situação da casa em chamas: se a escolha fosse entre salvar um bebê humano de um mês e um cão adulto, o dever seria de salvar o cão adulto, pois é mais racional. Então, em determinados casos, se Nigro fosse coerente com o critério que propõe, teria de defender que o dever é de salvar o animal não humano. Note que não estou dizendo que tal critério está correto (como já argumentei antes, penso que é um mau critério). O que estou dizendo é que o critério de que, quanto maior a capacidade racional, maior o valor da vida, não serve para sustentar a tese de que a vida de todo e qualquer ser humano vale mais.

#88 – O argumento da potencialidade

Nigro poderia, nesse ponto, contra-argumentar com o conhecido argumento da potencialidade: se o bebê continuar vivo, provavelmente ele será, quando (e se) chegar à idade adulta, mais racional do que o cão. Contudo, mesmo reformulado dessa maneira, o argumento não serviria para sustentar a tese de que a vida humana tem sempre valor maior. Por esse mesmo critério, se a decisão fosse entre salvar um humano com uma grave lesão cerebral irreversível que lhe tirasse todo tipo de autonomia e um peixe normal, o dever seria de salvar o peixe. E, não devemos esquecer que, se o critério é “quanto mais racional, mais valiosa a vida” , o mesmo não serve de apoio para a conclusão de que um pai tem direito de salvar seu filho. Se a escolha fosse entre salvar o filho e um grande filósofo, de acordo com esse critério, o dever seria salvar o grande filósofo. Novamente: menciono essas situações apenas para lembrar das implicações do critério sugerido por Nigro, que penso ser um critério irrelevante, pelas razões que já apontei. Menciono também para apontar que, em argumentos do tipo da casa em chamas, não fica claro qual é o critério que se pretende que seja relevante: se é o grau de racionalidade, se é a espécie do individuo atingido ou se é o vínculo afetivo do agente para com os pacientes. Como conclusão com relação ao argumento da potencialidade, mesmo que fosse verdade que a potencialidade para algo é moralmente relevante (e que seres que possuem uma determinada qualidade em potencial possuem o mesmo status de seres que possuem a mesma qualidade, só que real), e mesmo que todos os humanos fossem seres racionais em potencial, ainda assim tal argumento não teria sucesso para demonstrar que a posse da razão é relevante para saber o valor da vida de alguém. Isso porque o argumento da potencialidade assume que tal critério já é relevante, não o prova. E, temos outras razões para rejeitar tal critério. Quando perguntamos “qual o valor da vida deste indivíduo?”, o que queremos descobrir é o quanto de proteção tal vida precisa, comparativamente a outras vidas, e, em casos de prioridade, quem devemos salvar primeiro. Como pretendo mostrar a seguir (#113, #118 até #125, #156 e #157), os critérios relevantes, nessa questão, são outros.

#89 – O argumento do grupo

Outro argumento comum que não foi tentado por Nigro, seria o argumento do grupo: “mesmo os humanos que não são portadores da razão, nem reais nem potenciais, pertencem, contudo a um grupo (a saber, a espécie Homo sapiens), cujos membros normais a possuem; portanto, devemos tratá-los como se possuíssem; assim, o especismo está justificado”. O erro moral desse argumento é que “o grupo” já é devido com base na característica que se quer provar como relevante para fundar divisões em grupos. Ele contém uma circularidade, ainda que mascarada. Por que dividir o grupo com base na espécie biológica? Por que não em outra característica irrelevante qualquer, como o lugar de nascimento? O argumento poderia, por exemplo, tomar a forma de: “todos os seres sencientes, mesmo aqueles que não possuem razão, deveriam ser tratados como se possuíssem, porque eles pertencem a um grupo (a saber, os nascidos em Pipocas do Sul) cujos membros normais a possuem”. Vale lembrar que argumento semelhante foi utilizado contra o ingresso das mulheres na vida acadêmica, no século XIX [7]. O argumento era o de que deveria-se barrar a entrada daquelas mulheres que passassem na prova de admissão, porque a maioria das outras do mesmo grupo (o grupo das mulheres) não passou. Note que o argumento do grupo tem uma implicação ainda mais injusta: imagine que um animal não humano, com grande esforço, consiga o grau de racionalidade exigido para ser considerado moralmente, de acordo com o critério da posse da razão. De acordo com o argumento do grupo, o certo seria, mesmo assim, excluí-lo da consideração moral (o que inclui ser correto torturá-lo, queimá-lo vivo, assassina-lo, etc.) simplesmente porque ele não pertence a uma espécie cujos outros membros, os membros normais (não ele) não possuem tal capacidade. A grande lição a ser extraída desse argumento é que devemos tratar os indivíduos enquanto indivíduos, e não enquanto membros de um grupo – ainda mais quando a característica divisora dos grupos é tão arbitrária e irrelevante para o assunto quanto possível (o que o gênero de alguém tem a ver com a capacidade de passar em um vestibular? O que a espécie de alguém tem a ver com a possibilidade de ser prejudicado?). Se deseja-se tanto fazer divisões com base em grupos, as únicas características relevantes para se dividir os grupos, nesses tipos de caso que mencionamos são, respectivamente “aqueles que possuem razão/ aqueles que não possuem”; “os que passaram no teste; os que não passaram”, “os que podem ser prejudicados; os que não podem”, etc. Dividir os grupos dessa maneira seria a mesma coisa que tratar os indivíduos de acordo com suas características, pois o grupo seria dividido de acordo com a característica em questão. Além desse grave erro, o argumento padece do mesmo erro dos anteriores: confundir o critério relevante para saber quem deve ser responsabilizado pelas suas escolhas com o critério relevante para saber quem merece consideração moral.

#90 – A circularidade e arbitrariedade envolvida no argumento do grupo e outros similares

A outra maneira tentada por Nigro de defender o maior status moral dos membros da espécie humana é abandonar a idéia de que, quanto mais racional o ser, mais ele vale. O problema é que ele adota simplesmente a tese de que “humanos valem mais por serem humanos”, que não funciona porque é circular. Primeiramente, se pergunta “o que torna os humanos superiores?”, e a resposta é “a posse da razão”. Em seguida, se pergunta: “e, aqueles humanos que não possuem razão?”, a resposta é “são superiores porque, apesar de não possuírem capacidade para a razão, são humanos”. O argumento não funciona porque é circular. Da mesma maneira, quando se pergunta, “por que excluir da consideração moral os animais não humanos?”, a resposta é “porque não são racionais”. Quando se pergunta, “e, se algum deles for racional?”, a resposta é “devemos excluí-los porque são não humanos”. Isso revela não só que as respostas sugeridas são circulares, mas que os critérios adotados são mal-intencionados, escolhidos arbitrariamente, com vistas a excluir os animais não humanos da consideração moral. Por que não a data de aniversário ou o número de letras no nome, por exemplo? Esses dois critérios tem algo de fundamental em comum com o critério da espécie biológica: são irrelevantes para se saber se alguém pode ser prejudicado (por inflição de sensação ruim ou privação do desfrute) por nossas decisões.

#91 – O critério do vínculo afetivo sustenta a conclusão de que seres humanos valem mais?

