terça-feira, 15 de janeiro de 2013

IGUALDADE SENCIENTE - parte 1

VERDADE, RAZÃO, JUSTIFICATIVA EM ÉTICA E OS SERES SENCIENTES

Luciano Carlos Cunha [1]

PARTE 1: Algumas distinções importantes para uma raciocínio fazer sentido em qualquer área do pensamento


Um dos maiores impedimentos ao bom raciocínio é a ambigüidade com o uso dos termos. É comum a utilização de uma mesma palavra para se referir a duas ou mais idéias diferentes sem perceber, ou seja, acreditando-se estar a falar da mesma idéia. O contrário também é freqüente: por se utilizar duas palavras diferentes, não se percebe que, muitas vezes, está a se falar da mesma idéia. É possível que essas duas confusões apareçam em conjunto também. 

Muito se fala que “a verdade é uma mera construção social” e que, “em ética, é tudo muito relativo”. Na base dessas alegações muitas vezes (ainda que nem sempre) se encontra algum problema de ambigüidade. O que dá a aparência de plausibilidade nessas teses, muitas vezes, é a ambigüidade com o que se quer dizer com os termos “verdade” e “ética”. Eliminadas as ambigüidades, essas teses se revelam muito mais implausíveis do que inicialmente pareciam. Para evitarmos o problema de ambigüidade, e para entendermos a ambigüidade muitas vezes presente nessas alegações, começarei definindo o que quero dizer com os termos “verdade”, “crença”, “conhecimento”, “justificação” e “razão”. Somente na segunda metade do artigo é que trataremos da ética, mais especificamente.

Uma das características principais da verdade é que ela não é estatística nem consensual. Suponha, por exemplo, que houve um assassinato, e o indivíduo A matou o indivíduo B. Existem dois suspeitos: A e C. Quando se pergunta “qual é a verdade sobre quem matou B?”, a verdade é que foi A e não C. A verdade sobre esse acontecimento não mudaria nem mesmo se a maioria das pessoas pensasse que foi C, e nem mesmo se todo mundo pensasse que foi C. Se a maioria (ou mesmo, todos) pensasse que foi C, poderia até parecer verdade que foi C quem matou B, mas a verdade, é que foi A. É só devido a verdade não ser estatística nem consensual que é possível da maioria (ou, inclusive, todos nós) estarmos enganados a respeito de determinada coisa. E, muito importante: a verdade é independente de qualquer crença (ou seja, é independente daquilo que acreditamos ser verdadeiro). Certamente há uma verdade sobre que planeta surgiu primeiro, e haveria tal verdade mesmo que não existissem crenças com relação à resposta verdadeira para essa pergunta (ou seja, mesmo que ninguém nunca tivesse feito essa pergunta, e mesmo que nunca tivessem existido seres capazes de ter crenças).

Como espero ter ficado claro do que expus acima, estou a utilizar a palavra “crença” num sentido geral, para se referir a qualquer coisa que pensamos ser verdadeira, sobre qualquer assunto, quer tenhamos justificativa para acreditar assim ou não (não estou a me referir somente a crenças no sentido religioso da palavra). Muito do que se faz quando se diz “essa é a sua verdade”, “cada pessoa tem uma verdade”, é confundir a idéia de verdade com a idéia de crença. O que se quer dizer com essas afirmações, na verdade, é: “essa é a sua crença” (ou seja, é isso que você acredita que seja verdadeiro) e “cada pessoa tem uma crença diferente” (no sentido de dizer que as pessoas tem crenças divergentes sobre qual a verdade em determinado assunto). O problema é que geralmente essas afirmações são feitas como pretendendo montar um argumento com o objetivo de dizer que a posição do interlocutor não é tão plausível. E é exatamente isso que esse argumento não consegue fazer: constatar que existem crenças divergentes sobre um determinado assunto não mostra que todas essas crenças são igualmente verdadeiras (aliás, se elas discordam entre si, é impossível que sejam todas verdadeiras). Usar as palavras “verdade” e “crença” como se fossem sinônimos tem o efeito nefasto de tornar confuso qualquer raciocínio. Uma crença é aquilo que alguém acredita ser verdadeiro.

Crença não é a mesma coisa que verdade. Uma crença ou é verdadeira ou é falsa. Por exemplo, com relação ao exemplo anterior, se eu dissesse “foi A quem matou B”, isso é uma crença (uma crença verdadeira, visto que, no exemplo, foi mesmo A quem matou B). Se, por outro lado, eu dissesse “foi C quem matou B”, isso também é uma crença (mas, uma crença falsa). Daí podemos tirar uma conclusão importante: o fato de existir uma crença não indica que seja verdadeira (ou falsa). Daí a inutilidade para um debate alguém afirmar “essa é a sua verdade” (no sentido de “essa é sua crença”) ou “cada pessoa tem uma verdade” (no sentido de “cada pessoa tem uma crença diferente”). Geralmente, quando se faz essas afirmações em um debate, o que se quer é dizer que a posição do interlocutor não é plausível (ou, que todas as posições são igualmente plausíveis; o que é impossível se elas forem posições contrárias). Só que, como vimos, se o fato de existir uma crença não indica que ela seja verdadeira, tampouco indica que seja falsa. Indicar que algo é uma crença não contribui em nada para o debate. A resposta para se saber se é uma crença verdadeira ou falsa precisa ser procurada em outro lugar. É só quando entendemos a distinção entre verdade e crença que é possível perceber que somos falíveis (isto é, é possível de estarmos enganados em ter as crenças que temos). Se verdade e crença fossem a mesma coisa, ou se uma dependesse da outra, ninguém se enganaria nunca.




