quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

IGUALDADE SENCIENTE - parte 2

VERDADE, RAZÃO, JUSTIFICATIVA EM ÉTICA E OS SERES SENCIENTES

 Luciano Carlos Cunha [1]

PARTE 2: Como a pretensão de objetividade é inescapável em qualquer juízo moral e o papel da razão em avaliar esses juízos.

Antes de iniciar, gostaria de esclarecer o que entendo pelos termos “ética” e “moral”, com vistas a evitar confusões de ambigüidade muito comuns. Muitas vezes, os termos ética e moral são utilizados como sinônimos; outras vezes não. No que se segue, utilizarei os dois termos como sinônimos, porque, segundo entendo, a confusão consiste não na questão sobre se esses termos são sinônimos ou não, mas o que se quer referir com cada um deles: a crenças ou à verdade. Muitas vezes, a palavra ética é utilizada para descrever as crenças de alguém sobre as decisões práticas (o que alguém acredita que não se deve e o que se deve fazer; o que é opcional fazer, etc.). Por exemplo, isso acontece quando se diz: “a ética de fulano permite fazer x”; ou seja, como significando a mesma coisa que “fulano acredita que é correto fazer x”. Contudo, às vezes a palavra “moral” também é utilizada nesse mesmo sentido: “a moral de fulano permite fazer x”; ou seja, como significando que “fulano acredita que é correto fazer x”. Chamarei esse uso de sentido descritivo (descreve aquilo que as pessoas acreditam – as crenças - sobre ética/moral) dos termos “ética” e “moral”. O outro sentido comum em que se utiliza essas palavras não é descritivo (não descreve o que as pessoas ou sociedades acreditam que se deve ou não fazer), mas avaliativo: se está a fazer um juízo de valor sobre o que se deve ou não fazer; o que é opcional, etc. Esse é o sentido primário, valorativo, dos termos ética/moral. O outro sentido é só uma descrição sobre o que as pessoas acreditam que seja a verdade em ética/moral (ou seja, o que elas acreditam que seja a resposta correta para o sentido valorativo). Um sentido refere-se à verdade; o outro refere-se ao que as pessoas acreditam que seja a verdade. Por exemplo, quando se fala, no sentido valorativo: “fazer x é imoral (ou, anti-ético)”; se está dizendo a mesma coisa que “não deve-se fazer x”; “existem boas razões para não se fazer x”. Quando se fala “x é ético (ou, moral)”, está a se dizer “deve-se fazer x”; “existem boas razões para fazer x”. Inclusive quando se fala “tudo é moralmente (ou eticamente) opcional”, se está a exprimir o que se pensa ser a verdade sobre ética/moral: que todas as decisões são igualmente válidas. Para evitar a confusão entre os sentidos de descrição de crença e de julgamento sobre a verdade dos termos ética/moral, utilizarei um “(c)” para o primeiro (crenças) e “(v)” para o segundo (verdade). Fazendo essa distinção, o aparente paradoxo de afirmações do tipo “a ética/moral de fulano não é ética/moral” desaparece, pois o que se está a dizer é que “a ética/moral(c) de fulano - ou seja, o que fulano acredita ser ético/moral(v) – não é ética/moral(v)”. Tudo o que se quis dizer com essa afirmação é que alguém está enganado ao pensar que determinada coisa é certa, errada, opcional, etc.

O que se quer descobrir no raciocínio moral(v)? É importante perceber que o raciocínio moral é um tipo de raciocínio valorativo. O que se quer descobrir é o que devemos fazer, o que não devemos fazer, e o que tanto faz se fizermos ou não. Separarei essas questões em duas categorias: (1) moralmente obrigatório: inclui o que não se deve fazer (um dever negativo); e o que deve-se fazer (um dever positivo) e; (2) moralmente opcional: tanto faz se fizermos ou não. Com relação à primeira categoria, diz-se que algo é um dever negativo se existirem melhores razões para não fazê-lo (fazê-lo é um mal e não fazê-lo é um bem) e diz-se que algo é um dever positivo se existirem razões para fazê-lo (fazê-lo é um bem e não fazê-lo é um mal). Com relação ao moralmente opcional, fazê-lo ou não fazê-lo é igualmente neutro. Note que cada uma dessas razões, se existirem, dependem do conceito de valor (note a referência a algo ser um bem e ser um mal). Atentando para essa particularidade, é possível perceber que algo ser um dever negativo, dever positivo ou moralmente opcional dependerá não somente do valor embutido em cada uma das situações, mas da comparação entre as opções de decisão disponíveis para o agente. Se o agente tem, diante de si, várias opções e todas são igualmente boas (ou todas são igualmente ruins), escolher qualquer uma delas é igualmente opcional. Se o agente tem, diante de si, várias opções e algumas delas são igualmente as melhores, comparativamente às outras, escolher alguma das melhores é igualmente opcional; escolher qualquer outra é um dever negativo. Se só há uma opção melhor do que as outras, escolhê-la é um dever positivo.

