quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Parte 9 – Argumentos de ladeira escorregadia


Parte 9 – Argumentos de ladeira escorregadia

#169 – Exemplo de argumento de ladeira escorregadia

O Dr. Carlos Nigro escreve:

“As expressões usadas ‘animais-humanos’ para diferenciar dos ‘animais-suínos’, ‘animais-peixes’, tem a intenção óbvia de deixar todas as espécies do Reino Animal num mesmo bloco indiferenciado. Disso decorre, logicamente, que uma criança vale tanto quanto um bezerro, um porco ou um hamster. Esta manobra para igualar seres-humanos aos animais já foi utilizada com muito sucesso pelos nazistas em relação aos ‘ratos’ judeus, por Stalin (com os ciganos e judeus) e, atualmente, em genocídios africanos. É muito mais fácil matar e domesticar outros seres-humanos se vermos neles simples animais sem autoconsciência do que se concebermos cada pessoa como alguém muito especial e único). Os regimes comunistas investem e encaram os cidadãos desta forma. Os favoráveis ao aborto e ao infanticídio, à pena de morte e à eutanásia também. O Homem animalizado escravizado pela inteligetsia”.

#170 - Argumentos de ladeiras escorregadia não provam que o que está em questão é errado ou ruim (pelo contrário, tem de assumir que não é)

O argumento de Nigro exposto acima é um exemplo do que chamamos de argumento de ladeira escorregadia. Argumentos desse tipo basicamente dizem o seguinte: não se deve dar um primeiro passo em uma coisa que, a princípio, parece ser algo bom, pois pode escorregar para algo terrível e não ter mais volta. Então, a primeira coisa que precisa ficar clara com relação a argumentos de ladeira escorregadia é que eles não oferecem razão alguma para demonstrar que a coisa em questão (no caso, tratar todos os seres sencientes com igual consideração) é algo ruim. Pelo contrário, argumentos apelam para um suposto perigo para se escorregar para uma coisa ruim (o genocídio, por exemplo), justamente porque não conseguiram provar que a coisa em questão (no caso, a igual consideração de todos os seres sencientes) é ruim ou errada. Isso porque, se tivessem conseguido apontar algo de errado com a igual consideração não especista mesma, então não precisariam apelar para o perigo de se escorregar para algo ruim. Assim sendo, os proponentes de argumentos de ladeira escorregadia, se essa é a única objeção que eles têm à prática que estão a discutir, têm de admitir que, então, se ele não é moralmente boa, no mínimo é moralmente neutra (nunca, moralmente ruim).

#171 - A proposta é melhorar as condições dos animais não humanos, e não, piorar as condições dos humanos

O erro principal com o argumento de ladeira escorregadia empregue por Nigro, contudo, é outro. O erro torna a situação até engraçada (para não dizer ridícula), porque ele atribui aos defensores dos animais não humanos uma proposta que é contrária à proposta real. A proposta dos defensores dos animais não humanos, quando defendem que devemos dar igual consideração a todos os seres sencientes, independentemente de espécie, é a de que tratemos os animais não humanos sencientes tão bem quanto um ser humano deveria ser tratado; e não, que se passe a tratar os seres humanos como se trata os animais não humanos hoje (assassinando-os em massa a cada minuto, queimando-lhes vivos, arrancando seus membros, etc.). A situação desse argumento é risível. Não acredito que seja possível (nem que a pessoa tenha muita dificuldade em raciocinar) alguém entender que a proposta dos defensores dos animais seja diminuir a consideração pelos humanos a ponto de tratá-los como são tratados os animais não humanos hoje. Qualquer criança entende que a proposta dos defensores dos animais é melhorar a consideração pelos animais, e não, piorar a consideração pelos humanos.

#172 – Todos igualmente numa situação ruim?