Tendo distinguido verdade e crença, é necessário distinguir esses dois conceitos do conceito de conhecimento. Para existir conhecimento, não é suficiente que uma crença seja verdadeira. Para entender por que, considere esse exemplo: eu gostaria de saber se 3+21 é 24 ou 23. Supondo que alguém responda: “24” (que é a resposta correta, ou seja, é a verdade sobre essa pergunta). Não podemos deduzir, do fato da crença da pessoa estar correta, que ela tem conhecimento sobre a resposta correta. Isso porque ela pode ter simplesmente “chutado” a resposta, e, portanto, não saber o que torna essa crença verdadeira (e, nem saber se a crença é verdadeira ou não). Assim, na idéia de conhecimento está envolvida a idéia de justificação. Justificação remete a explicar por que uma crença é verdadeira  (é a busca por algo que permita testar se a crença é verdadeira ou não).


Existem duas maneiras básicas de se cometer um erro de justificação. A primeira é escolher um método ruim de justificação. No exemplo anterior, vimos que chutar a resposta é, obviamente, um método ruim (é um método que não tem poder nenhum de explicar o que faz com que uma resposta seja correta). Outros métodos igualmente ruins seriam: “3+21 é 24 porque meu irmão me disse”; “porque a maioria acha que é”; “porque joguei os dados (ou, os búzios, ou as cartas) e deu 24”; “porque todos os especialistas no assunto concordam que é 24”. Os métodos do apelo à autoridade do irmão ou da maioria são ruins porque é possível que o seu irmão esteja enganado, bem como a maioria esteja. O método dos dados, búzios ou cartas é igual ao do “chute”: se acertar, é por pura sorte; não têm o poder de explicar nada. E, nem mesmo é um bom método o apelo ao fato das autoridades no assunto não discordarem da resposta porque, além de também ser possível das autoridades se enganarem, se elas acreditam em alguma coisa, é devido a alguma razão (e não, o inverso, que o fato delas acreditarem em algo transforma isso numa razão). Tais pessoas são vistas como autoridades no assunto porque sabem muito do método adequado para justificar crenças no assunto em questão. É uma demonstração a partir desse método que alguém quer, quando pede para uma justificativa em determinado assunto.

A segunda maneira básica de cometer um erro de justificação é adotar o método adequado de justificação, mas cometer um erro em algum dos passos do processo de justificação. No nosso exemplo anterior, a única resposta plausível, em termos de justificação, tem de vir do próprio raciocínio matemático (alguém fazer o cálculo, passo a passo, por exemplo). Nenhum outro método (histórico, biológico, político, psicológico, ético, físico, etc.) tem o poder de mostrar que uma crença matemática é justificada ou injustificada (em outra parte do artigo farei uma afirmação similar com relação à justificação em ética ter de vir do próprio raciocínio ético). Por exemplo, alguém poderia oferecer uma explicação sobre os motivos psicológicos que levam alguém a acreditar que 21+3 é 24, apontando que tal pessoa têm uma admiração muito grande pelo seu irmão, e que acredita em tudo o que ele diz. Mesmo que essas explicações sejam verdadeiras em termos de explicar como alguém sustenta as crenças que sustenta, não têm o poder de mostrar que a crença “21+3=24” é verdadeira ou que é falsa. Tal resposta só pode vir do próprio raciocínio matemático. Mas, mesmo quando adotamos o método correto de justificação, ainda assim nosso raciocínio não está seguramente isento de erros. Podemos, por distração ou outro motivo qualquer, cometer um erro no processo de justificação, e, devido à isso, chegar à conclusão errada. Note que o perigo aqui é exatamente o inverso de escolher um método ruim de justificação: escolhendo um método ruim, alguém pode chegar por sorte numa conclusão correta (a conclusão é sustentada pelos motivos errados); escolhendo o método adequado, se cometermos algum deslize no processo desse método, corremos o risco de partir das razões corretas e chegarmos na conclusão errada. Contudo, mesmo assim, é preferível a escolha pelo método adequado: a probabilidade de chegarmos na conclusão correta é infinitamente maior do que se contarmos com a sorte, além de se ter a vantagem de se conseguir explicar o que torna aquela crença verdadeira. Outro fator importante mostra a inutilidade de se escolher o método inadequado de justificação, mesmo que a resposta esteja, por sorte, correta: alguém que escolhe um método assim não tem como saber se a resposta está correta. Saber que a resposta obtida pelo método ruim, por sorte, estava correta, só pode ser constatado a partir do método adequado. É por esse motivo que um método ruim de justificação, mesmo que, por sorte chegue na resposta correta algumas vezes, nunca possibilita conhecimento. A escolha do método adequado de justificação tem ainda outra vantagem: permite que outras pessoas investiguem o passo-a-passo do nosso raciocínio, e encontre o ponto em que erramos, permitindo, assim, a correção do raciocínio.