Como veremos na seqüência, são essas razões objetivas (que dependem do valor) que tornam uma decisão moralmente obrigatória e outras moralmente opcionais que os perspectivistas morais negam a existência. Antes de oferecer os argumentos centrais contra o perspectivismo moral, cabe salientar o que o raciocínio moral não é:  descritivo. O que se quer descobrir não é o que as pessoas acreditam que seja (remete crenças) moralmente obrigatório e moralmente opcional. O que se quer descobrir é se existem decisões que são (remete à verdade) moralmente obrigatórias e moralmente opcionais, e como diferenciá-las.

Devido ao domínio da moralidade ser essencialmente normativo, qualquer argumento com vistas a provar que a ética é perspectivada (relativa, subjetiva) que se baseie na confusão entre os domínios normativo e descritivo está fadado ao fracasso. E, não são poucos os argumentos que padecem dessa confusão. Muitas vezes, quando se fala “não existe verdade em ética”, o que se quer dizer, na realidade, é: que as crenças das pessoas (ou das sociedades como um todo) divergem sobre o que é certo e errado fazer. O fato de haver divergência sobre certo e errado não mostra que todas as visões morais são igualmente plausíveis, assim como as divergências sobre qualquer outro assunto não mostram que as visões em questão são igualmente plausíveis. Se alguém replicar, alegando que “em ética, a coisa é diferente”, precisa oferecer outro argumento para explicar por que com a ética é diferente; apontar que há discordância não mostra o que há de diferente com a ética, haja vista haver discordância em qualquer assunto. O erro desse argumento é fazer uma constatação descritiva (“as crenças sobre o que é certo divergem”) e pensar que essa constatação sustenta um salto lógico para uma conclusão normativa (“todas essas crenças são igualmente corretas”). Esse é o erro conhecido como falácia naturalista (saltar de uma premissa descritiva para uma conclusão de valor). Supondo que o perspectivista se revele, no fundo um cético moral, e afirme que o que quer dizer, na verdade, é que ninguém tem conhecimento total sobre o que é certo e errado, ou  que certas decisões são muito difíceis de se encontrar a resposta. Contudo, o fato de ninguém ter conhecimento total sobre o que é certo e errado não prova que não há verdade moral (aliás, tal afirmação depende da existência de verdade moral); o fato de que certas questões serem difíceis de responder não mostra que não existe uma resposta objetiva sobre elas (mostra apenas que talvez não tenhamos chegado a essa resposta ainda). Nenhuma dessas alegações serve como base para sustentar a tese contra a objetividade da ética, da mesma maneira que a presença dos mesmos problemas (discordância de posições, questões difíceis, ninguém ter todo o conhecimento sobre a área, etc.) não depõe contra a objetividade da matemática ou das ciências empíricas. Aliás: a verdade nesses domínios (e também na ética, como pretendo mostrar) independe de quaisquer crenças. Assim como haver grande discordância sobre um assunto não prova que não existe verdade sobre esse assunto, o fato de todos concordarem com uma conclusão não prova que ela é verdadeira. A verdade tem de ser buscada em outro lugar, que não no fato de haver discordância ou concordância, pois, como mencionei antes, a verdade não é estatística nem consensual (porque a verdade é independente das crenças).

Outro exemplo de argumento que visa sustentar o perspectivismo moral (relativismo ou subjetivismo) que padece da confusão entre o domínio normativo e descritivo são os conhecidos exemplos de falácia genética. A falácia genética consiste em confundir a explicação sobre o surgimento de algo (no caso, sobre o surgimento de uma crença, uma determinada conclusão, uma teoria, etc.) com sua justificação ou “des” justificação. Ou seja, é comum se tentar mostrar que uma determinada conclusão é justificada ou injustificada explicando como é que as pessoas que nela acreditam chegaram até ela. No caso específico, os relativistas morais comumente afirmam: “você só tem os valores que têm porque nasceu na sociedade em que nasceu; tivesse nascido em outra, acreditaria em coisas diferentes”. Por exemplo, diriam que eu acredito no valor da igualdade porque nasci numa sociedade que possui valores igualitários, mas que acreditaria no valor das castas se tivesse nascido numa sociedade de castas. A partir disso, defendem a conclusão de que a verdade objetiva em ética não existe. Esse argumento não funciona porque mesmo que fosse verdade o que ele afirma em termos de descrição (que eu teria outros valores se tivesse nascido em outro tipo de sociedade, com outros valores), isso não prova que todos esses valores são igualmente plausíveis. Supondo que seja verdade que, se eu tivesse nascido numa sociedade de castas, eu defenderia as castas como moralmente corretas. Essa constatação não serve para sustentar a tese de que, então, defender a igualdade ou as castas é igualmente plausível. Isso porque considerações sobre o que eu acredito ou o que eu acreditaria são apenas descrições sobre minhas crenças, e não, fundamentações sobre juízos de valor. O domínio descritivo não possui poder para tirar conclusão nenhuma sobre questões normativas. Eu me perguntaria, após ouvir esse argumento: “e agora, devo defender a igualdade, as castas ou é tudo moralmente opcional?”. Dizer que eu defenderia uma coisa se tivesse nascido numa sociedade x e outra se tivesse nascido na y não ajuda em nada a responder essa pergunta. Não oferece nenhuma razão para se pensar que a igualdade é melhor do que as castas, nem que as castas são melhores do que a igualdade, e nem mesmo que ambas são igualmente plausíveis. A resposta para essa pergunta (saber se uma opção é melhor do que a outra, o que tornaria escolher uma um dever positivo e rejeitar a outra um dever negativo; ou se ambas são igualmente boas, o que tornaria a escolha moralmente opcional) tem de vir do próprio domínio normativo, não do descritivo. Quando pensamos moralmente, não queremos descobrir o que faríamos, nem o que faz com que tenhamos os valores que temos, e sim, o que devemos fazer, que valores devemos ter (mesmo quando se responde “qualquer um que se queira”, a resposta surge de crenças sobre o domínio normativo, não do descritivo).