A confusão presente no argumento de Nigro pode ser explicada a partir de diversos motivos. O primeiro motivo é que talvez ele pense que o princípio da igual consideração prescreva apenas igualar os níveis de bem-estar dos indivíduos, não importando em que nível de bem-estar estes, no final das contas, irão se encontrar (assume o princípio igualitarista como sendo a única coisa moralmente relvante). É por esse motivo que não existe nenhum filósofo igualitarista que defenda que o princípio da igual consideração é a única coisa relevante para saber o que deve-se fazer. Qualquer igualitarista costuma combinar o princípio igualitarista ou com o do prioritarismo (a prioridade deve ser melhor a situação de quem está na pior situação), ou com o do utilitarismo (devemos maximizar a quantidade agregada de felicidade), ou com o princípio do suficientialismo (devemos estabelecer uma linha acima da qual pode-se dizer que alguém está bem, e abaixo, que está mal; quanto mais abaixo da linha alguém está, maior deve ser a prioridade em aumentar o bem-estar; quanto mais acima, mais justificável se torna retirar algo desse alguém para melhorar a situação de quem está pior), ou, com todos ou alguns desses princípios em conjunto. Novamente, não acredito que Nigro tenha feito realmente essa confusão. O que dá a entender é que ele quer, como tática de retórica, atribuir aos defensores dos animais uma visão que nenhum de nós defende. Só um muito mal entendedor do princípio da igualdade poderia pensar que os defensores da igualdade querem que todos estejam igualmente na pior situação.

#173 – A igual consideração é o oposto dos preconceitos, pois estes dependem de atribuir valor diferenciado aos indivíduos

Segundo entendo o princípio da igual consideração e a rejeição do especismo, sim, é verdade que daí “decorre, logicamente, que uma criança vale tanto quanto um bezerro, um porco ou um hamster”. Isso é verdade, mas o que Nigro esquece de mencionar é que decorre logicamente da aceitação do princípio da igualdade, juntamente com a aceitação de que a felicidade tem valor intrínseco positivo, que todos esses  merecem ter o máximo de felicidade possível (distribuída de maneira eqüitativa). Então, em nenhum sentido a igualação (em termos de merecer igual consideração) que os defensores dos animais fazem de humanos e não humanos lembra a manobra dos nazistas, de igualar judeus a ratos. Isso porque, diferentemente dos defensores dos animais (e, semelhantemente à visão de Nigro), os nazistas também viam a vida dos animais não humanos como valendo muito pouco. Então, quando os nazistas igualavam judeus a ratos, estavam querendo dizer que ambos os tipos de seres não valiam nada. Quando os defensores dos animais igualam todos os seres sencientes, o que querem dizer é que todos valem “o valor máximo”. Obviamente que Nigro entendeu esse ponto. Propostas morais tão distintas e antagônicas como estas (a defesa de que ninguém vale mais do que ninguém, e a defesa de que judeus e ratos valem bem menos do que os nazistas) não podem escorregar uma para outra. É exatamente por essa diferença fundamental que a igual consideração é exatamente o contrário de visões como o nazismo e o especismo: a igual consideração diz que ninguém vale mais do que ninguém (então, que ninguém tem o direito de escravizar, chacinar, ninguém); já visões como o nazismo e o especismo dependem de haver uma quantificação do valor dos indivíduos, e que uns sejam vistos com um valor tão baixo, comparativamente a outros, que torna justificável utilizá-los como se fossem meros recursos para os que valem mais. É por esse motivo que não faz sentido afirmar que a igual consideração implicaria em que todos valessem muito pouco. Isso porque, como todos valem exatamente em igual medida, não têm sentido quantificar o valor desses indivíduos (não confundir com quantificar a qualidade da vida que vivem, como veremos mais adiante, em #175 até #179). O argumento de Nigro seria como dizer que não devemos dar direitos às mulheres porque isso pode rebaixar o status dos homens; ou de que não deveríamos dar direitos a negros porque isso pode rebaixar o status dos brancos. O que dá a entender é que Nigro se apega tanto ao especismo que pensa que só o fato de se dar direitos aos animais não humanos já é rebaixar o status dele; mesmo que ele não tenha nada a perder com isso (a não ser o tipo de dieta que provavelmente mantém agora).

#174 – Por que a autoconsciência não é moralmente relevante para o erro em assassinar e para a consideração moral