Do que foi exposto acima, podemos concluir que um bom método de justificação precisa conter nele a possibilidade de que qualquer um que o compreenda possa verificar o processo de justificação e conferir se ele está correto. Assim, um bom método de justificação precisa apelar a padrões comuns para qualquer um que consiga compreender as noções em questão. É nesse ponto que chegamos à idéia de razão. A principal característica da razão é a generalidade. Por “generalidade”, o que se quer dizer é que, se algo provê uma razão para acreditar que uma conclusão é verdadeira, essas razões não podem ter como objetivo servir de justificativa apenas para mim ou para minha comunidade, por exemplo[2]. Quando se oferece uma razão para acreditar em algo, o objetivo é que tal argumento sirva como justificativa para qualquer um que faça os passos do processo de justificação no meu lugar. Nesse ponto, é muito importante fazermos uma distinção, para que não aconteça uma confusão comum: entre demonstrar e convencer. O que se quer dizer com “sirva como justificativa para qualquer um” não é que todo mundo aceitaria a conclusão, mas que todo mundo deveria aceitar (mesmo os que não a aceitassem não conseguiriam explicar o que há de errado com ela). A diferença toda reside em apontar o que há de errado com o raciocínio ou não. Se alguém, por exemplo, afirma “esse argumento não me convenceu” não refuta o argumento, a menos que ofereça razões explicando o que há de errado com o argumento. Essas razões, por sua vez, precisam também ser gerais: elas precisam ser inteligíveis para qualquer um (e não apenas para ele ou para a comunidade dele). Se elas, por sua vez, parecem não funcionar para explicar o erro com o raciocínio que não convenceu, também quem pensa que elas não funcionam precisa explicar o que há de errado com elas, e assim por diante. Novamente, essa explicação precisa ser geral. Assim, nem o fato de a maioria (ou até mesmo todo mundo) ter se convencido por um argumento mostra que ele é bom (porque essas pessoas podem não ter percebido os erros no argumento), e nem o fato de ninguém ter se convencido por um argumento mostra que ele é ruim (porque as pessoas em questão podem não estar querendo dar ouvidos à razão). Convencer ou não convencer não diz nada sobre se um raciocínio é sólido ou não. A resposta para isso só pode vir dos próprios métodos de justificativa racionais. É claro, esperamos que um bom raciocínio também convença as pessoas de algo, mas ele deve convencer porque é bom, e não, que se torna bom porque convence.

O que foi mencionado no parágrafo anterior pode parecer circular para algumas pessoas. “O próprio processo de raciocínio justifica a  crença de que a razão conduz à verdade?”, perguntariam. Antes de entrar nesse tópico, gostaria de apontar que algumas noções (como a de verdade e a de razão) são inescapáveis, no sentido de que é impossível nos situarmos em um ponto neutro onde possamos pensar alguma coisa sem pressupor essas noções. Peguemos um exemplo com a idéia de verdade. Muitas vezes, quando se afirma “não existe verdade”, o que se quer dizer com o termo “verdade” é outra coisa. O que se quer dizer, geralmente, é que existem crenças divergentes e que é difícil saber quais delas são corretas (quais são verdadeiras); ou ainda, que em determinados assuntos não há como saber quem está certo, e assim por diante. Note que tudo isso se refere à impossibilidade de conhecimento (impossibilidade de se justificar crenças), em determinado assunto, e não à verdade. Pelo menos, entender essa alegação desse modo é a única maneira de não tornar auto-refutante a afirmação “não existe verdade” (vamos chamá-la de proposição A). Pois, se tal afirmação refere-se mesmo à verdade, ela se auto-anula. Se não existe verdade, como essa afirmação pretende ser verdadeira? Se essa afirmação for verdadeira (se não existir verdade), então ela é falsa (porque então, existe uma afirmação verdadeira). Se, por outro lado, afirma-se que nem mesmo essa afirmação é verdadeira (ela confirma sua própria tese), então o que se está a afirmar é que: “é verdadeiro que a proposição A é também não verdadeira (ou, que é ‘muito subjetiva’)” (vamos chamar essa segunda afirmação de proposição B). Nesse caso, teria-se de dizer que alguém que acredita que a afirmação “não existe verdade” é verdadeira em termos objetivos está enganado (ou seja, possui uma crença objetivamente falsa), o que também é auto-refutante. Além de que, se é afirmado que “nem mesmo a afirmação ‘não existe verdade’ é verdadeira”, então não se oferece nenhuma razão para se acreditar nessa afirmação. Se, novamente, o perspectivista diz que até mesmo a proposição B é subjetiva, então, dá um outro passo atrás e faz outra afirmação objetiva: “é verdadeiro que a proposição B também é ‘muito subjetiva’, e quem pensa o contrário está objetivamente enganado” (vamos chamar essa terceira afirmação de proposição C), e assim, infinitamente, se tentar novamente perspectivar essa afirmação. Isso mostra que, para expressarmos uma proposição, é necessário nos apoiarmos em um ponto de vista objetivo, e isso inclui também toda tentativa de perspectivar algo. Toda vez que se tenta perspectivar algo, se dá um passo atrás em busca de um ponto de apoio objetivo para que a perspectivação faça sentido. É por isso que o perspectivismo total é auto-refutante. Note que, seja lá qual a forma que se exponha o perspectivismo total (como verdade ou como também subjetivo), ele é sempre auto-refutante, porque pressupõe a idéia de verdade, ao mesmo tempo que pretende negá-la. Ele a pressupõe tanto se pretende ser uma afirmação verdadeira quanto se pretende ser não-verdadeira (nesse caso, teria-se de dizer que alguém que acredita que ela é verdadeira está objetivamente errado).