Existem outros argumentos em defesa do perspectivismo moral (relativismo, subjetivismo) que também são culpados de falácia genética,  mas não envolvem suposições sobre que valores alguém teria se tivesse nascido em outra sociedade. Por exemplo: (1) “o altruísmo não vale nada; você é altruísta porque se sente feliz com isso ou porque tira vantagem disso”. Mesmo que o agente só fosse altruísta porque se sente feliz com isso ou porque tira vantagem disso (ou seja, mesmo que isso explique a motivação que dá origem ao altruísmo naquela pessoa), isso não mostra que o altruísmo não vale nada (não mostra que não há justificativa para o altruísmo). Ou ainda, (2) “O surgimento da moralidade se deu por motivos mesquinhos (‘eu não bato em você, e você não me bate’); logo, só temos razões para respeitar alguém se ele tiver poder de nos ameaçar”. Mesmo que fosse verdade que o surgimento da moralidade se deu com esse tipo de motivação (explicou a origem de algo), isso não mostra que, então isso foi certo naquela época e é certo agora (não justifica esse algo).

Tendo desfeito essas confusões, precisamos olhar agora para a reivindicação envolvida no perspectivismo moral:  que não é possível um critério objetivo (razões), para dizer que um valor é melhor do que outro. Existem dois tipos principais de perspectivismo moral. Um deles é o relativismo moral. O relativismo moral afirma que não existem julgamentos de valor objetivamente válidos, mas, apenas, válidos dentro de uma sociedade. O outro é o subjetivismo moral. O subjetivismo moral afirma que não existem julgamentos de valor objetivamente válidos, mas, válidos apenas para cada pessoa individualmente.

Endereçarei agora o que considero as principais objeções a esse tipo de perspectiva. O primeiro problema com esse tipo de perspectiva é que, tanto o relativismo quanto o subjetivismo moral só fazem sentido sob um pano de fundo objetivo no domínio ético (e não apenas, como uma reivindicação objetiva sobre o domínio ético). Ou seja, o que quero dizer é que essas posições contém embutidas nelas reivindicações morais (reivindicações sobre o que se deve ou não fazer, o que é opcional, etc.) ocultas que pretendem ser objetivamente válidas. Isso acontece não por um “defeito” dessas teses (ainda que, devido ao tipo de tese que são, isso é também um defeito), mas porque é impossível não fazê-lo. Analogamente ao que foi mencionado sobre as idéias de verdade e razão (onde é impossível nos situarmos em um ponto “de fora”, onde seja possível pensar alguma coisa sem pressupor a validade das idéias de verdade e razão), defendo que é impossível falar algo sobre moralidade sem, ao mesmo tempo, fazer um juízo sobre o que é moralmente obrigatório ou moralmente opcional (ainda que o juízo, no final das contas, afirme que tudo é moralmente opcional, como discutiremos na seqüência). Isso porque, também não é possível nos situarmos em um ponto neutro, “de fora” quando falamos sobre que decisão tomar.

O que quis mencionar com a alegação acima é que as visões perspectivistas da ética (relativismo e subjetivismo) sugerem (ao mesmo tempo que negam), ainda que de maneira oculta, um critério objetivo para se decidir questões morais. Quando, por exemplo, o relativismo diz que “a ética é relativa à cada sociedade”, na verdade sub-entende o seguinte: “Quer saber o que deves fazer? Pergunte o que a sociedade em que você está acredita que deve ser feito”.  Note que isso é a sugestão de um critério objetivo para decidir (um critério que não pretende ser, ele mesmo, uma mera construção social). O relativismo moral incorpora, de maneira oculta, as noções de moralmente opcional e moralmente obrigatório. Por exemplo, de acordo com o relativismo moral, é moralmente obrigatório concordar com os valores da sociedade na qual se está. Já quando, por exemplo, o subjetivismo diz “a ética é relativa às crenças e cada um”, o que se quer dizer, na verdade, é “qualquer decisão é igualmente plausível”, ou “Queres saber o que deves fazer? Faça qualquer coisa que quiseres”, ou ainda “Queres saber o que deves fazer? Faça qualquer coisa que achas que deve ser feito”, ou, em outras palavras, que “todas as decisões são moralmente opcionais”. Os dois tipos de visões sugerem, então, critérios objetivos para se responder as questões morais: uma sugere como critério as crenças das diferentes sociedades (relativismo moral); o outro sugere como critério as crenças dos diferentes indivíduos (subjetivismo moral).