Passemos, então, a analisar se o critério do grau do vínculo afetivo do agente para com os atingidos pela decisão é uma boa sustentação à tese de que seres humanos possuem maior valor. Não me proporei, nesse artigo, a analisar se o critério do vínculo afetivo é relevante (ou seja, se o vínculo afetivo gera razões para cada agente dar maior importância àqueles com quem possui tal vínculo em maior quantidade). O que me proponho é mostrar que ele não pode dar base para a conclusão de que a vida de seres humanos possui valor maior.

#92 – Razões objeto-dependente e razões agente-dependentes

Para entendermos melhor o que está em jogo nesse momento, é importante fazer a distinção entre razões objeto-dependentes (agente-neutras) e razões agente-dependentes (também conhecidas como “agente relativo”). Quando se fala de razões objeto-dependentes (agente-neutras) o que se quer dizer é que tais razões se aplicam a todo e qualquer agente de maneira igual, o que implica que todo e qualquer agente deve tomar a mesma decisão em uma determinada circunstância (já que o que gera a razão é o objeto da consideração, não quem está a decidir). Já as razões agente-dependentes existem devido a determinadas relações do agente com as circunstâncias, sendo que é possível que algo gere uma razão para um agente fazer uma coisa, e gere, ao mesmo tempo, uma razão para outro agente não fazer tal coisa.

#93 – Exemplo de preconceitos objeto-dependente e agente-dependente

Um exemplo ajudará a clarear as coisas. O especismo (ou qualquer outro critério moral) pode tomar essas duas formas. A defesa de que “seres humanos valem mais” é uma defesa de especismo objeto-dependente. Isso porque, o que determina o maior valor é uma característica do objeto da consideração (a saber, os seres humanos), ou seja, os pacientes da decisão, que não dependem da relação deste com um agente. Alguém que defende que “os humanos valem mais” defenderá que todos os agentes morais têm o dever de socorrer primeiro os humanos. Assim, por exemplo, se existissem agentes morais marcianos, um especista “objeto-dependnete” diria que os marcianos também têm o dever moral de dar prioridade a salvar os humanos. Note que dizer “as baleias valem mais”; “os porcos valem mais”, etc. são todas formas de especismo objeto-dependente, já que implicam que todo agente deveria dar prioridade à espécie eleita. Compare com a seguinte forma de especismo: “cada um deve dar prioridade aos da sua espécie”. Essa outra forma é agente-dependente, porque não dirá que todos têm o dever de dar prioridade aos humanos (ou a membros de alguma outra espécie); dirá que cada um tem o dever de dar prioridade aos da sua espécie. Assim, marcianos teriam o dever de salvar marcianos; humanos de salvar humanos, etc. Note que o mesmo tipo de coisa pode acontecer com outros preconceitos. Por exemplo, com relação ao racismo: “os membros da raça x valem mais” (racismo objeto-dependente); “cada um deve dar prioridade aos da sua raça” (racismo agente-dependente). O mesmo poderia acontecer com preconceitos de gênero, de nacionalidade, de direcionamento sexual, etc.

#94 - A relação dos preconceitos objeto-dependente e agente-dependente com o egoísmo

Essa diferenciação é importante para entendermos a confusão no argumento de Nigro na casa em chamas (como veremos no parágrafo seguinte). Também é importante para entendermos outra confusão que ele faz, quando nega que preconceitos como o especismo, racismo, machismo tenham origem no egoísmo. Como parece já estar claro, em raros casos isso é verdade, pois nunca é verdadeiro com relação ao preconceito agente-dependente (pois cada um tem que priorizar os seus); e, mesmo com relação aos preconceitos objeto-dependente, é raríssimo encontrarmos alguém defendendo que um determinado grupo (espécie, raça ou gênero, por exemplo) é superior e não seja, ao mesmo tempo, membro desse mesmo grupo eleito como superior.

#95 – A forma das razões que um critério oferece (se é objeto-dependente ou agente-dependente) não diz se o critério é moralmente relevante ou irrelevante

Um detalhe importante: o que descrevi nesse parágrafo são formas com que os critérios propostos tomam. Apesar de eu ter dado exemplos com preconceitos, nada nesse tipo de forma indica que sejam justificáveis ou injustificáveis. Todo critério moral, seja relevante ou irrelevante, toma, ou uma forma objeto-dependente ou agente-dependente. Por exemplo, o critério da senciência como relevante para se determinar quem devemos considerar moralmente assume a forma objeto-dependente. Ou seja, todo e qualquer agente, diante de um ser senciente, possui as mesmas razões para considerá-lo (porque as razões são geradas pelo objeto do respeito, a saber, nesse caso, os seres sencientes). Assim, a resposta para se saber se um critério é relevante ou não precisa ser investigada em outro lugar, que não na sua forma objeto-dependente ou agente-dependente.

#96 – Por que a espécie da vítima é um critério moralmente irrelevante

O especismo, seja objeto-dependente ou agente-dependente, assume que a espécie das vítimas é um critério moralmente relevante, não o prova. O argumento para demonstrar que tal critério é moralmente irrelevante já foi apresentado anteriormente: uma vez que o indivíduo em questão é senciente, a espécie biológica não influi na possibilidade dele ser prejudicado por inflição de sensação ruim ou privação de desfrute. Como diminuir prejuízos (porque esses são ruins) e aumentar benefícios (porque esses são bons) de maneira imparcial (porque alguém não possui maior valor por ser quem é, como veremos na discussão sobre o egoísmo, em #147 até #157) devem ser a preocupação central da ética, segue daí que a espécie biológica de um indivíduo (sendo tal indivíduo vulnerável aos prejuízos por inflição ou privação, portanto, senciente), uma vez que tal critério não influi nessas características, é irrelevante moralmente.

#97 – O argumento da casa em chamas e a associação injustificada do critério do vínculo afetivo (agente-dependente) com o critério da espécie (objeto-dependente ou agente-dependente)

Vamos então à outro problema grave com o argumento da casa em chamas: é um argumento que pretende se basear, ao mesmo tempo, na idéia de que a espécie da vítima é moralmente relevante, e de que o vínculo afetivo do agente para com os pacientes de sua decisão também é. Como vimos, o especismo pode vir na forma objeto-dependente (“os membros da espécie x são superiores”) ou agente-dependente (“cada um deve priorizar os da sua espécie”). O argumento de Nigro parece assumir um especismo objeto-dependente  na forma de que ‘humanos sempre valem mais’). Contudo, as considerações a seguir se manteriam as mesmas, se o especismo em questão fosse agente-dependente. O argumento da casa em chamas se baseia, ao mesmo tempo, em razões agente-dependentes (o vínculo afetivo que o agente mantém para com os atingidos). O erro de associação de uma coisa com a outra consiste em pensar que tal vínculo afetivo estaria sempre atrelado à espécie, mas isso é falso. Não necessariamente um agente terá maior vínculo afetivo com humanos, ou com alguém de sua espécie. É preciso lembrar também, para maior clareza na análise a seguir, que o critério do vínculo afetivo, no argumento da casa em chamas, é colocado como um critério relevante para se saber qual a decisão correta (não apenas para desculpar alguém caso tenha tomado a decisão errada).