O mesmo acontece em alegações do tipo “a verdade é uma mera construção social” ou “a verdade nada mais é do que aquilo que os que detém o poder querem que seja”. Geralmente, essa máxima é tão facilmente aceita porque se está a pensar em outra coisa, que não a verdade, com o uso do termo “verdade”. O que se quer referir, na maioria das vezes, não é nada com relação à verdade em si, mas a aquilo que é passado como verdade. Se a pessoa que aceita tal máxima assume que é isso mesmo que quer dizer (que se está utilizando a palavra “verdade” num sentido muito peculiar, para significar as crenças dos que detém o poder), então sua afirmação não nega, nem um pouco, a existência de verdades objetivas. Aliás, essa afirmação pretende ser verdadeira em termos objetivos. Ou seja, pretende afirmar que a frase “aquilo que é passado como verdadeiro nada mais é do que as crenças dos poderosos” é verdadeira. Se o perspectivista com relação à verdade (aquele que diz que a verdade é uma mera construção), por sua vez, objeta afirmando que não queria se referir ao que é passado como verdadeiro, mas exatamente à verdade em si, então torna o seu argumento auto-refutante. Isso porque tal crítica só faz sentido se houver valor de verdade sobre essa questão (ou seja, que as afirmações feitas sobre essa questão sejam, ou verdadeiras, ou falsas). Tal crítica se baseia na afirmação de que a verdade é uma mera construção cultural, quando pretende ser verdadeira em termos objetivos, e não, meramente uma construção cultural que só é verdadeira dentro de determinada comunidade (não confundir com “só é vista como verdadeira dentro de determinada comunidade”, como será explicado no parágrafo a seguir). Por isso, é auto-refutante.

Nesse ponto, é possível que surja outra confusão. O perspectivista poderia afirmar que está mesmo a dizer que, inclusive o seu próprio argumento só é verdadeiro dentro de uma determinada comunidade, e que não pretende que seu argumento tenha validade para qualquer outro indivíduo. Ao fazer essa objeção, o perspectivista confunde os domínios descritivo e normativo do pensamento. Segundo entendo essa objeção, o que o perspectivista quer dizer é que nada garante que outros indivíduos de outras comunidades aceitarão o seu argumento, e que nada garante que outros indivíduos considerarão o argumento como válido. Note que todas essas observações são descrições sobre o que as pessoas fariam (domínio descritivo). Mas, não é esse sentido que está envolvido quando se critica a negação total da verdade como auto-refutante. Quando se diz que o perspectivista, com a pretensão de negar toda a verdade, ao mesmo tempo pretende que essa afirmação seja verdadeira em termos objetivos, não se quer dizer que o perspectivista acha ingenuamente que todos aceitarão o argumento (domínio descritivo); mas, ao invés, que precisa acreditar, para que seu argumento faça sentido, que todos deveriam (que têm boas razões para) aceitar o argumento (um pensamento que pertence ao domínio normativo).

Outra confusão possível seria o perspectivista alegar que o que está a dizer é que a noção de verdade é uma construção cultural. Ou seja, com isso, querer dizer que a idéia de que existem coisas verdadeiras e coisas falsas (e não, a verdade em si) só pode acontecer dentro de uma cultura. Mesmo se isso for verdade, não monta um argumento para se concluir que, então, a verdade é uma mera construção cultural. Quando se retrata a verdade como mera construção cultural, o que geralmente se pretende é desacreditar o argumento do interlocutor, afirmando que ninguém tem motivos para acreditar nele. Ora, mesmo se for verdade que a idéia de que existem coisas verdadeiras e coisas falsas é produto da cultura, isso não diz nada quanto ao status dessa idéia (não prova que ela é uma idéia falsa; aliás, se provasse, também seria auto-refutante, pois tal prova dependeria da existência de verdade).  Assim, quem afirma que a verdade é uma mera construção cultural não quer que a afirmação “a verdade é uma mera construção cultural” seja uma mera construção cultural; quer que seja verdadeira, ponto. Se o perspectivista negar esse ponto, e afirmar que essa afirmação também é uma mera construção cultural, que ninguém tem razões para valorizar, então não precisamos dar ouvidos a ela. E, mesmo que essa saída fosse tentada, não se escaparia da pretensão de que aquilo que se afirma seja verdadeiro em termos objetivos: o perspectivista está, agora, a afirmar que sua frase também é uma mera construção social (uma afirmação que pretende ser objetivamente verdadeira, ou seja, quem pensar que ela não é também uma mera construção social estaria objetivamente enganado). Essa nova afirmação de segundo nível, sobre o que havia afirmado anteriormente, pretende ser verdadeira em termos objetivos, o que faz com que se auto-anule. A conclusão é que toda vez que se tenta perspectivar (relativizar, subjetivizar) algo, tem-se que apoiar num ponto de apoio exterior, que pretende ser verdadeiro em termos objetivos. Daí ser auto-refutante qualquer tentativa de negar a verdade em geral.