Vimos que o relativismo incorpora as noções de moralmente obrigatório e moralmente opcional (tanto é, que torna errado discordar dos valores da sociedade na qual alguém se encontra). Já o subjetivismo afirma que todas as decisões são moralmente opcionais (segundo o subjetivismo, então, não é errado discordar dos valores da sociedade... embora também, segundo essa mesma visão, não seja errado a sociedade fuzilar quem discorda dos valores dela). Temos de perguntar, com relação ao relativismo, o seguinte: “por que sugerir como critério objetivo para saber o que devemos fazer as crenças sobre o que devemos fazer da sociedade em que estamos?”. Por que se basear nisso e não em qualquer outra coisa? Basear-se nas crenças da sociedade para obter a resposta correta sobre ética só faria sentido se os que constróem os valores das sociedades tivessem todo conhecimento moral do mundo. Mas, é exatamente isso que o relativismo nega. Eleger como critério de decisão sobre o que é certo e errado as crenças da sociedade só faria sentido se a sociedade jamais se enganasse (e se existirem verdades morais às quais os que constróem os valores das sociedades, e somente eles, tivessem acesso direto – que, ironicamente, é isso que o relativismo nega que exista). Mas, faz sentido discordar das decisões práticas da sociedade, não faz? Aliás, é essa a conclusão que se seguiria logicamente, se fosse verdade que todos os valores são meras construções sociais, desprovidas de razões a seu favor.

Alguém poderia pensar que isso nos conduziria ao subjetivismo moral. Porém, com relação ao subjetivismo, o mesmo tipo de problema é pior ainda. Faz sentido fazer a mesma pergunta: “por que escolher como critério para descobrir o que devemos fazer as crenças sobre o que cada um acha que devemos fazer?”. Ora, tal critério só estaria correto se todas essas crenças fossem igualmente plausíveis. Mas, o que é pior, isso gera um problema para o subjetivismo: se absolutamente tudo (todas as nossas decisões possíveis) é moralmente opcional, então também é moralmente opcional tratar aquilo que é moralmente opcional como moralmente obrigatório ou tratá-lo como moralmente opcional. Assim, por exemplo, de acordo com o subjetivismo, escolher que cor de camiseta utilizar é moralmente opcional, mas, também colocar uma bomba em alguém ou estuprar também é. Note que, de acordo com o subjetivismo, se alguém tratar a escolha pela cor da camiseta como moralmente obrigatório (digamos, alguém resolve fuzilar todos que não usarem roupa lilás), então que isso também é moralmente opcional e a pessoa não comete nada de mal ao fazer isso. Então, se também é moralmente opcional afirmar que algumas coisas são moralmente opcionais e outras moralmente obrigatórias, que sentido tem em se dizer que tudo é moralmente opcional? O subjetivista teria de dizer que aqueles que negam que nem tudo é moralmente opcional estão igualmente certos. O subjetivista teria de dizer que aqueles que afirmam que “é falso que é tudo muito subjetivo em ética” estão, com relação às decisões morais que tomam, tão certos quanto os que aceitam o subjetivismo. Assim, na melhor das hipóteses, o subjetivismo é uma posição “nula”, que não oferece nenhuma razão a seu favor. Isso porque a idéia de algo moralmente opcional só faz sentido em comparação ao moralmente obrigatório. Dizer que fazer x é moralmente opcional automaticamente implica em dizer que qualquer agente têm obrigação moral de permitir que se faça x e de não obrigar a se fazer x. É por isso que não tem sentido prático afirmar que “tudo é moralmente opcional”.