Outro erro presente no argumento de Nigro lembra o erro principal de argumentos anterior do mesmo autor, de pensar que o critério da posse da razão é moralmente relevante para se estabelecer quem merece igual consideração. Como já explicamos detalhadamente antes (#3 até #22), isso é confundir o critério relevante para saber quem deve ser responsabilizado pelo que escolhe (a posse da razão) com o critério relevante para saber quem merece consideração (a capacidade de sofrer e desfrutar). Dessa vez, Nigro parece dar a entender que o critério relevante para saber se alguém merece igual consideração é a capacidade para a autoconsciência. Nigro escreve: “é muito mais fácil matar e domesticar outros seres-humanos se vermos neles simples animais sem autoconsciência do que se concebermos cada pessoa como alguém muito especial e único”. Em primeiro lugar, é preciso clarear o que comumente se entende por autoconsciência. Diz-se que um indivíduo é autoconsciente quando esse indivíduo não apenas têm consciência das coisas, do mundo ao seu redor, mas também consegue entender que ele está no mundo (então, ele tem consciência não apenas de outros seres ou objetos, mas também de si) – em outras palavras, ele percebe que ele também é alguém. Definindo autoconsciência dessa forma, fica claro por que ele não é um critério moralmente relevante para saber quem merece igual consideração: é possível alguém ser prejudicado de muitas maneiras, mesmo que não tenha esse tipo de desenvolvimento mental. O que é relevante moralmente para saber se alguém sofre ou não uma perda ao ser morto não é que o paciente da decisão tenha consciência de si, mas que tenha consciência de algo que dê significado à sua vida (sensações de prazer, por exemplo). O peixe, quando é fisgado e içado, sofre uma dor extrema. Não é preciso ter autoconsciência (veja: não estou a afirmar que o peixe não tem autoconsciência; apenas que se ele tem ou não é moralmente irrelevante). O bebê humano, quando assassinado aos poucos dias de idade, sofre uma perda (a perda do desfrute futuro), e a existência dessa perda não depende da autoconsciência (o mesmo vale para o caso do peixe, por exemplo). Então, está claro que é um critério moralmente irrelevante. E, outro detalhe: mesmo se esse critério fosse relevante, não serviria para defender que todos os humanos possuem status moral superior ao dos animais não humanos. Isso porque muitos humanos (os portadores de determinadas doenças mentais) não possuem autoconsciência. Então, são pessoas como Nigro (e também os nazistas a quem Nigro se refere) que vêem os animais não humanos como “simples animais sem autoconsciência”. Anti-especistas, diferentemente de Nigro, vêem cada indivíduo senciente (independentemente de espécie, raça, gênero, posse ou não da razão ou da autoconsciência ou outras considerações moralmente irelevantes) como “alguém muito especial e único”. Então, é absurdo como é que alguém poderia pensar que enxergar as coisas dessa maneira poderia descambar para o nazismo.

#175 – A analogia do nazismo com eutanásia, aborto, infanticídio e pena de morte também é falsa

Nigro também constrói outras falsas analogias. Ele mantém que a motivação dos nazistas (igualar judeus a ratos, no sentido de alegar que ambos valem quase nada) é a mesma não apenas dos defensores dos animais não humanos, mas também dos “favoráveis ao aborto e ao infanticídio, à pena de morte e à eutanásia também”. Como já vimos anteriormente, essa analogia com relação aos defensores dos animais é certamente falsa. A proposta dos defensores dos animais é igualar, em termos de status moral, todos os seres sencientes, independentemente de espécie, mas no sentido de que o bem de cada um deve ser maximizado (e não, minimizado) de maneira imparcial. Como vimos anteriormente (#172, #173) atribuir valor igual a todos nunca poderia justificar práticas como o nazismo, racismo e especismo, pois são práticas que dependem essencialmente da crença de que uns possuem valor maior (e, muito maior, a ponto das vítimas serem vistas como meros recursos) do que outros. Também é falsa a analogia que Nigro monta, do nazismo com as várias outras várias questões morais que menciona. Para se reconhecer que a analogia é falsa, não se precisa concordar com o ponto de vista de que eutanásia, aborto, infanticídio e pena de morte às vezes se justificam. Então, deixemos de lado, por um breve momento, a discussão sobre a moralidade dessas questões (cada questão dessa precisa ser discutida a parte uma das outras) e entendamos por que a analogia com o nazismo é falsa. A diferença crucial entre o nazismo e a defesa dessas posições morais é que os nazistas se baseavam num critério que não cumpria a exigência de imparcialidade. Os nazistas traçavam uma linha onde os que estavam acima dela (os arianos) jamais poderiam estar embaixo; e os que estavam embaixo, jamais poderiam estar em cima (os membros de outras raças). Os nazistas não aprovariam o modo como tratavam os judeus, se tal modo de tratamento fosse direcionado a eles. E, como vimos, a característica eleita pelos nazistas para explicar o que diferenciava o caso deles e dos judeus (a raça) é moralmente irrelevante, pelos motivos que já detalhamos antes (#158 até #168).