#98 – Possibilidades de situações de interação entre os critérios do especismo e do vínculo afetivo

Tendo em mente que o argumento da casa em chamas pretende apontar qual a decisão moralmente correta, é preciso analisar algumas possibilidades de como esses dois critérios (o do especismo e o do vínculo afetivo) interagem. Vamos supor as seguintes possibilidades:

#99 – Vínculo afetivo neutro, vítimas de espécies diferentes

(1) O agente não tem nenhum vínculo afetivo para com os atingidos, e ambos são de espécies diferentes (um é humano, outro não é). A conclusão de que o dever é de salvar o humano só faria sentido se fosse verdade que alguém vale mais por pertencer à espécie Homo sapiens. Por tudo o que já foi debatido acima (#3 até #28), temos razões de peso para rejeitar essa conclusão.

#100 – Vínculo afetivo neutro, vítimas da mesma espécie

(2) O agente não tem nenhum vínculo afetivo para com os atingidos, e ambos são da mesma espécie (ambos são humanos, ambos são cães, ambos são porcos, etc.). Nesse caso, os critérios sugeridos por Nigro não oferecem guia algum para a decisão (mesmo que a espécie fosse um critério relevante!). Nesse caso, a coisa correta a fazer seria “jogar a moedinha”? Mais adiante (em #112, #113, #118 até #125, #156, #157), exporei porque penso que, na maioria das vezes, existem outros critérios melhores do que “jogar a moedinha” (critérios relevantes que não violem a exigência de imparcialidade, que será explicada mais adiante, em #113 e #114).

#101 – Vínculo afetivo diferenciado, vítimas de espécies diferentes, maior vínculo com o humano

(3) O agente possui maior vínculo afetivo com o paciente A do que com o paciente B. O paciente A é humano, enquanto que o paciente B não é. Nesse caso, mesmo assumindo para efeito de argumentação que o critério do vínculo afetivo é relevante, o que o argumento mostra é que, nesse caso, o agente tem razões para salvar A não por este ser um humano, mas, por ter maior vínculo afetivo com ele.

#102 – Vínculo afetivo diferenciado, vítimas de espécies diferentes, maior vínculo com o não humano

(4) O agente possui maior vínculo afetivo com o paciente B do que com o paciente A. O paciente A é humano, enquanto que o paciente B é um animal não humano. Fazendo-se a mesma suposição (de que o critério do vínculo afetivo é relevante), então teríamos o resultado de que, nesse caso, o agente está justificado a salvar o animal não humano. Mais uma vez, tal justificativa tem lugar não por se tratar de um animal não humano, mas, devido ao maior vínculo afetivo do agente para com este. Então, se o critério do vínculo afetivo for relevante, ele dá razões para, pelo menos em alguns casos, pensarmos que o agente tem justificativa para salvar o animal não humano.

#103 – A objeção de que a espécie da vítima anula o critério do vínculo afetivo

Se, nesse ponto, Nigro objetar que o dever é sempre de salvar o humano, independentemente de vínculo afetivo, então não deveria ter apelado a exemplos onde o vínculo afetivo é um dos pontos centrais, como o exemplo da casa em chamas. Para que trazer exemplos com vínculo afetivo se não se considera ele como tendo peso que possa rivalizar com o da espécie, afinal de contas? Nesse caso, o fato de se colocar a filha do interlocutor como exemplo deixa muito clara a tentativa de apelo retórico. E, por tudo o que já vimos anteriormente, o critério da espécie não é relevante, então, mesmo que o do vínculo afetivo seja ou não relevante (e, se for relevante, tenha a importância que tiver), saber a espécie da vítima não nos responde qual a decisão correta

#104 – Vínculo afetivo diferenciado, ambas as vítimas da mesma espécie (conclusões principais com relação ao argumento da casa em chamas)

(5) O agente tem vínculo afetivo maior com A do que com B, e ambos são da mesma espécie (ambos são humanos, por exemplo). Nesse caso, o exemplo da casa em chamas sugere que o agente tem justificativa para salvar A (assume o critério do vínculo afetivo como relevante). Mas, note a implicação desse raciocínio: se estiver correto (se o vínculo afetivo for um critério relevante), então isso não é um caso particular de “ou salvar o humano ou o não-humano”; tais exemplos se aplicariam quando o caso fosse entre escolher salvar este ou aquele humano. Portanto, isso mostra que o exemplo da casa em chamas não serve para provar que as vidas de humanos valem mais. E, perceba o principal: mesmo que o critério do vínculo afetivo seja relevante para gerar razões agente-dependentes para cada diferente agente, isso não prova que o paciente em questão possui valor maior, objetivamente, enquanto indivíduo (ele só tem esse ‘valor’ devido à sua relação com o agente).

#105 – Vínculo afetivo igual, ambas as vítimas humanas (comentário sobre critério da posse da razão ser uma racionalização do especismo, e não um critério no qual se acredita realmente) 

(6) O agente tem vínculo afetivo igual com A e B, sendo que ambos são humanos. Nesse caso, precisaríamos de um terceiro critério, pois, se o critério do vínculo afetivo for relevante, ele oferece, nesse caso, iguais razões para salvar ou A ou B (e, se o da espécie fosse relevante, também ofereceria iguais razões). Vamos supor que fosse relevante o critério que Nigro sugere, da maior posse da racionalidade. Seria um dever, por exemplo, salvar sempre o adulto e não o bebê, preferir sempre o bebê sem doença mental  do que aquele com doença mental, etc. Note que, por esse critério, o dever seria preferir um cão normal ou um peixe normal do que muitos humanos com doenças degenerativas mentais. Pelo critério de Nigro, da maior capacidade racional, ele teria que salvar o chimpanzé adulto, e não o bebê humano. Importante: se ele diz que vai salvar o bebê humano, e admite-se especista (e, portanto, que se baseia num preconceito irracional da mesma ordem do racismo), então admite que o critério da maior capacidade racional foi trazido apenas como manobra retórica.

Nesse caso, para evitar tais conclusões, talvez o autor aceitasse o “jogar uma moedinha”. Mas, como veremos mais adiante (em #112, #113, #118 até #125, #156, #157), existem outros critérios melhores.

#106 – Vínculo afetivo igual, ambas as vítimas não humanas

(7) O agente tem vínculo afetivo igual para com A e B, e ambos são animais não-humanos. Idem ao anterior, haja vista que a espécie da vítima não é um critério moralmente relevante, devido às razões expostas anteriormente (#3 até #28).

#107 – Vínculo afetivo igual, uma vítima humana e outra não humana

(8) O agente tem vínculo afetivo igual para com A e B, sendo que A é humano e B é um animal não-humano. Se o critério do vínculo afetivo for relevante (e, se não houverem outros critérios relevantes), o agente tem iguais razões para salvar ou A ou B. Nigro poderia aqui afirmar que o dever é sempre de salvar o humano. Contudo, como já vimos exaustivamente antes (#3 até #28), os argumentos que ele oferece para sustentar o maior valor da vida de humanos possuem erros graves. Supondo, para efeito de argumentação, que o critério do vínculo afetivo é relevante, então, num caso assim, tanto faz salvar ou A ou B.