O exemplo acima visa mostrar que a noção de verdade é inescapável. Não há como fazer nenhum raciocínio sem ela. Com isso não se quer dizer que a pessoa em questão não está aberta para a possibilidade de estar errada. A pessoa pretende que aquilo que falou seja verdadeiro, mas pode reconhecer que, como ela é falível, talvez tenha cometido um erro no processo de justificação. Uma coisa é dizer “há uma verdade sobre essa questão”, outra é dizer “eu, com certeza, sei qual é a verdade”. É por isso que não faz sentido acusar alguém que afirma que existe verdade em determinado assunto,  por esse motivo, de não estar aberta para a possibilidade de ter se enganado. A própria possibilidade de alguém estar enganado depende de existir uma verdade sobre tal assunto. São os que negam a existência de verdade que tem que admitir que, se fosse assim, então, ninguém se engana nunca, e ninguém precisa estar aberto a revisar suas crenças (nem mesmo os que discordam da negação da verdade, o que torna o argumento de que não existe verdade auto-refutante).

Com o exemplo a seguir, pretendo mostrar que, assim como a idéia de verdade é inescapável em qualquer afirmação ou negação, também não temos como fugir da razão. Mencionei acima que a escolha da razão como método de justificação poderia parecer circular. Supondo que alguém ofereça um argumento mais detalhado do que esse, para afirmar que a razão não é confiável (digamos que a pessoa esteja defendendo, ao invés, que confiemos em nossas intuições ou no que as autoridades dizem – o que chamarei de irracionalidade): “se você fundamenta a razão numa intuição, comete contradição; se você fundamenta a razão na própria razão, cai num círculo vicioso”. Existem dois problemas graves com esse argumento. O primeiro, é que, se alguém fundamenta a tentativa de dizer que a razão  não é confiável na razão (ou seja, se oferece um argumento para dizer que qualquer apelo à razão não é válido, como foi feito acima), comete contradição; já, ao invés, se fundamenta tal tentativa na intuição (ou em qualquer outra coisa que não seja a razão), cai num círculo vicioso (usa a intuição para justificar a intuição, por exemplo). O segundo problema, é que faz sentido acusar de contradição o apelo a razão para justificar a irracionalidade, assim como faz sentido acusar de circularidade o apelo à própria irracionalidade para justificar a irracionalidade (mesmo que tais acusações sejam circulares). Agora, não faz sentido acusar de contradição o fundamentar a razão na intuição e de circularidade o fundamentar a razão na razão, pois não contradição e não circularidade são dois princípios básicos da razão, e só faz sentido apelar a eles se a razão também fizer. Não faz sentido dizer que essas regras nunca são válidas, a não ser quando o perspectivista quer montar sua objeção contra elas. Por esse motivo, qualquer argumento com vistas a rejeitar por completo a confiança na razão é auto-refutante[3].

O exemplo acima mostra que algumas tentativas comuns de eliminar a confiança na razão estão fadadas ao fracasso. Por exemplo, é comum o argumento de que “a razão é apenas uma ferramenta que nos foi útil em termos evolutivos; não faz sentido pensar que seus princípios básicos revelam a verdade”; ou ainda, que “a razão é um mero produto cultural, e nunca pode revelar verdades universais”. O problema com tais argumentos é que, se a razão nunca for confiável, então não podemos confiar nem nesses argumentos, e nem nas teorias das quais eles partem para serem construídos (por exemplo, das descobertas da biologia e da sociologia). Para esses argumentos fazerem o mínimo de sentido, a razão precisa ser confiável (precisa não apenas ser algo do qual não se pode escapar, mas também algo com poder de revelar a verdade!). Se a razão nunca for confiável, nenhum argumento o é, nem o que afirma isso. Por isso, qualquer tentativa de negar a razão por completo é sempre auto-refutante. Qualquer tentativa de provar que a razão nunca é confiável precisa estar amparada em um argumento, para fazer sentido. Só que argumentos só fazem sentido se a razão fizer (argumentos são produto da razão). É por isso que a razão é algo do qual não se pode escapar. Não há um ponto “de fora” onde seja possível nos situarmos para tentar provar qualquer coisa, que não tenha que estar amparado em um argumento. Mas, além de ser inescapável, a razão possui o poder de nos direcionar rumo à verdade; pois, se não for assim, nenhum argumento, nenhuma dúvida faz sentido, nem mesmo os argumentos utilizados para negar a validade da razão e as dúvidas quanto ao poder da razão em nos conduzir rumo à verdade. Muito importante: estamos a falar aqui de dúvidas com relação à razão como um todo (todo e qualquer raciocínio), e não dúvidas com relação à validade de um raciocínio específico.