#176 – Por que a analogia entre nazismo e eutanásia é falsa

Vejamos a analogia com cada questão moral separadamente. Comecemos pela eutanásia. Considere esse  caso: alguém não têm mais chances alguma de recuperação de uma doença terminal e está sofrendo de maneira extrema, sem mais nenhum momento de prazer, e de qualquer maneira morrerá logo. Se alguém defende, por exemplo, que a melhor maneira de demonstrar respeito pelas preferências de tal pessoa (a menos que ela expresse que quer continuar viva, o que é raríssimo nesse tipo de situação) é abreviar o seu sofrimento (ou seja, eutanasiá-lo) não defende isso porque considera aquela pessoa inferior e que o seu bem não vale nada. Pelo contrário, defende isso porque realmente se importa com o sofrimento que passa aquela pessoa. E, se o sofrimento de alguém é visto como importante, é por que se considera o valor desse indivíduo. E mais: tal critério cumpre o requisito de imparcialidade. Alguém pode sinceramente afirmar: “esse é o modo correto de respeitar os interesses de alguém, e eu aprovo e exijo tal modo de tratamento, inclusive se acontecer de eu ficar nesse tipo de situação”. É importante não se esquecer desse ponto principal: os casos onde a eutanásia se justifica moralmente extraem sua justificativa moral das considerações pelos interesses do paciente, não do agente. É devido à preocupação e respeito pelo bem-estar e preferências do paciente que se defende que, em determinadas situações, a eutanásia se justifica. Não é objetivo do presente artigo estabelecer em que condições se fazem presentes essas justificações. Para os interessados, uma análise mais minuciosa pode ser encontrada em outros autores [10] . Contudo, alguns pontos relevantes básicos são esses: (1) Não há chance de recuperação; (2) O paciente morrerá logo; (3) O sofrimento é extremo e não há como aliviá-lo; (4) Tudo o que havia de disponível para curar o paciente já foi tentado e se mostrou ineficaz. Fora esses pontos relevantes, é preciso distinguir: (1) os casos onde o paciente possui condições de expressar sua preferência (caso em que essa deve ser respeitada); (2) os casos onde o paciente não possui mais preferências por estar inconsciente e não tê-las deixadas expressas, e ; (3) os casos onde o paciente não possui entendimento da sua situação (bebês, por exemplo). Uma das coisas que dificulta a análise moral séria dessa questão é que as pessoas tendem a chamar de eutanásia algo totalmente distinto do significado original (significado este que permeia todo o debate filosófico sobre esse tema). Eutanásia quer dizer “morte boa”, ou seja, aquela condição onde, comparada com a vida que está por vir e da qual não se pode escapar a não ser morrendo, a morte é um bem (pois a vida que está por vir é muito pior do que a morte, e não representa mais um bem, e sim, um grande mal). Isso é muito diferente de matar alguém que possui interesse em viver e que sua vida é algo de bom. Matar alguém que deseja continuar vivendo é assassinato, não eutanásia. A analogia da eutanásia com o nazismo é antiga, mas só existe devido a essa confusão básica. Para que a confusão não se repita: o assassinato visa favorecer os interesses do agente; a eutanásia visa favorecer os interesses do paciente. Os nazistas podem ter utilizado o nome eutanásia para se referir às suas políticas de assassinato, com o objetivo de manipular seus interlocutores. Cair nessa manipulação, como fez Nigro, impede alguém de pensar de maneira séria na questão ética da eutanásia.  Nos casos onde a eutanásia se justifica, é o ponto de vista contrário a eutanasiar que pode ser legitimamente acusado de favorecer os interesses do agente, e desconsiderar totalmente os interesses do paciente. Pelo menos quanto a esse ponto, os que são contrários à eutanasiar nos tipos de caso que listei têm algo em comum com a motivação nazista: a meta é favorecer os interesses do agente (em não ter que matar um parente), ou o respeito por algum ideal abstrato (“a vida humana é sagrada” por exemplo), mas nunca favorecer os interesses e mostrar respeito pelo paciente, que deseja morrer e a vida já não lhe representa mais nada de bom. Assim, os contrários à eutanásia nos casos onde ela se justifica estão sendo sinceros (mas, nem por isso, moralmente corretos) se alegarem que estão preocupados com algum ideal abstrato que nada tem a ver com o bem dos outros, ou que estão preocupados consigo próprios apenas; mas, não estão sendo sinceros se alegam que estão a respeitar o paciente. Para quem ainda não se deu conta da realidade, são as pessoas contrárias à eutanásia que obrigam os portadores de determinadas doenças a viverem vários meses não tendo outra coisa senão sofrimento extremo e tendo que passar por inúmeras cirurgias das quais já se sabe que não adiantarão de nada. São os contrários à eutanásia que obrigam, por exemplo, alguém a continuar vivo, mesmo que esteja com o corpo todo aberto, sem os membros e não tendo outra sensação a não ser dores horríveis, mesmo sabendo que morrerá logo de qualquer forma. Tanto sofrimento inútil, que poderia ser facilmente evitado. Aquelas pessoas que são contrárias a tirar uma vida, seja lá em que condições se encontre essa vida, e sejam lá quais forem as preferências por morrer ou continuar vivo do indivíduo que vive tal vida, não defendem o direito à vida. Ao invés, defendem um dever de viver em condições onde a vida não representa mais nada de bom, mas sim, um verdadeiro inferno.