#108 – O preconceito embutido no argumento da casa em chamas, parte 1

Essa última consideração é importante, pois ela mostra que mesmo com a força de uma relação afetiva, o preconceituoso tenta manter o seu preconceito a qualquer custo.  Para entender esse ponto, perceba que a estratégia do argumento é utilizar como exemplo alguém com quem tenho um forte vínculo afetivo (minha filha) e alguém que (supostamente, no entender de Nigro), eu não teria esse vínculo (os gatos que eu tivesse adotado). Um exemplo não tendencioso de dilema com relação a vínculos afetivos, envolveria duas vítimas com relação as quais o  agente possui igual vínculo afetivo: "salva qual das suas filhas?".  Para entender esse ponto, e como o argumento da casa em chamas envolve um preconceito, considere uma modificação no exemplo. Qualquer um com um mínimo de senso moral veria o quão preconceituoso seria um argumento assim: "Imagine que na casa em chamas está a sua filha e dois negros (ou, dois homossexuais, ou duas mulheres, ou dois judeus); é perfeitamente possível salvar o primeiro negro, mas...etc.". Se o que conta são as relações afetivas (como o exemplo da casa em chamas parece sugerir), por que não simplesmente sugerir “salva sua filha ou um estranho?” – sem menção alguma a raça, gênero, opção sexual, espécie, etc? Note que mais ridículo ainda seria utilizar esse tipo de argumento para tentar justificar assassinar e escravizar membros desses grupos (como Nigro pretende com o argumento da casa em chamas, em relação a assassinar e escravizar membros de outras espécies). Nigro poderia dizer “mas, racismo, nazismo, machismo e homofobia são diferentes, pois trata-se de vítimas humanas”. O erro nessa resposta é não perceber que o que nós estamos criticando é exatamente esse ponto: especismo não é um critério melhor do que racismo, homofobia, machismo ou nazismo. E, os argumentos que Nigro endereçou para mostrar que se tratam de coisas diferentes falharam (ou porque mostram que nem todos os humanos se enquadram no critério sugerido por ele – a posse da razão – e porque envolve a confusão entre o critério relevante para ser responsabilizado com o critério relevante para ser respeitado, ou por circularidade, como vimos em #3 até #28). Mas, adentraremos depois em mais detalhes nessa questão (analisaremos outro argumento que Nigro endereça para tentar demonstrar que o especismo é diferente do racismo, machismo, homofobia e nazismo em #158 até #168) nos próximos itens.

#109 – O preconceito embutido no argumento da casa em chamas, parte 2

Nigro poderia objetar que o exemplo que oferece não é com relação a “salva sua filha ou um estranho?”, mas “salva sua filha ou seus gatos?”. O problema é que, apesar de inicialmente parecer uma saída, isso torna o exemplo de Nigro é mais preconceituoso ainda, pois no caso, não são estranhos a quem eu tenho que escolher salvar, são os "meus" gatos. Para vermos o quão preconceituoso o exemplo é, basta trocarmos o critério com o qual o proponente do argumento distingue as vítimas: “você salva sua filha branca ou sua filha negra?”; “salva seu filho hetero ou seu filho homossexual?”, “salva seu filho homem ou sua filha mulher?”, etc. Para entender melhor a analogia com o exemplo proposto por Nigro, suponha que a escolha se tratasse entre a minha filha biológica e os gatos que adotei. Se eu tivesse adotado tais gatos, o sentimento que eu teria para com eles seria de filhos adotivos. Então, o argumento de Nigro teria de ser re-escrito assim: "Numa casa em chamas, está sua filha biológica e seus dois filhos adotivos..." (note que agora não há referência à espécie, já que isso não influenciaria no vínculo afetivo, e já que é um critério moralmente irrelevante). Veja, não há nada no argumento que prove que a vida de um filho biológico vale mais do que a vida de um filho adotivo.

#110 – A circularidade do argumento da casa em chamas e a irrelevância da posse da razão como critério de afetividade

Nigro poderia responder: "ah, mas os outros filhos, nesse caso, seriam de outra espécie". Mas isso é circular:  é supor aquilo que o argumento pretende provar.  Ou seja, o argumento pretende provar que a espécie da vítima é um critério moralmente relevante, mas, ao invés de prová-lo já assume que é relevante. Nigro poderia objetar novamente: “não é possível ter graus de afetividade iguais para com humanos e não-humanos: humanos são mais racionais”. Já vimos que o problema com esse argumento é que isso é simplesmente falso: existem humanos muito menos racionais do que determinados animais não humanos. Será que um pai deveria ser proibido de amar um filho seu, tanto quanto os outros, só porque tal filho sofre de uma doença degenerativa mental? Se isso fosse verdade, seria errado para as mães terem um vínculo afetivo forte com seus bebês, já que ainda não são racionais. Um peixe adulto possui muito mais autonomia prática do que qualquer bebê. Se percebemos claramente que o critério da racionalidade não é um bom critério para descobrir quem precisa de vínculos afetivos, cuidado, proteção e amor no caso de seres humanos, então o mesmo não pode ser utilizado como estratégia de retórica para se afirmar que não se deve ter o mesmo tipo de vínculo para com animais não humanos. Achar ridículo alguém ter com animais não humanos o mesmo grau de vínculo afetivo com que se tem com filhos humanos é de um especismo extremo. Num caso como o exemplo proposto por Nigro, eu veria a escolha como entre ter que salvar três filhos (de espécies diferentes, mas ainda filhos). E realmente, num caso assim, o que eu faria (e também o que penso ser correto fazer) é salvar aquele que conseguisse pegar primeiro, não importa a espécie. Se Nigro retrucar, alegando que é doentio ter um vínculo afetivo igual com animais não humanos, porque esses não são capazes de razão, teremos de lembrá-lo que, então, o mesmo seria verdade para o vínculo afetivo da mãe com o bebê, ou dos pais para com filhos com doenças mentais permanentes, para com idosos senis, etc. Se Nigro, novamente, alegar que “ah, mas nesse caso estamos falando de humanos”, teremos de lembrá-lo mais uma vez da circularidade desse argumento (pois o argumento da razão foi trazido para justificar a superioridade dos humanos), e assim infinitamente, até ele entender essas noções básicas de raciocínio e vencer o preconceito que o impede de pensar com clareza a questão.

#111 – Por que as únicas condições que tornariam o argumento da casa em chamas minimamente plausível ao mesmo tempo o condenam ao fracasso

Para o argumento de Nigro ter alguma plausibilidade, ele teria que abandonar completamente a idéia de que é justificável se basear nos vínculos afetivos que temos. Ele teria de dizer: (1) Ou que temos o dever de salvar seres humanos, independentemente do grau de vínculo afetivo que o agente tem para com os pacientes. Como vimos, os argumentos oferecidos para justificar o maior valor da vida humana fracassam (#3 até #28), então, essa tentativa não teria sucesso. Ou, (2) Que temos o dever de ter um vínculo afetivo maior para com seres humanos. Essa idéia está também condenada ao fracasso, porque ela depende do sucesso da primeira (a saber, dependeria dos seres humanos possuírem valor maior). Portando, o argumento da casa em chamas está fadado ao fracasso, seja lá a forma que tiver.