A acusação da circularidade de se fundamentar a razão na razão remete ao seguinte: quando queremos justificar uma conclusão, apelamos a outros princípios mais gerais e menos controverso, para dar base à conclusão. Se perguntarmos pelo que sustenta o princípio geral que sustentou a primeira conclusão, temos de apelar a outro ainda mais básico e geral, e ainda menos controverso, e assim por diante. O que acontece é que não é possível fazer isso de maneira infinita, pois, se fosse assim, nunca chegaríamos a nenhuma conclusão. Alguns princípios de raciocínio precisam ser dados como verdadeiros, mesmo que não se possa prová-los com base em outros mais básicos (porque eles são os mais básicos possíveis, até onde se sabe). Isso não quer dizer que aceitar esses princípios seja como jogar os dados para provar que os dados são guias confiáveis. A diferença toda reside em que é impossível pensar qualquer coisa que faça sentido sem a aceitação de que esses princípios são verdadeiros (por exemplo, o princípio da não contradição e outros princípios básicos da lógica). Vimos que esses princípios são aceitos como verdadeiros mesmo nos argumentos que pretendem negar a validade da razão como um todo (o que os torna auto-refutantes). Além disso, não há um bom motivo para duvidarmos de sua validade (haja vista que qualquer crítica sobre eles precisa, para fazer o mínimo de sentido, pressupô-los como válidos). Além disso, a circularidade da justificação desses princípios básicos não é dogmática. Como vimos, a razão é auto-corretiva e qualquer um que entenda determinada questão tem acesso aos processos de justificação e à possibilidade de fazer a correção de um raciocínio que se descobre estar errado. No apelo a autoridade, revelação ou intuições, não há nada disso; apenas dogmas. A razão é auto-corretiva porque sempre é possível criticar e avaliar todo e qualquer princípio, mas sempre com base em outros. É possível criticar e aprimorar cada um deles, mas um de cada vez, sempre se apoiando em outro menos controverso (a filosofia tem feito isso desde a antigüidade). O que não é possível é criticar todos com base em nenhum[4]. É por isso que negações totais da razão (diferentemente de críticas a raciocínio específicos ou até princípios de raciocínio específicos) são auto-refutantes.

Com as distinções feitas anteriormente, entre verdade e conhecimento, podemos reparar em duas posições diferentes, que muitas vezes são confundidas, com relação a esses conceitos: perspectivismo e ceticismo. Nesse ponto, estou a falar do que chamo de perspectivismo e ceticismo totais (e não, sobre assuntos específicos, como a ética, por exemplo). O perspectivismo total nega a existência de verdade em geral. Duas formas de perspectivismo são bem conhecidas: relativismo e subjetivismo. O relativismo geral diz que tudo o que há são diferentes crenças de diferentes sociedades, mas que não existe verdade objetiva. O subjetivismo geral faz a mesma afirmação, só que não com relação a sociedades, e sim, com relação às crenças dos diferentes indivíduos. Como vimos, tais posições são auto-refutantes, porque pretendem ser verdadeiras (e verdadeiras de maneira objetiva, independentemente do que a sociedade ou os indivíduos acham). Um relativista ou subjetivista gerais, por exemplo, acha que está enganado (objetivamente enganado, e não apenas, enganado para o perspectivista) aquele que pensa que existe verdade objetiva.

Já o ceticismo geral reconhece a existência da verdade. Contudo, nega a possibilidade de conhecimento. O ceticismo geral é um ceticismo diante da razão. O cético geral não acredita que possamos chegar a algum conhecimento através da razão, justamente por sermos falíveis. Portanto, nunca poderemos ter certeza absoluta de que nossas conclusões são verdadeiras (certeza absoluta de não termos cometido um erro na justificação, por exemplo). Note que o ceticismo, diferentemente do perspectivismo, assume a existência da verdade. Portanto, o ceticismo geral não é auto-refutante por assumir a existência da verdade (já que ele não visa negar a existência da verdade). Contudo, ele é auto-refutante se assumir que “com certeza, não podemos confiar na razão”, já que o ceticismo total nega que seja possível certeza sobre qualquer coisa. Então, na melhor das hipóteses, o ceticismo total oferece uma razão para duvidar dele: se temos de sempre ter dúvida, devido à nossa falibilidade, então temos de ter dúvida sobre o ceticismo total e sobre nossa falibilidade também. Talvez seja possível termos certeza absoluta de alguma coisa.