O subjetivista poderia objetar, nesse ponto, que defende que todas as decisões morais são igualmente plausíveis justamente por não haver um critério objetivo que possa nos dizer quais são melhores que quais. É sobre esses critérios que vou passar a falar agora. Comecemos por notar que o subjetivismo elege como critério para cada um descobrir o que deve fazer as próprias crenças de cada um sobre o que deve-se fazer. Há alguma coisa muito errada nisso tudo. E o erro é que o subjetivismo não leva em conta as razões pelas quais as pessoas acreditam que devem fazer algumas coisas, que não devem fazer outras, que outras são moralmente opcionais, etc (não faz sentido que a razão seja a própria crença da pessoa, pois, dessa maneira, não haveria motivo para a pessoa possuir tal crença). O subjetivismo não leva em conta, por exemplo, a diferença básica que faz com que escolher qual cor de roupa vestir seja igualmente opcional e que seja um dever não estuprar: não existirem razões para se preferir esta ou aquela cor, mas o sofrimento e outros danos para a vítima serem uma boa razão para se pensar que estuprar é um mal. Nesse ponto, ressurgiria a objeção perspectivista, da mesma maneira que surgiu com relação aos princípios básicos da razão. Ou seja, alegaria-se que, mesmo que fôssemos oferecer razões para sustentar uma conclusão moral, teríamos de apelar a um princípio moral mais básico e menos controverso. Só que, se alguém perguntasse o que sustenta esse princípio, teríamos de justificá-lo com base em outro ainda mais básico e menos controverso, e assim por diante. Segundo a objeção perspectivista, se fizéssemos essa pergunta, no final das contas descobriríamos que o princípio básico que sustenta todas as outras conclusões é um mero sentimento de aprovação diante de algumas coisas e de desaprovação diante de outras. Esse sentimento, segundo essa perspectiva, não estaria aberto à avaliação racional. E, já que existem sentimentos básicos de fundação moral conflitantes, não há como dizer qual deles está correto (e, mesmo que houvesse concordância quanto a esse sentimento, não haveria como dizer que alguém deve ter esse sentimento, para quem não o tivesse); assim conclui o argumento perspectivista. Penso que esse argumento, que tem origem no pensamento do filósofo David Hume, é o melhor argumento em defesa do perspectivismo. Contudo,  mesmo esse argumento tem sérios problemas. O maior deles é inverter a relação das coisas: não é que as pessoas têm certos sentimentos aleatórios de aprovação ou desaprovação moral diante de algumas coisas e depois consideram essas coisas moralmente certas ou erradas, respectivamente; mas, ao invés, que temos os sentimentos morais que temos diante de determinadas coisas porque já fizemos anteriormente um julgamento moral sobre elas, com base em outras razões que são independentes dos sentimentos. Ou seja, temos os sentimentos morais que temos porque concluímos que algumas são justificáveis (possuem boas razões a seu favor) e outras não. E, o que quero apontar na seqüência, é que essas razões não dependem dos sentimentos dos agentes. Embora seja verdadeiro que, como toda justificação, a justificação moral precisa ter início em princípios que não podem ser justificados com base em outros (porque eles são os mais básicos possíveis), nem por isso deve-se pensar que esses princípios são mera particularidade de quem os professa, como um gosto pessoal por uma determinada cor, por exemplo. Devemos aceitar tais princípios como racionais simplesmente por não haver nenhuma boa razão para duvidar de sua validade, como pretendo mostrar a seguir.

Gostaria de começar mostrando como é que geralmente se raciocina sobre questões morais. Essa forma de raciocínio está implícita mesmo quando pensamos intuitivamente (de maneira não formalizada) sobre uma questão moral. Supondo que alguém defenda a seguinte conclusão moral: “Comer carne é errado”. O argumento que sustenta essa conclusão poderia ser algo como o seguinte: (1) É errado causar morte e sofrimento desnecessariamente (premissa de valor); (2) Comer carne causa morte e sofrimento desnecessariamente (premissa factual); (3) Logo, comer carne é errado. Como os raciocínios morais são aplicações de princípios morais (a premissa de valor, no caso) a casos reais, o raciocínio moral sempre dependerá, em algum grau, de constatações sobre os fatos (a premissa factual). Assim, mesmo que fosse verdade que todo princípio de valor fosse igualmente válido (e é isso que pretendo negar na seqüência), ainda assim haveriam outras duas maneiras de alguém cometer um erro moral (em termos objetivos): ou alguém faz uma análise factual ruim (ou seja, a premissa factual na qual se baseia é falsa), ou, mesmo que se faça uma boa análise factual, ainda assim alguém poderia cometer um erro de lógica na hora de derivar a conclusão. Um exemplo do primeiro tipo de erro (factual), seria o seguinte argumento: (1) É errado causar dano a seres sencientes (premissa de valor); (2) Tijolos são seres sencientes; (3) Logo, é errado quebrar tijolos. Nesse caso, a conclusão é falsa porque a segunda premissa (factual) é falsa, e não devido ao princípio de valor que parte (como defenderei mais adiante, esse princípio está correto), e nem devido ao tipo de inferência que se fez (se as duas premissas fossem verdadeiras, então a conclusão seria verdadeira). Já um exemplo do segundo tipo de erro (de lógica), seria o seguinte argumento: (1) É errado causar dano a seres vivos; (2) Animais e plantas estão vivos; (3) Logo, é correto comer animais e plantas. Nesse caso, o erro é de lógica porque, mesmo que, com certeza, as duas primeiras premissas fossem verdadeiras (tanto a de valor quanto a factual), elas não suportam a conclusão (na verdade, as premissas sugerem o contrário da conclusão, pois a conclusão lógica seria a de que, então, é errado, e não, correto, comer esses seres).