#177 – O erro com regras absolutas sobre determinados tipos de atos: a razão que torna moralmente errado o ato em um caso pode não estar presente em outro caso cuja decisão moralmente correta pode requerer exatamente o mesmo ato – e vice-versa.

Para facilitar a análise da analogia com o infanticídio, aborto e pena de morte, temos de olhar para outra confusão, que é a raiz do pensamento de Nigro: provavelmente, ele acredita que, se uma decisão é errada em algumas situações, então que é sempre errada, em qualquer outra situação (mesmo em situações que não mantenham as mesmas propriedades moralmente relevantes entre si). Por exemplo, provavelmente ele pensa que, já que geralmente é errado matar seres humanos, então que é errado sempre – que não existem exceções a essa regra. Talvez seja isso que o conduza a se opor sempre à eutanásia, seja lá a situação que se encontre o paciente, por exemplo. Talvez ele pense que, caso se justifique matar um ser humano em um caso, então que é sempre correto matar seres humanos, seja lá em quais casos forem.

#178 – Primeiro erro: as razões que justificam um ato em um caso podem não estar presentes em outras (onde o mesmo ato pode ser injustificável ou moralmente opcional) – e vice-versa, para todas essas três categorias (moralmente obrigatório fazer, moralmente obrigatório não fazer, moralmente opcional).

Existem dois erros básicos com relação a esse tipo de visão. O primeiro é não perceber que as condições que tornam justificável matar em um caso (o fato de não haver possibilidade de recuperação, o paciente estar em condições de sofrimento extremas, o sofrimento não ter como ser aliviado, o paciente expressar uma preferência por morrer, etc.) não se fazem presente em outros. Normalmente, as pessoas vivem vidas que, se já não contém satisfação, é possível conter; geralmente elas preferem continuar vivas, e assim por diante. Em casos assim, matar não se justifica.

#179 – O que torna errado matar e o que não torna/ explicação do que é um dano por privação)/o que torna certo ou um dever matar, e o que não torna