#112 – Mesmo se humanos tivessem valor maior, isso não sustenta a conclusão de que é correto assassinar quem teria valor menor, e nem mesmo que humanos sempre deveriam ter prioridade (devido ao critério do vínculo afetivo) 

Mas, vamos supor, para efeito de argumentação, que Nigro conseguisse provar que os seres humanos possuem um valor maior, e que seria um dever optar por salvar o humano numa situação do tipo da casa em chamas. Como já vimos, isso não serviria para justificar o assassinato e outras formas de exploração sobre os animais não humanos. Contudo, existe outro detalhe importante. Como vimos, o status do critério do vínculo afetivo enquanto critério relevante para entrar no cálculo da decisão correta numa situação extrema é duvidoso. Note que não estou a dizer que é irrelevante ou que não é. Não é meu objetivo aqui responder a esse ponto, e nem sei se tenho a resposta. O que parece é que, quase certamente, o critério do vínculo afetivo é um critério relevante para se desculpar alguém por não ter tomado a decisão correta numa situação extrema. Supondo que A tenha o dever de salvar o indivíduo B, mas que, por ter um vínculo afetivo imenso com C, opta por salvar C. Por se tratar de uma situação extremamente difícil para A, mesmo que ele tenha tomado a decisão errada, isso é altamente desculpável. Então, vamos supor, para efeito de argumentação, que Nigro tivesse provado que há sempre dever de salvar os humanos numa situação do tipo da casa em chamas. Supondo que eu tenho que escolher entre salvar A, que é humano mas eu não tenho nenhum vínculo afetivo e B, que é um não-humano com o qual eu tenho um vínculo afetivo forte. Nesse caso, se eu escolher salvar B, mesmo tendo tomado a decisão errada (no nosso exemplo fictício), Nigro não poderia me condenar. Não mais do que pode condenar alguém que, diante da escolha entre salvar alguém supostamente mais valioso (para efeito de argumentação) e salvar o próprio filho, opta por salvar o próprio filho.

#113 - A exigência de imparcialidade e a questão da prioridade e da justa distribuição

O que é mais ridículo em argumentos do tipo da casa em chamas é que exatamente os critérios relevantes para a moralidade da decisão ficam de fora, e quase nunca são mencionados, ao mesmo tempo que se enfatiza vários critérios que são, ou irrelevantes, ou altamente duvidosos. Um dos pilares centrais que tornam possível o raciocínio moral é a imparcialidade. Por imparcialidade, o que se quer dizer é que, se alguém receberá algum benefício especial (ou, algum dano), o motivo pelo qual isso se justifica não é que tal indivíduo é quem ele é. O motivo precisa residir em uma característica que apareceu nesse indivíduo, mas poderia ter aparecido em outro. Isso mostra o quão confusa é a idéia de que a imparcialidade implica em tratar exatamente igual cada um dos atingidos. Por exemplo: suponha que eu tenho 100 quilos de arroz para distribuir, e os necessitados que eu tenho possibilidade de ajudar sejam apenas dois indivíduos. O indivíduo A já possui 50 quilos, enquanto que o indivíduo B não possui nada. Num caso como esse, a consideração imparcial manda favorecer o indivíduo B (dar a ele 75 quilos e somente 25 para o indivíduo A). Diz-se que essa decisão cumpriu o requisito de imparcialidade porque, embora ele favoreça B, não se favoreceu B porque é B. Se favoreceu B porque ele está na pior situação. Poderia ter sido A o beneficiado, se ele estivesse na pior situação. O que é importante é lembrar que, para um critério ser relevante, ele precisa, no mínimo, ser possível de ser formulado de forma geral (ou seja, sem fazer referência a indivíduos ou grupos específicos que não tenham a ver com o assunto). No caso, se quiséssemos fazer uma divisão em grupos, os únicos grupos relevantes teriam de ser “aqueles que estão na pior situação” e “os que não estão”. Não faria o menor sentido dividir por raça, gênero, ou espécie (a menos que isso indicasse que boa parte dessa divisão em grupos coincide exatamente com a divisão dos que estão na pior situação – nesse caso, seriam características indiretamente relevantes). Por exemplo, na situação atual, o grupo dos que estão na pior situação coincide quase sempre com o grupo dos animais não humanos. Poderiam ser membros de qualquer outro grupo que estivessem na pior situação (se fosse esse o caso, a prioridade seria deles), o que prova a imparcialidade do critério “dar prioridade aos que estão na pior situação”. Mas, é sempre muito melhor dividir os grupos com base na característica diretamente (e não indiretamente) relevante para situação: os que se encontram e os que não se encontram na pior situação. Tal critério cumpre os requisitos de imparcialidade (por ser geral quanto aos indivíduos ou grupos), e por se basear na característica relevante central para a questão: se a questão é distribuir algo, o ponto central é ver quem tem maior necessidade.

#114 - Por que determinados critérios não cumprem a exigência de imparcialidade e por que determinados critérios são moralmente irrelevantes, e por que outros critérios são arbitrários

Compare com critérios como espécie biológica, raça, gênero, país de nascimento, etc. Existem pelo menos três problemas graves com esse tipo de critério. O primeiro é que ele não cumpre o requisito de imparcialidade. Uma vez que o indivíduo nasceu numa determinada raça, não há como ele mudar para outra. Uma vez que nasceu em determinada espécie, não há como mudar para outra, e assim por diante. O segundo problema, é que a eleição do critério é arbitrário, pois é baseado numa característica moralmente irrelevante. Lembre-se que estamos querendo descobrir quem merece respeito, quem deve ter sua vida protegida, etc. A raça, gênero, espécie, país de nascimento não influenciam no motivo pelo qual alguém precisa de respeito: a possibilidade desse alguém ser prejudicado (por inflição de sensação ruim ou privação de desfrutar algo bom), já que é vulnerável. Então, cabe notar que raça, espécie, gênero são critérios tão moralmente relevantes como o dia do nascimento, o formato da orelha, o número de letras no nome, a data de aniversário, etc. O terceiro problema é que, além do critério mesmo se basear numa característica moralmente irrelevante, a eleição do grupo beneficiado dividido de acordo com esse critério também é arbitrária. Por exemplo, o especismo adota o critério da espécie biológica como se fosse um critério relevante (que, como vimos, não é), e, além disso, assume que a espécie Homo sapiens possui maior valor, mas (isso é postulado, sem motivo algum, como já analisamos anteriormente em #23 até #28). Os argumentos oferecidos para sustentar tal tase são mais racionalizações do que os reais motivos dos seus proponentes acreditarem nela. Como vimos, o argumento da posse da razão não serve para sustentar tal tese (porque existem humanos que não são racionais, e porque a posse da razão também é irrelevante para se saber quem deve ser moralmente considerado). A pergunta a ser feita é: se a espécie é relevante, por que os humanos, e não qualquer outra espécie?

#115 – Os reais motivos por trás dos argumentos que visam defender o especismo e as “razões do coração”

A resposta mais sincera de Nigro (mas, nem por isso uma boa resposta) é oferecida, depois de perceber que o critério da posse da razão não é moralmente relevante, e de perceber que é circular apontar que “humanos são humanos”: “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. E, desconfio eu, ainda que isso seja uma mera especulação, que talvez o motivo real ainda seja outro: a dificuldade em aceitar a conclusão prática de ter que abolir o consumo de produtos de origem animal e de ter que reivindicar igual consideração para todos os seres sencientes. Oferecendo essa resposta (“o coração tem razões que a própria razão desconhece”), o autor admite implicitamente que as razões que oferece não são boas, e que tudo o que ele possui é um sentimento forte de que humanos valem mais (assim como os nazistas possuíam um sentimento forte de que os arianos valiam mais). Na falta de razões em respaldo de uma intuição moral (ainda mais uma intuição moral que causa tanto sofrimento e morte no mundo), temos razões de peso para considerá-la um preconceito eticamente indefensável. Retratá-la poeticamente, chamando-a de “razões do coração” não tem o poder de tornar justificável um preconceito irracional, tem apenas o poder de fazer parecer assim na mente dos ingênuos e facilmente manipuláveis. Felizmente, essa forma de manipulação não funciona com todo mundo.