Defenderei agora que também é possível cometermos um erro na primeira premissa (premissa de valor moral). Para entender como isso é possível, é preciso entender outras duas características importantes do raciocínio moral: coerência e relevância. Falarei primeiro da coerência, embora ela seja menos importante, e ela sozinha não consiga mostrar se há erro ou não com a premissa de valor (e nem com cada decisão específica). O que me refiro por coerência, em termos de pensamento moral, é que um agente siga a exigência de tratar casos relevantemente similares de maneira similar. A idéia é que um agente aplique um princípio moral não apenas a um caso específico (afinal de contas, se ele é um princípio, não ajudaria muito se só servisse para um caso específico), mas, a vários casos que mantenham entre si, as mesmas características que o princípio indica que sejam moralmente relevantes. Assim, uma maneira de errar (objetivamente!) em ética é por tratar de maneira diferente casos que são similares em tudo o que for relevante para saber como devemos tratá-los, ou vice-versa (tratar de maneira similar casos que possuem diferenças moralmente relevantes). Minha ressalva quanto à importância da exigência de coerência, em termos de descobrir qual a decisão correta, é que, se tal exigência sozinha tivesse esse poder, então a moralidade se trataria apenas de escolher aleatoriamente um princípio qualquer e, desde que se julgasse os outros casos coerentemente de acordo com ele (de acordo com o que ele diz que é relevante), então estaria garantido que as decisões estariam todas justificadas. Mas, a coisa não é assim. Faz sentido criticar alguém por aplicar um critério, mesmo que a aplicação seja coerente. Faz sentido porque o critério mesmo pode ser imbecil (pode ser basear numa característica irrelevante para o que está em jogo, pensando ser relevante). Só faz sentido cobrar coerência a um bom princípio. A exigência de coerência não possui o poder de mostrar o que é moralmente relevante e o que não é. Então, ela sozinha não consegue avaliar um princípio de valor (embora seja importante no sentido de exigir que se aplique coerentemente um bom critério).

Por exemplo, supondo que eu sou um médico e preciso escolher qual dos meus pacientes deve receber prioridade no atendimento. Supondo que o critério que eu escolha para construir o princípio moral que vou seguir é esse: pacientes com exatamente seis letras no primeiro nome recebem atendimento prioritário; com mais de seis letras recebem atendimento depois, e com menos de seis letras são largados para morrer. Suponha que eu seguisse coerentemente esse critério: que realmente desse prioridade a todo e qualquer paciente com exatamente seis letras no nome, e realmente atendesse depois os que têm mais letras no nome, e que realmente deixasse para morrer todos os que têm menos de seis letras. Minha decisão foi moralmente correta só porque foi coerente com o princípio que adotei para guiar a decisão? Não, exatamente porque escolhi um mau critério. E, é possível explicar o motivo pelo qual esse é um critério ruim: ele se baseia numa característica (o número de letras no nome) que é irrelevante para o dilema moral em questão. “Como saber o que conta como uma característica moralmente relevante e o que não conta?”, perguntaria o perspectivista. A resposta depende da seguinte pergunta: “o que há naquela situação específica que faz com que ela seja um problema moral?”. Na questão da prioridade no atendimento, por exemplo, poderíamos listar o dano causado pela morte, pelo sofrimento, a falta de recursos para atender a todos ao mesmo tempo, a maior ou menor vulnerabilidade de uns ou de outros, etc. Com certeza, o número de letras no nome não seria uma dessas características que tornam aquela questão um dilema moral. Portanto, alguém que seguisse um princípio moral baseado numa característica assim teria escolhido o princípio errado, objetivamente errado. Note que eu até poderia acertar, por sorte, em algum dos casos, mesmo tendo escolhido um critério imbecil (por exemplo, supondo que alguém que tivesse exatamente seis letras no nome fosse, por coincidência, também alguém cuja vulnerabilidade fosse maior e que necessitasse dos medicamentos antes de qualquer um dos outros, para poder sobreviver). 

Alguém poderia, nesse ponto, retrucar que tal raciocínio é de pouca importância prática porque quase ninguém segue um princípio baseado no número das letras do nome das pessoas atingidas pela sua decisão. Contudo, como pretendo mostrar na seqüência, a grande maioria das pessoas segue princípios morais, senão ainda piores, pelo menos igualmente ridículos, baseados nas características mais moralmente irrelevantes possíveis. A conclusão do raciocínio acima é que só faz sentido ser coerente com um princípio que se baseia numa característica moralmente relevante. Coerência por coerência não prova nem que em algum dos casos se tirou a conclusão correta. A insistência do apelo à coerência, por parte de alguns filósofos, talvez tenha levado algumas pessoas a pensarem que, em ética, tudo se resume à coerência. Quando se fala, por exemplo, “se você acha que é certo matar animais porque eles não são racionais, então tem que achar certo matar bebês, porque também não são racionais”, o que se pretende é mostrar ao interlocutor que, já que a falta de racionalidade dos bebês não torna certo matá-los, a falta de racionalidade nos animais não humanos não pode tornar certo matar estes. Não se quer dizer que, se a pessoa resolver sair assassinando animais não humanos e também bebês humanos porque eles não são racionais, então que ela está moralmente correta em todos esses casos, só porque foi coerente. Pelo contrário, como pretendo mostrar, se ela fizer isso, ela erra em todos os casos. Pensar que a moralidade se resume à coerência é esquecer do principal: só faz sentido ser coerente com um bom critério (ou seja, um que se baseie numa característica relevante). Da mesma maneira, quando se pergunta “mas, aceitarias que fizessem isso contigo?”, o que se quer é levar o interlocutor a pensar que, se quando ele é a vítima ele reconhece que fazer determinada coisa é errada (independentemente de se quem o faz é coerente ou não), e não há nenhuma característica moralmente relevante que o distinga de outras vítimas, então, que ele precisa reconhecer que é errado fazer a mesma coisa com os outros. O que não se quer dizer é que, se a pessoa em questão aceitar que façam alguma atrocidade com ela, então que ela está moralmente correta ao fazer atrocidades com os outros.  A coerência é um critério secundário, que só faz sentido à luz de princípios que se baseiem em características moralmente relevantes. Mesmo assim, atentando para a coerência é possível atentar para outra forma possível de se errar moralmente: tratar de maneira diferente dois ou mais casos que são similares em tudo aquilo que for moralmente relevante (ou, tratar de maneira similar dois ou mais casos que apresentam diferenças moralmente relevantes). Só que, isso tudo só faz sentido à luz da exigência de relevância.