Outra distinção importante é entre: (1) perspectivismo e ceticismo totais e  (2) perspectivismo e ceticismo em domínios específicos (como na ética, por exemplo). As formas de ceticismo e perspectivismo específicos não são automaticamente auto-refutantes. Contudo, isso não indica também que estejam necessariamente corretas. A resposta para isso precisa ser descoberta raciocinando-se sobre cada área em questão. O perspectivismo específico assume que existe verdade em geral, mas nega que exista verdade objetiva com relação a uma determinada área do pensamento (enquanto que assume que existe em outras). Essa forma de perspectivismo não é automaticamente auto-refutante: faz uma afirmação que pretende ser verdadeira, mas não nega a verdade em geral (nega apenas em um domínio específico do pensamento). Já o que estou a chamar de ceticismo específico, apesar de reconhecer que há verdade objetiva (tanto em geral quanto na área específica na qual é cético com relação à possibilidade de conhecer a verdade), reconhece que é possível ter conhecimento em algumas áreas, mas não em outras. Essas formas de perspectivismo e ceticismo não são auto-refutantes porque pretendem ser verdadeiras, mas não negam que exista verdade. Se alguém fala “tudo é muito relativo”, faz sentido perguntar “isso também?”, o que sugere que a afirmação é auto-refutante. Mas, se alguém fala “em ética, é tudo muito relativo”, isso não é automaticamente auto-refutante, já que o que a pessoa quer dizer não é que não existe verdade, mas sim, que “a verdade é que, em ética, é tudo muito relativo”. Contudo, como mencionei, o fato de um argumento não ser auto-refutante não indica que a crença que ele visa sustentar é verdadeira. Pode ser que o argumento seja ruim por outros motivos, e pode ser que a crença em questão seja falsa, apesar de não ser auto-refutante.

No restante do artigo, argumentarei contra o perspectivismo e ceticismo especificamente com relação à ética. As duas posições se diferenciam no seguinte: o perspectivismo ético (seja na forma do relativismo, seja na forma do subjetivismo) nega que haja verdade objetiva em ética (já que negam a existência de verdade objetiva em ética, negam também a possibilidade de um raciocínio em ética, com vistas a descobrir essas verdades objetivas); já o que estou a chamar de ceticismo ético diz respeito à posição que acredita haver verdade objetiva em ética, mas que defende que somos demasiadamente falíveis para conseguir descobri-las (lança dúvidas sobre a capacidade da própria razão e da nossa habilidade com a razão, em descobrir verdades morais).

Para entendermos o perspectivismo ético, é interessante olharmos para um exemplo. Como mencionei antes, negações da verdade em domínios específicos são diferentes de negações da verdade em geral. É possível que alguém negue que exista verdade objetiva em um domínio e aceite que exista em outro. Por exemplo, é possível que alguém acredite que exista verdade objetiva com relação aos fatos físicos, mas não com relação às perguntas “qual a decisão correta?” e “qual a cor mais bonita?”. Peguemos por ora os dois exemplos menos controversos (o dos fatos físicos e o da beleza das cores). A maioria de nós aceita que existem verdades objetivas sobre os fatos físicos. Por exemplo, certamente há uma verdade sobre quem foi Jack o estripador, mesmo que nenhum de nós saiba quem foi. Concordamos que há uma verdade sobre a idade do planeta Terra, sobre o motivo do desaparecimento dos dinossauros, e se sobre Luciano Cunha assaltou ou não geladeira ontem a noite. Em contrapartida, a maioria de nós concorda que não existe verdade objetiva com relação à beleza das cores. Se encontrarmos duas pessoas discutindo sobre qual a cor mais bonita, lilás ou verde, pensaremos que essas pessoas estão iludidas; estão pensando que há valor de verdade sobre uma questão cuja única verdade é que não existem razões para acreditar que uma cor é melhor do que outra; tudo se resume, nesse caso, a gosto pessoal. Tendo entendido essa diferença, podemos entender o perspectivismo com relação à ética: no entender dos que defendem o perspectivismo com relação à ética, esta seria como o gosto por cores, e não como reportar fatos. Diferentemente de acessar fatos físicos (onde é possível investigar se o que se fala é verdadeiro ou falso), tudo o que podemos fazer em ética, no entender dos perspectivistas, é reportar algo sobre nós (nossos gostos pessoais ou exprimir sentimentos, por exemplo). Não há, no entender dos perspectivistas, verdade objetiva sobre as questões éticas, e todo mundo está igualmente certo (não temos razões – o que pressupõe generalidade, como vimos - para preferir essa ou aquela posição).

Um dos argumentos utilizados para sustentar a tese do perspectivismo moral é o factualismo. O factualismo basicamente diz o seguinte: toda afirmação que possui valor de verdade (isto é, que pode ser verdadeira ou falsa, em termos objetivos) precisa de fatos físicos correspondentes; já um domínio de pensamento onde não existam fatos físicos a que apelar para verificar as alegações é meramente subjetivo (expressão de gosto pessoal, por exemplo). Assim, por exemplo, quando digo “Há um cachorro debaixo da minha cama”, essa afirmação possui valor de verdade porque há um fato físico correspondente a essa afirmação, que se pode verificar com os cinco sentidos para avaliar se o que falei foi verdadeiro ou falso. Já quando digo “estuprar é errado”, o perspectivista dirá que minha afirmação não é verdadeira nem falsa, porque não há um fato físico correspondente a “estuprar é errado”. O problema com o factualismo é que ele também é auto-refutante. Note que o factualismo diz que toda afirmação que possui valor de verdade precisa de um fato físico correspondente que a torne verdadeira. Temos de perguntar: há um fato físico correspondente à afirmação “toda afirmação que é verdadeira precisa de um fato físico correspondente que a torne verdadeira”? Certamente não. Essa tese (o factualismo) é uma tese filosófica, não empírica. Então, se ela fosse verdadeira (se tudo que é verdade precisasse de fatos físicos correspondentes), seria falsa (porque não há um fato físico correspondente ao factualismo). Se, por outro lado, o factualista afirmar que, nesse caso, não precisa de um fato físico para o factualismo ser verdadeiro, então o factualismo é falso (pois então é falso que sempre se precisa de fatos correspondentes para tornar algo verdadeiro[5]).