#116 - Em defesa do critério da senciência e a relação da senciência com a existência de indivíduos

Uma possível objeção seria dizer que, assim como os critérios da espécie, raça e gênero, o critério da senciência também impossibilita um indivíduo de mudar de grupo. Em outras palavras, alguém poderia dizer: “você está sendo injusto com os vegetais, e os minerais (e as cadeiras e os tijolos) por favorecer os seres sencientes”. O erro com esse argumento é não perceber que, diferentemente dos critérios da espécie, raça e gênero (onde há sempre um indivíduo prejudicado), o critério da senciência não prejudica indivíduos. É inteligível dizer que um racista prejudicou um membro da raça que ele considera inferior, assim como é inteligível dizer que um especista prejudica animais não humanos. Não é inteligível (a não ser de forma metafórica, não literal), dizer que “o limão foi preudicado pelos que acham que a senciência deveria ser o critério moralmente relevante para estabelecer quem merece respeito”. Isso não faz sentido porque não há um indivíduo limão a quem se possa prejudicar. Apenas para relembrar, vimos que existem duas formas básicas de se prejudicar alguém: ou por inflição de sensação ruim, ou por privação de sensação boa. Repare que isso depende da existência da capacidade para sensações. A própria noção de indivíduo remete à existência mental: aqueles seres aos quais a existência da mente proporciona a sensação de que ‘você é um só’ (e não um aglomerado de partes). É possível dizer, de forma metafórica, que a “a cadeira foi prejudicada ao ser quebrada”. Mas, esse “prejudicada” é sempre entre aspas. Não há um indivíduo cadeira que “se lascou” por ter sido quebrada, já que isso não impediu ela de desfrutar (já que tal capacidade nela é impossível) muito menos lhe infligiu sensação ruim alguma (já que ela não depende de sensações). A cadeira é às vezes vista como um indivíduo por algumas pessoas, mas quem faz isso são os seres sencientes humanos. Outro detalhe importante é entender que o critério da senciência é elegido não por ser algo que a maioria dos demais animais possui em comum com os seres humanos (como se acusa freqüentemente, do critério da senciência ser, no fundo, antropocêntrico), mas sim, por ser uma condição necessária para existir prejuízo ou benefício para um indivíduo. Então, também é falsa a acusação de que o critério da senciência é antropocêntrico.

#117 – A importância de se descobrir quais critérios relevantes para decisões do tipo da casa em chamas

Tendo entendido o que é um critério imparcial, gostaria de apontar agora que existem critérios imparciais moralmente relevantes que nos ajudariam a tomar a decisão correta para casos do tipo da casa em chamas. Muitas pessoas pensam que tais critérios não são necessários, pois raramente nos deparamos com situações desse tipo. Isso é falso por pelo menos dois motivos. Bombeiros e médicos, por exemplo, se deparam diariamente com decisões sobre quem dar prioridade no salvamento da vida. O segundo motivo é que, se levarmos em conta as vidas que podemos salvar com doações de tempo e dinheiro, vamos precisar de um critério assim para tomar uma decisão justa.

#118 – Critérios moralmente relevantes em situações do tipo da casa em chamas: vulnerabilidade e igualdade de bem-estar ao longo do tempo

Então, melhor do que “atirar uma moedinha para o ar” (critério mencionado por Nigro), outros critérios poderiam entrar em cena. O dilema da casa em chamas deixa de fora exatamente dois outros critérios que penso serem extremamente relevantes para estabelecer a prioridade de socorro numa situação assim: (1) O grau da capacidade de se virar sem ajuda na presente situação (menor ou maior vulnerabilidade) e; (2) a igualdade de bem-estar ao longo do tempo. Tais critérios cumprem as exigências de imparcialidade, pois são gerais (não favorecem tendenciosamente nenhum indivíduo).

#119 - Prioridade a quem tem menor habilidade para resolver a situação sem ajuda (maior vulnerabilidade)

É importante notar que tais critérios geram razões objeto-dependentes (iguais para todos os agentes), pois se tratam de características que são determinadas unicamente pelas habilidades dos indivíduos atingidos pela decisão (e tais habilidades são independentes de gênero, espécie, raça, etc.). Novamente, apelar à raça, gênero, espécie, nesse caso, só faria sentido se tais critérios coincidissem com as habilidades dos indivíduos em questão (digamos, que os indivíduos da espécie x tivessem sempre menor habilidade de escapar de incêndios, etc.). Contudo, com vistas a prevenir o especismo ou qualquer outro critério tendencioso, melhor nos basearmos unicamente na característica que o princípio propõe: as chances que o indivíduo possui de se virar sem ajuda na presente situação. Ao que parece, é razoável supor que tais critérios são independentes e superam quaisquer considerações sobre o vínculo pessoal do agente para com os pacientes. Ou seja, se são dois estranhos que serão atingidos pela minha decisão, é sempre melhor oferecer ajuda ao que possui menor habilidade na situação (portanto, maior vulnerabilidade). Se, por outro lado, possuo vínculo afetivo com um deles e não com o outro, vale a mesma regra. Se minha filha for uma excelente nadadora e o filho de um estranho não souber nadar, pelo menos à primeira vista parece que a coisa certa a se fazer é tentar salvar primeiro o filho do estranho. E, importante, essa regra se baseia num critério gradual: quanto menor a chance do paciente se livrar sozinho na situação (portanto, quanto maior sua vulnerabilidade), maior o dever de dar prioridade ao seu socorro. Essas capacidades terão de ser sempre pesadas em comparação com as capacidades dos outros pacientes atingidos pela minha decisão. Quanto menores as diferenças de capacidades entre tais pacientes, menores as razões para dar prioridade para este ou aquele. Esse critério nos lembra de outro detalhe importante: quanto maiores as habilidades ou capacidades de alguém, as reivindicações desse alguém para exigir prioridade no socorro terão sempre um peso moral menor, não maior, como pretende Nigro. É por isso que a posse da razão geralmente só deveria gerar mais deveres (porque aumentam as habilidades de alguém), e não, mais direitos.