O segundo erro surge devido a Nigro não entender quais são as características relevantes para explicar o erro em matar. E isso vêm do seu especismo. Nigro pensa que o que torna errado matar seres humanos é o fato deles serem humanos (o que é um argumento circular, como já vimos, em #23 até #28) ou o fato deles serem racionais (o que é confundir o critério relevante para ser responsabilizado com o critério relevante para ser considerado, como também já vimos em #3 até #28). Nenhuma dessas coisas explica o erro em matar. O erro básico em matar está que a vítima sofre uma perda. A perda de que falo é a perda do desfrute, da satisfação, ou seja, das coisas que fazem sua vida valer a pena. É claro, se a vítima for morta, não sentirá falta dessas coisas. Mas, essas coisas são um dano por privação, não por inflição. A vítima sofrerá uma perda, mesmo que não tenha consciência da perda que sofreu. Isso porque o desfrute é algo bom, e é ele que torna uma vida um bem. Para entender melhor esse ponto, temos de nos imaginar olhando para os resultados finais, de um ponto de vista “de fora”. Se o indivíduo A morrer agora terá desfrutado, ao longo de sua vida, por exemplo, +78 de felicidade. Se morrer daqui a 30 anos, terá desfrutado, ao invés, +149 de felicidade. Tendo em vista essas duas opções, podemos concluir que a segunda é melhor, e que A  perdeu algo valioso por não estar na segunda situação, mesmo que não saiba disso (por estar morto). Defendi que a perda do desfrute é uma condição suficiente para haver erro em matar, mas não necessária. Outra condição suficiente, mas também não necessária, segundo entendo, é a preferência por continuar vivo. Mesmo em casos onde o desfrute no futuro é inexistente ou mínimo, e a pessoa em questão deseja continuar a viver, deve-se respeitar sua preferência por continuar vivo. Isso porque, não respeitar preferências é outra forma de prejudicar alguém. Nessas duas formas (perda do desfrute e violação das preferências) temos um indivíduo identificável de quem se pode dizer que foi prejudicado. Então, é isso que torna matar errado. Reconhecendo esse ponto, temos de reconhecer também que existem, então, casos onde não é errado matar (onde matar talvez seja até mesmo um dever). Uma condição que precisa estar presente é essa: não há possibilidade alguma de desfrute no futuro (ou ,que o desfrute é tão insignificante, comparado aos sofrimentos extremos, que não vale a pena tentá-lo). Nesses casos, a vida deixa de ser um bem, então, não faz mais sentido afirmar que alguém é danado pela perda dela (aliás, por ela se tornar um mal, o indivíduo é danado pela presença dela). Essa condição precisa ser pesada em relação ao respeito pelas preferências: é possível que a pessoa em questão também possua uma preferência por morrer (nesse caso, respeitar suas preferências é matá-la); ou é possível que, apesar de tudo, prefira continuar viva (nesse caso, respeitar suas preferências é mantê-la viva). Note que o critério das preferências não determina, nunca, isoladamente, o erro em matar. Ele sempre precisa ser pesado à luz do critério da qualidade de vida (a relação entre a quantidade de desfrute e a quantidade de sofrimento). Isso porque, é possível que alguém tenha uma preferência irracional por morrer. Por exemplo, alguém pode ter todas as chances de desfrute no futuro, não estar doente, e, por estar abalado com algum acontecimento, preferir morrer. Nesse caso, a preferência por morrer é irracional e continua sendo errado satisfazer essa preferência (ou seja, num caso assim, continua sendo errado matar). Tendo essas considerações em vista, podemos perceber que a idéia de que é sempre errado matar seres humanos só pode vir de uma confusão no que diz respeito ao que torna errado matar. Como vimos, as duas considerações básicas dizem respeito à qualidade de vida e às preferências. É isso que torna errado (nos casos em que é errado) matar seres humanos (e outros seres sencientes também, já que são capazes de desfrute e de preferências). Não é o fato de serem humanos.

#180 – Que situações tornam o infanticídio justificável e que situações tornam injustificável