Nesse ponto, alguém poderia perguntar: “por que você defende que as exigências de relevância e coerência geram razões que todos deveriam aceitar, e não são um mero sentimento seu de aprovação em relação a essas exigências?”. A resposta é que é irracional duvidar da validade desses critérios, e que isso não depende de sentimento nenhum (apenas de entendimento). Por exemplo, não faria sentido dizer “esses dois casos são similares em tudo o que for relevante para saber como devemos tratá-los, mas, mesmo assim, penso que devemos tratá-lo de maneira diferente um do outro”. Muito menos faria sentido dizer o seguinte: “Para descobrir como devemos tratar um caso, devemos pegar apenas o que for irrelevante para saber como devemos tratá-lo, e descartar tudo o que for de relevante para saber como devemos tratá-lo”. É por esse motivo que rejeitar esses critérios é ser irracional. Então, é falso que não existem razões (critérios que todos deveriam aceitar, sob pena de irracionalidade, independentemente de sentimentos), quando a questão é a moralidade. Note que dizer que relevância e coerência são essenciais ao bom raciocínio moral não quer dizer que eu sei exatamente quais são as características moralmente relevantes de cada caso e o que tornam dois casos relevantemente similares. Se alguém, por exemplo, objetar a minha análise anterior, alegando que levei em conta uma característica que não deveria (ou que faltou alguma que deveria ter levado em conta), não está a rejeitar a exigência de relevância: pelo contrário, está a dizer que me baseei em algo irrelevante (ou, que havia algo de relevante que não levei em conta). Tais críticas só fazem sentido se a exigência de relevância fizer. Portanto, não podem ser críticas contra a exigência de relevância.

Alguém poderia afirmar, mesmo aceitando a validade as exigências de relevância e coerência, que elas não nos dizem muita coisa sobre a moralidade, pois não oferecem nenhuma resposta “pronta” para nenhuma questão moral específica. É verdade que elas não oferecerão respostas prontas, pois são apenas o pilar inicial do raciocínio moral (o trabalho duro vêm em identificar o que há de relevante em cada situação), mas, é falso que elas não nos dizem muita coisa sobre a moralidade (pois, assim como se parte dos princípios básicos da matemática para desenvolver cálculos mais complexos, o mesmo acontece com a ética). Falarei agora de um segundo passo do raciocínio moral, que segue das exigências de relevância e coerência. Falei anteriormente da generalidade das razões. Quando se fala em razões no âmbito moral, essa generalidade tem formas específicas. As duas formas centrais dizem respeito à generalidade quanto aos agentes (os que tomam as decisões morais), e quanto aos pacientes (os que recebem o efeito da decisão). Note que essas duas categorias dizem respeito a condições, e não a indivíduos específicos: um mesmo indivíduo pode estar na condição de agente e de paciente, em diferentes momentos, e até ao mesmo tempo (como, por exemplo, quando é atingido por sua própria decisão). Quanto aos agentes, a generalidade das razões irá nos mostrar que, se eu tenho motivos para reconhecer que determinada decisão é moralmente obrigatória (ou, que é moralmente opcional), esses motivos não dependem de ser eu quem está pensando sobre elas (dependem, ao invés, de características moralmente relevantes da situação). Isso mostra que, se for moralmente obrigatório (ou moralmente opcional) eu fazer (ou deixar de fazer) determinada coisa, o é não apenas quando for eu que esteja tomando a decisão, mas qualquer agente. É isso que se quer dizer com generalidade: não se está a falar de justificativas para indivíduos específicos. Daí ser um erro o pensamento muito comum, de que a moralidade é uma coisa pessoal. A única maneira de justificar que um determinado agente não precisa cumprir um determinado dever moral, é dizer que característica moralmente relevante há no seu caso que o torna uma exceção (que faz dele um caso relevantemente diferente). Mas, note que essa justificativa também precisa ser geral: se a característica x for uma boa razão para dispensar A de cumprir determinado dever, é igualmente uma boa razão para dispensar qualquer outro agente que apresente a característica x (e não apenas A). Se, por sua vez, alguém alega que o agente B, apesar de apresentar a característica x, contudo, deveria cumprir o dever em questão, porque apresenta a característica y, então isso implica que (se o raciocínio estiver correto, ou seja, se a característica y realmente tiver o poder de anular x), não apenas B, mas qualquer outro agente que apresente as características x e y está dispensado de cumprir tal dever. A principal característica de uma razão é sua generalidade. Toda vez que se aponta uma exceção a uma regra, têm-se de apoiar em outra regra, também geral, que explique a exceção. Um erro muito comum é se pensar que o fato de um agente não acreditar que possui determinado dever o dispensa do cumprimento desse dever. Pensar assim é um erro porque qualquer razão que explique a existência de um dever não depende das crenças dos agentes para existir (e sim, de características da situação): como vimos, a verdade não depende da existência de crenças.