#120 - Distribuição eqüitativa de bem-estar e de habilidades para buscar o bem-estar/ linha de suficiência na re-distribuição de bem-estar

Na consideração que fiz acima, na última frase, está implícita um dos objetivos centrais da ética: um tratamento eqüitativo entre os indivíduos. Por que deve ser assim? Por que o egoísmo não se justifica (como esclarecerei em #147 até #157). Por eqüitativo, quer-se dizer igualar tanto as distribuições de bem-estar quanto igualar as habilidades dos indivíduos na busca desse bem-estar. Ou seja, em qualquer uma dessas considerações, o objetivo é neutralizar a sorte. Assim, por exemplo, deveríamos buscar tanto que os indivíduos chegassem a níveis próximos de bem-estar (assim, os que estão na pior situação merecem prioridade nesse atendimento) quanto a níveis próximos de habilidades para buscar esse bem-estar, pois isso aumenta as chances de um resultado mais próximo de níveis de bem-estar. Como atingir o bem-estar almejado tem relação com as habilidades do indivíduo em buscar esse bem-estar, daí a regra de que quem tem menor habilidade deve receber atenção primordial. Quanto ao primeiro ponto, se for necessário tirar um pouco dos que estão na melhor situação para melhorar as do que estão na pior, o princípio da eqüidade na distribuição justifica essa decisão. A própria idéia de impostos e também a do dever moral de ajudar quem está na pior situação se baseia, em parte, nesse princípio. Contudo, em algum ponto, será necessário estabelecer um limite do quanto é justificável tirar de uns para beneficiar outros que estão numa situação pior. É por esse motivo que alguns filósofos estabelecem o que chamam de linha de suficiência – um ponto a partir do qual se pode dizer que, abaixo dessa linha, o indivíduo não está bem (então quanto mais abaixo, é cada vez menos justificável daná-lo para beneficiar os que estão pior do que ele), e acima dessa linha, que o indivíduo está bem (então, quanto mais acima, cada vez mais justificável daná-lo para beneficiar os que estão na situação pior – é por esse motivo que, quanto mais alguém possui, mais dever têm de doar). Note que nada disso justifica assassinar alguns , ou obrigá-los a servir como cobaia – pois isso é colocá-los abaixo da linha de suficiência.

#121 – Igualdade de bem-estar ao longo do tempo

A distribuição eqüitativa de bem-estar não se deve limitar somente a considerações quanto ao presente. Isso porque seria injusto considerar somente o presente. Ilustrarei esse ponto com exemplos utilizando números. No dia-a-dia, não temos como fazer comparações precisas dessa maneira. Contudo, os números, além de nos ajudarem a entender o princípio em questão, nos lembram que no dia-a-dia, apesar de não utilizarmos números, fazemos, intuitivamente, comparações aproximadas. Considere, por exemplo, os indivíduos A e B. No momento presente, A se encontra no nível de bem-estar +50 e B no nível +55. Se, ao distribuirmos algum bem (seja alimento, seja prioridade na ajuda, seja escolher salvar a vida, por exemplo), dissermos automaticamente que a prioridade é de A, por estar numa situação pior, corremos risco de sermos injustos, pois não consideramos o que aconteceu durante as vidas como um todo, desses indivíduos. Supondo que, se contássemos o que aconteceu durante a vida inteira desses dois indivíduos, o resultado seria que A viveu o tempo todo perto do nível +50, enquanto que B viveu o tempo todo abaixo de –5 e só agora conseguiu um bem-estar razoável. Nesse caso, é razoável concluir que a prioridade é de B, pois, apesar dele estar melhor do que A no momento presente, o momento presente é apenas um dos vários estágios da vida de cada um no total. E, se enxergarmos a vida como um todo, veremos que nenhum dos estágios particulares deve ter um status privilegiado. Obviamente, como acontece com toda visão filosófica, essa também possui objeções (alguns autores reivindicam que devemos considerar somente o momento presente). Não abordo essas objeções aqui. Minha meta nessa resposta é investigar o que devemos fazer em casos de prioridade em salvar vidas se o bem-estar ao longo do tempo (e não somente no momento presente) for um critério moralmente relevante (como penso que seja).

#122 – A igualdade de bem-estar ao longo do tempo e a prioridade no salvamento de vidas

Como tudo isso se aplica no exemplo da casa em chamas? Da seguinte maneira: teríamos de não apenas fazer considerações sobre quem já viveu maior quantidade de tempo (o que sugeriria à primeira vista que quem viveu mais desfrutou mais), mas como foi a qualidade de vida nesse tempo (o que pode anular ou não a consideração anterior sobre a quantidade do tempo). Quem tivesse desfrutado menos, deveria ter prioridade. Outro critério que poderia entrar na consideração é a possibilidade de desfrute no futuro. Ao que parece, não faz muito sentido dar prioridade a salvar a vida de alguém que já se sabe que vai morrer amanhã, de qualquer forma. Esses critérios me parecem razoáveis, apesar de ter implicações contra-intuitivas para a maioria. Temos de reconhecer que a prioridade entre salvar a vida de uma pessoa que viveu o tempo todo num campo de concentração e a minha ou a sua ou a do Dr. Carlos Nigro, é sempre da pessoa que viveu o tempo todo num campo de concentração (pois essa pessoa desfrutou muito menos). Existe outra implicação, mais contra-intuitiva ainda: se alguém tivesse que escolher entre salvar a sua vida ou a minha ou a do Dr. Carlos Nigro (vidas que possivelmente já tiveram anos de desfrute, e com uma qualidade razoável), e salvar a vida de uma galinha que viveu toda a sua vida numa granja industrial (ou seja, viveu uma vida terrível até agora), a coisa certa a se fazer (independentemente do que eu, você ou qualquer outra pessoa faria), seria salvar a galinha - para proporcionar a distribuição de desfrute de maneira equitativa. É verdade, a maioria das pessoas acharia absurda essa conclusão. Contudo, se não conseguem um bom argumento para explicar o que há de errado com a conclusão, o absurdo é o preconceito dessas pessoas.

#123 - Por que nossas intuições muitas vezes revelam nossos preconceitos e porque a incoerência de alguém não prova que o princípio que propõe está errado

A maioria das pessoas enxergaria essas implicações contra-intuitivas como gerando um ponto de interrogação nos princípios que sugeri. Contudo, penso que isso só revela os preconceitos das pessoas, em não quererem admitir que máximas que acreditaram durante a vida inteira (“humanos valem mais”, “cada um deve dar prioridade a si próprio”, etc.) são puros preconceitos auto-interessados, que carecem de justificativa. Apenas para relembrar: não sei se eu, ou a maioria de nós, teria uma vontade forte para, numa hora extrema dessas, fazer a coisa certa. Contudo, no máximo, isso serviria para me acusar de hipocrisia, ou de vontade fraca (e, não, uma base para responder qual a coisa certa a se fazer). E, não seria nem base para uma acusação de hipocrisia forte, pois, numa situação extrema dessas (filha em risco de vida, risco de inanição, acidentes com avião, etc.) não faz muito sentido exigir o mesmo que se exige quando as pessoas não estão em pânico. Contudo, mesmo que tais acusações fizessem sentido, elas serviriam para analisar apenas a coerência do agente, e nada diriam com relação ao status do princípio proposto. Em outras palavras, o fato de alguém ser incoerente não prova que o princípio que propôs estava errado. Isso teria de ser provado em outras bases. Note que esse não é o tipo de situação (pânico, risco de vida, acidentes, etc.) que se deparam, por exemplo, as pessoas que vão a um supermercado e precisam escolher se consomem produtos veganos ou oriundos da exploração animal. Faz sentido acusar de hipocrisia forte alguém que diz ser contra causar morte e sofrimento por motivos fúteis mas não é a favor de abolir o uso de animais para produção de alimentos, já que podemos viver sem eles, por exemplo. E, o porquê de ser errado explorar os seres sencientes já foi explicado anteriormente com argumentos independentes (#13 até #22).