Tendo entendido esse ponto, podemos agora entender por que é que alguns casos de aborto e infanticídio se justificam. Comecemos pelo infanticídio. Considere esse exemplo (que, infelizmente, não é muito diferente de inúmeros casos reais): uma criança nasce sem estômago, sem rosto e com a espinha para fora do corpo. Sabe-se que ela viverá, no máximo, alguns dias, e não sentirá outra coisa senão um sofrimento extremo. Ser contrário ao infanticídio, num caso assim, é ser egoísta ao extremo. É demonstrar uma total desconsideração pela criança e seus interesses (é pensar que a criança não vale nada). Como foi mencionado no parágrafo acima, talvez Nigro seja contrário a qualquer caso de infanticídio por pensar que, se justificado o infanticídio num tipo de situação, se justificará toda vez que alguém desejar matar crianças. Isso é absurdo. Como vimos, as condições que justificam o infanticídio no tipo de situação que mencionei não estão presentes em outros tipos de casos. Um detalhe importante, que não pode ser perdido de vista, é que a eutanásia e o infanticídio se justificam com relação a considerações de respeito por quem será morto, e não por quem está matando. Levando em conta essa consideração importante, podemos ver que alguns tipos de infanticídio normalmente praticados carecem de justificativa e, portanto, são formas de assassinato. Por exemplo, existem algumas tribos indígenas que, quando acontece o nascimento de gêmeos, adotam a prática de enterrar os dois gêmeos vivos [11]. O motivo é a crença de que, quando nascem gêmeos, um deles é mal e o outro é bom, e não é possível saber qual é qual. Então é praticado o infanticídio (as crianças são enterradas vivas, sufocadas com folhas, envenenadas ou abandonadas para morrer na floresta). Esse é exatamente o tipo de caso onde o infanticídio não se justifica. Para começar, se carece de qualquer justificativa empírica para se afirmar de que esse será realmente o caso (que um deles se tornará mal). Em segundo lugar, somente o raciocínio indutivo na sua forma mais errada possível pode ver alguma relação entre o fato de nascer gêmeos e o caráter dos nascidos. Em terceiro lugar, mesmo que fosse provado empiricamente que, no futuro, algum dos dois será alguém mau, isso não prova a conclusão moral de que, então é certo matar esse alguém, antes que ele tenha feito algo de mal. Se isso fosse feito em nossa sociedade, qualquer um reconheceria a falta de justificativas. A crença relativista muito difundida no meio das ciências sociais, de que a justificação para o certo e errado dependem da cultura (que envolve uma visão extremamente distorcida sobre justificação em ética, como já discuti em outros artigos [12] ) talvez impeça algumas pessoas de perceber o quão irracional e estúpida é esse tipo de justificativa para o infanticídio. Esse é o tipo de caso onde Nigro teria toda razão em dizer que o infanticídio é totalmente errado, pois, para começar é feito com base em considerações (e, baseadas em considerações irracionais) sobre o interesse de quem mata, não de quem morre. Contudo, mais uma vez, é por Nigro não perceber o que torna errado matar (a perda do desfrute e a violação de preferências) que tende a enquadrar, todos sob uma mesma categoria, casos injustificáveis e justificáveis de infanticídio e eutanásia.

#181 – Crítica a regras morais sobre tipos de atos sem exceção e especulação sobre os motivos que levam alguém a adotar tais regras

Devido à falta de prática com o raciocínio ético (que envolve, na maioria das vezes, descobrir o que torna certas ou erradas determinadas decisões) é que as pessoas tendam a ser dicotômicas e econômicas com relação às suas decisões morais: “ou casos desse tipo são sempre errados, ou são sempre certos”. O erro com esse tipo de visão é que o que torna justificáveis ou injustificáveis as decisões não são o tipo de ato que elas são (se é aborto, se é infanticídio, se é matar, se é deixar morrer, etc.), mas algumas propriedades moralmente relevantes que compõem as situações (notadamente, mas não só isso, o impacto que tal decisão terá na satisfação/sofrimento dos atingidos). E, mesmo que os tipos de atos devessem contar como estando entre essas propriedades relevantes, não fará sentido pensá-los como as únicas propriedades relevantes, já que, se um ato é certo ou errado, é por alguma outra razão (e essa razão precisa remeter à outra coisa moralmente relevante, que não o ato mesmo). As pessoas têm, então, necessidade (devido à falta de prática com o raciocínio ético) de pensar que, por exemplo, ou o aborto é sempre errado, ou é sempre certo. Isso é uma falsa dicotomia. A menos que eles tenham um bom argumento para dizer que é sempre um caso ou sempre outro, temos boas razões para analisar, à luz das considerações moralmente relevantes, cada caso separadamente.

#182 – Condições moralmente relevantes para a análise da moralidade do aborto caso-a-caso

O caso do aborto é ligeiramente diferente dos casos de eutanásia e infanticídio, pois envolvem geralmente os interesses de dois indivíduos diretamente atingidos: a mãe e o feto. Para uma discussão séria da moralidade do aborto é preciso também distinguir casos onde o feto é senciente e quando ainda não é. Por exemplo, em estágio embrionário, não há ali nenhum indivíduo, apenas um aglomerado de células; já na última semana da gravidez o feto está tão pronto (capaz de sensações) quanto é quando nasce. Além dessa consideração importante, temos de lembrar que existem casos onde será possível para o feto ter uma vida saudável caso nasça, mas existem casos onde, se o feto chegar a nascer, será uma daquelas condições onde se justifica o infanticídio, de tanto sofrimento extremo não aliviável que ele passará. Temos de levar em conta também as situações onde a mãe corre risco de vida ou outro risco grave. E temos de levar em conta também casos onde não é possível salvar os dois, e casos onde a única opção é salvar a mãe, e a única maneira de fazer isso é matar o feto. Todas essas considerações tornam a questão da justificativa ou não do aborto muito mais dependente de uma análise caso-a-caso, pois cada caso poderá envolver uma característica moralmente relevante que não estará presente em outro. Mais uma vez: veja que nenhuma dessas considerações tem algo que se assemelhe, nem de longe, com a idéia nazista de que alguns indivíduos são inferiores. Uma justificativa ética precisa considerar os interesses de todos os atingidos de maneira imparcial.