O argumento a favor do factualismo é auto-refutante. Contudo, isso não prova que a conclusão que ele pretende sustentar (a de que não existe verdade objetiva em ética) é falsa. Isso porque é possível existirem outros argumentos melhores a favor do perspectivismo moral. É possível que uma conclusão esteja correta, e o argumento que visa sustentá-la seja ruim. É possível que, por outros motivos, não haja verdade em ética, mesmo que o factualismo seja falso. Quando pretendemos provar que uma posição está errada (como eu pretendo, com relação ao perspectivismo com relação à ética), não apenas temos de mostrar que os argumentos oferecidos em seu favor são ruins; temos também de oferecer um argumento explicando por que ela está errada. É isso que pretendo fazer a seguir (no próxima parte).

Notas:

[1] Mestre em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O autor agradece à Marina S. O. Serralheiro pelas críticas e revisões.

[2] Cf. NAGEL, Thomas. A Última Palavra. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: UNESP, 2001, p. 13.

[3]MURCHO, Desidério. Zen e a Arte da Manutenção da Filosofia. In: Crítica na Rede. 14/07/2009. Disponível em: http://criticanarede.com/zen.html

[4]Cf. MURCHO, Ibid.

[5]A argumentação contra o factualismo pode ser encontrada em MURCHO, Desidério. Ética e Direitos Humanos. In: Crítica na Rede. 27/11/2009a. Disponível em: http://criticanarede.com/html/valoresrelativos.html

3 comentários:

  1. Olá, Luciano,

    Embora seja auto-refutante dizer que não há verdades morais sem fatos físicos correspondentes, existe algum exemplo de uma verdade moral sem fato físico correspondente? É que, por exemplo, na afirmação "estuprar é errado", há o fato físico segundo o qual o indivíduo violentado é um ser cuja organização biológica implica a senciência e (supõe-se) possui um interesse em não ser estuprado. Sem esse fato físico, isto é, sem uma disposição de elementos físicos que resulte em um organismo senciente, não faria sentido falar em violência, já que não haveria dano a um indivíduo.

    Abraços,

    Harlen

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  2. Olá, Harlen!

    Obrigado pela questão!

    Concordo com a conclusão do seu argumento, ou seja, que a moralidade tem a ver com o que acontece de bom ou ruim para os indivíduos, e só faz sentido falar em moralidade se houver possibilidade de dano/benefício aos indivíduos. E, como você apontou, indivíduos são coisas físicas. Como afirmei no artigo, se não existissem indivíduos sencientes (ou, se só existissem indivíduos cujo bem fossem impossível de se alterar, para pior ou para melhor), então a moralidade não faria sentido.

    Existe, contudo, uma pequena diferença entre afirmar que a moralidade depende da existência de determinados objetos físicos (a saber, os seres sencientes), e afirmar que a verdade sobre algo (no caso, os juízos morais) dependeria de um fato físico equivalente a este juízo. É isso que o factualismo afirma. Quando alguém afirma "estuprar é errado", o factualista não se contentará em apontarmos o fato de que a vítima sofre, e que sofrer é um mal para ela. Para o factualista, teria de existir um fato físico equivalente a "estuprar é errado". Então, como você percebeu com sua pergunta, é irônico que o factualismo procure por fatos morais (que seriam diferentes de qualquer outro fato físico), enquanto que desconsidera exatamente os fatos relevantes para a moralidade (os fatos relacionados à valorização dos pacientes da decisão, por exemplo, que sofrer é um mal e desfrutar é um bem).

    Eu ainda não tenho uma resposta bem definida à sua pergunta. Por enquanto, penso como você: qualquer verdade moral depende de beneficiar os indivíduos. Alguns filósofos diriam que não, que determinadas verdades morais são boas nelas mesmas. Essa discussão acontece muito em torno da igualdade. Alguns autores tendem a defender que a igualdade só é boa porque melhora a situação de quem está pior (os chamados filósofos prioritaristas). Outros dizem que a igualdade é boa nela mesma (os igualitaristas). Esse é o tipo de questão que, na prática, faz pouca diferença, já que a igualdade sempre vai melhorar a situação de quem está pior. Então, na prática, priortaristas e igualitaristas defendem decisões iguais (embora, com fundamentações diferentes). Por enquanto, tendo a concordar com os prioritaristas, mas me falta aprofundar essa reflexão.

    Em resumo, quanto à sua pergunta, a resposta depende da amplitude do que estamos a definir como "fato físico". Se, por exemplo, "o sofrimento ser um mal" é um estado mental valorativo, e se estados mentais valorativos forem parte do mundo físico, então, sim, as verdades morais dependem da existência de fatos físicos. Se estados mentais valorativos não forem parte do mundo físico, então, não.

    Abraço e obrigado pela ótima questão!


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