#124 - Outros critérios relevantes além da eqüidade de distribuição (valor indireto dos bons agentes morais)

O objetivo desse artigo, ao propor o critério da distribuição eqüitativa,  não é esgotar os critérios relevantes dessa questão. Alguém poderia dizer que determinados humanos deveriam receber prioridade por serem bons agentes morais, e que, portanto, perdê-los faria aumentar significativamente o sofrimento dos seres sencientes no mundo. Essa consideração provavelmente faz sentido, mas é importante lembrar que ela é uma consideração indireta (os agentes valem mais pelo bem que podem proporcionar aos outros, e não, valem mais porque são quem são). É de se esperar que bons agentes morais ajudem os outros, e não, que se desdobrem em racionalizações e estratégias de retórica para continuar a justificar desrespeitar seres sencientes (e, geralmente, altamente vulneráveis) para todo e qualquer propósito (incluindo propósitos fúteis como comê-los quando há tanta comida menos danosa disponível).

#125 – Conclusão quanto ao argumento da casa em chamas

Então, contrariamente ao que o Dr. Nigro supõe, o argumento da casa em chamas, se prova alguma coisa, prova que o especismo é tão deplorável quanto o racismo, machismo, nazismo, homofobia, etc.

Notas:


[6] Ver, por exemplo, FRANCIONE, Gary L. Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? Philadelphia: Temple University Press, 2000 e REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. 2nd ed. Los Angeles: University of California Press, 2004

[7] Mais sobre esse ponto e uma refutação ao argumento do grupo em SINGER, Peter - The Significance of Animal Suffering. In: BAIRD, Rober M. & ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. Amherst, NY: Prometheus Books, 1991, pp 57-65.


3 comentários:

  1. Muito boa sua contra-argumentação! Deixa eu propor um argumento, mas que fique claro que "eu não concordo com esses argumentos, sou a favor do Veganismo", é o seguinte: 1)"Se o Jesus é quem disse ser, ele é a máxima autoridade moral e ele deixou bem claro a superioridade da espécie humana, portanto o especismo é justificável (no teísmo cristão). A Bíblia era defendida por Jesus, ela é, portanto, autoridade moral, e lá está bem claro que Deus criou os animais para servir aos humanos. Para refutar o especismo, teria que refutar o cristianismo, nunca vi ninguém refutar, por exemplo, o Cristianismo Puro e Simples (C. S. Lewis)." e outro argumento: 2) "É ético veganos usarem remédios que foram testado em animais?" Felipe Gonçalves

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    1. Olá, Felipe!

      Obrigado pelas questões.

      Com relação ao primeiro argumento, ele nos dá um bom exemplo do porquê devemos rejeitar apelos à autoridade por completo. Temos de perguntar o seguinte: se alguém deve ser visto como autoridade moral, seria por que motivo? Não vejo outro motivo a não ser que essa pessoa sabe realmente muito sobre ética. Se alguém alega que deve ele mesmo ser visto como a máxima autoridade moral, então a razão para isso teria de ser que ela sabe absolutamente tudo o que há para saber sobre ética, e que nunca se engana.

      Supondo que Jesus seja mesmo quem afirmou ser, o argumento que você mencionou enfrenta o mesmo dilema de qualquer apelo à autoridade. Tomemos como exemplo o apelo à autoridade discutido por Platão: "deus (ou qualquer outra autoridade) aprova determinadas coisas por que elas são certas ou elas se tornam certas por que foram aprovadas por deus (ou por qualquer outra autoridade em questão?)". A resposta é que, se esse alguém deve ser visto como autoridade, necessariamente tem que ser o primeiro caso (onde se aprova algo porque se sabe que esse algo está correto, que possui boas razões para ser aprovado). Se fosse o segundo caso (que as coisas se tornam certas porque foram aprovadas aleatoriamente pela autoridade), isso seria tornar a escolha da autoridade totalmente arbitrária, já que, se tudo o que ele aprovar automaticamente se tornar certo (o certo depender de sua vontade), então ele realmente não "sabe" o que é certo, e não haveria nenhuma razão para escolhê-lo como autoridade, em detrimento de qualquer outro indivíduo.

      Então, a única opção para o proponente do argumento é dizer que Jesus sabe de alguma razão, que mais ninguém sabe, que torna o especismo justificável (e não, que é a vontade dele que torna o especismo justificável). Ok, então, onde está essa razão? Que razão é essa? Pelo que conheço, até agora o argumento em questão não apresenta nenhuma que poderia ter sido endereçada por Jesus. Assim que as razões aparecerem, podemos analisá-las e ver se se sustentam. Até que isso aconteça, é mais plausível pensar que esse apelo à autoridade é apenas uma forma de não se ter o trabalho de examinar criticamente suas crenças (é mais fácil ver alguém como autoridade do que investigar se os argumentos dessa pessoa são ou não realmente bons) ou de não se admitir que não há um bom argumento a favor do especismo.



      .

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    2. Quanto ao segundo argumento, temos de ter em mente uma característica importante das razões que podem ser oferecidas contra e a favor à uma prática: se essas razões mostram que há um determinado dever, esse dever vale para todo mundo em condições de cumprir, e não apenas para os que já reconhecem a existência desse dever (já que essas razões dirão respeito à situações, conseqüências, que afetarão outros seres para pior ou melhor, e não, a estados mentais dos agentes). Em outras palavras, se for errado usar remédios testados em animais, então ninguém deve usar, e não apenas os veganos. Um pilar central do raciocínio moral é a imparcialidade, e nenhum argumento começa bem se já é escancaradamente tendencioso. O que dá a entender é que a pessoa em questão quer apenas acusar os veganos de hipocrisia, mas não está interessado em pensar seriamente sobre a moralidade da questão. Ele que fique esperto: se o argumento dele mostrar que os veganos não devem usar remédios, isso mostraria automaticamente que ele próprio também tem esse dever.

      Quanto à questão em si, penso que é importante separar a moralidade de se usar os remédios e a moralidade de se fazer experimentos com os animais. Por argumentos que já apresentei nesse artigo e em outros (e, por isso, não vou repetí-los) penso que não existem razões que possam justificar a experimentação animal. As práticas de desconsideração pelos seres sencientes são injustificáveis e devem ser abolidas. Contudo, isso não significa automaticamente que é sempre errado utilizar benefícios que vieram dessas práticas. Por exemplo, se um remédio já existe, e o seu uso não implicará mais mortes de animais (os remédios são testados em animais apenas na fase de pesquisa, pelo que sei), então não vejo razão para ser errado usar tais remédios. Para fazer um paralelo com a exploração humana, supondo que uma rua tenha sido asfaltada no passado com trabalho escravo. A escravidão é injustificável e tem que acabar. Mas, não vejo problema em andarmos nessa rua. Outro exemplo: supondo que o tratamento de água estivesse sendo feito à base de mão de obra escrava. Não podemos deixar de tomar água. Contudo, isso não mostra que a escravidão é justificada. Ela tem que acabar e todos tem o dever de lutar para que acabe, mesmo que não possamos deixar de participar 100% dela (afinal de contas, quase tudo no nosso mundo é feito a partir da escravidão animal).

      Obrigado pelas questões!

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