#183 – A questão da pena de morte

O último caso, da pena de morte, é totalmente diferente de todos os outros. Isso porque o que está em jogo, na discussão sobre a moralidade desses casos, é a questão da justiça retributiva e do merecimento. Está em jogo, por exemplo, saber se a questão do merecimento chega a tal ponto, em termos de relevância moral, onde se pode dizer que, devido a um ato passado, alguém não merece mais viver. Está em jogo discutir também se, caso existirem situações onde se justifica moralmente matar alguém por motivos de merecimento, então se isso automaticamente justificaria legalizar uma prática desse tipo (poderiam haver outros motivos que tornassem injustificável a prática da pena de morte – por exemplo, o risco de se condenar inocentes – mesmo se houver justificativa para matar alguém centrada no merecimento. Note que não estou dizendo que existem essas justificativas, nem que não existem. Eu, sinceramente, não tenho uma posição definida com relação a esse assunto, justamente por me faltarem leituras de obras importantes sobre o mesmo. Contudo, já que o objetivo aqui é responder a crítica de Nigro, e não, discutir a moralidade da pena de morte, vou me limitar a apontar que a analogia também nesse caso é falsa. Isso porque, diferentemente das políticas de assassinato nazistas, alguém que defende a pena de morte se baseia numa característica que é geral (ou seja, não está em um indivíduo específico). Segundo o defensor da pena de morte, alguém merece morrer devido a algo que fez, e não devido a pertencer a uma determinada raça. A diferença toda reside no fato de que judeus não podem deixar de ser judeus, e não colocam a vida dos outros em risco por serem judeus; alguém que fez um crime poderia tê-lo deixado de fazer, e acabou com as vidas de outros devido a isso. Um defensor da pena de morte poderia estar errado moralmente ao defender tal prática, mas não poderia ser acusado, como poderia ser acusado um nazista. de favorecer tendenciosamente alguns indivíduos em detrimento de outros. Ele poderia dizer, por exemplo: “qualquer um (inclusive eu) que fizer isso, deveria ser morto”. Se o que alguém fez no passado é relevante para saber como devemos tratá-lo no futuro, a reivindicação do defensor da pena de morte tem alguma plausibilidade (ainda que, no final, se revele moralmente errada, devido a outras razões). Isso é diferente da reivindicação nazista de que a raça é um critério moralmente relevante, que é implausível moralmente desde o início, pelos motivos que já vimos anteriormente (#3 até #28 e #158 até #168).

#184 – Conclusão sobre os argumentos de ladeira escorregadia endereçados por Nigro

Devido ao fato de todas as analogias entre o nazismo e as questões morais listadas por Nigro serem falsas é que temos, então, boas razões para pensar que o temor da ladeira escorregadia possui bases muito fracas. Uma coisa, muito raramente (se é que alguma vez) escorregaria para outra.

Notas:


[10] Ver, por exemplo, RACHELS, James. The End of Life: Euthanasia and Morality. Oxford University Press, 1987; RACHELS, J., Can Ethics Provide Answers? And Other Essays in Moral Philosophy, Boston: Rowan & Littlefield, 1997; BEAUCHAMP, T.L. e CHILDRESS, J.F., Princípios de Ética Biomédica, 4 ed, São Paulo: Edições Loyola, 2002; SINGER, Peter. Ética Prática. 3 ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo. Martins Fontes, 2002.


[11] Sobre isso, ver o Relatório do Centro de Investigação da UNICEF, em Florença, Madrid, fevereiro de 2004, disponível em http://www.hakani.org/pt/oque_e_infanticidio.asp e também a reportagem disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u389427.shtml

[12] Ver, por exemplo,  CUNHA, Luciano C. Sobre a Importância da Razão na Ética. Disponível em http://www.olharanimal.net/luciano-cunha/1420-sobre-a-importancia-da-razao-na-etica



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