Já quanto aos pacientes da decisão, a generalidade das razões possui uma aplicação análoga. Se, por exemplo, é a característica x que torna errado matar o paciente A, então é errado matar todo e qualquer paciente que apresentar a característica x. Novamente, se apesar do paciente B apresentar a característica x, não for errado matá-lo porque ele apresenta também a característica y, então isso implica que não é errado matar todo e qualquer paciente que apresentar as características x e y, e assim por diante. Contudo, observe um ponto importante: nada nesse processo garante que escolheremos de certeza as características moralmente relevantes. Para garantir que a escolha esteja correta, não há outro remédio a não ser verificar sempre e sempre os mesmos raciocínios. Nesse ponto, os céticos morais (da maneira como uso o termo, me refiro àquelas pessoas que admitem que há verdade em ética, mas desconfiam do poder da razão em descobrir tais verdades), têm razão em apontar que o raciocínio ético não oferecerá demonstrações fechadas (imunes a críticas e novas revisões). Contudo, entre o extremo de se ter um método de raciocínio impecável e o outro de se descartar completamente a razão em um âmbito da vida, é melhor adotar um método de raciocínio qualquer, ainda que não seja perfeito. O raciocínio ético, mesmo da maneira que está desenvolvido até agora, permite sempre aprimoramento em seu próprio método. O raciocínio ético, embora não dê respostas fechadas, coloca o ônus da prova sobre o perspectivismo e ceticismo moral, em provar que tudo o que sai desse raciocínio é mera ilusão. E, quanto a não dar respostas imunes à novas críticas e revisões, o raciocínio ético não é exceção a outros tipos de raciocínio; não é, por isso, menos objetivo.

Essa moldura inicial do raciocínio ético pode parecer, à primeira vista, como tendo pouco poder de nos ajudar nos casos práticos. Mas, tal percepção inicial é ilusória. Na verdade, tal moldura é a única ferramenta disponível atualmente que pode nos ajudar a descobrir qual a decisão correta nos casos práticos (descobrir a verdade em ética). Por exemplo, ela já consegue mostrar por que o egoísmo é injustificável, e, tendo mostrado isso, podemos deduzir muitas outras implicações. Por “egoísmo” me refiro à teoria moral (ou seja, uma que visa dizer que decisões são justificáveis) e a prática que é conseqüência dela, embasada no seguinte pensamento: a possibilidade de diminuição ou aumento do meu bem-estar (necessidades, interesses, preferências, sofrimento, prazer, etc.) me oferecem uma razão para agir, fomentando o bem-estar, ao mesmo tempo em que o bem-estar de outros indivíduos (suas necessidades, interesses, preferências, sofrimento, prazer, etc.) não me oferecem (a menos que isso seja vantajoso para mim). Na seqüência, explicarei como a moldura inicial que expus do raciocínio ético consegue mostrar que o egoísmo é injustificável.

9 comentários:

  1. Oi Luciano.

    Esses textos estão sendo bem úteis para eu rever alguns conceitos meio nebulosos.

    Tenho uma dúvida.
    Quanto à falácia naturalista(derivar um "deve" a partir de um "é"), nós não fazemos isso constantemente? A ciência é capaz de revelar fatos objetivos como esterilizar equipamentos cirúrgicos traz benefícios, comprovar a senciência dos animais, apedrejar mulheres não beneficia a sociedade. A partir desses fatos("é") nós deduzimos uma porção de "deves", portanto onde residiria a falácia naturalista nesses casos?
    Existe um exemplo bem claro onde não se obtêm um "deve" de um "é" que é o caso de animais carnívoros se alimentando e o humano tentando se justificar na predação selvagem. Me parece que em alguns casos a guilhotina funciona e em outros não, poderia esclarecer esse ponto?

    Obrigado.

    ResponderExcluir
  2. Oi Cney!

    A falácia naturalista acontece apenas quando se deriva o valor do fato. Em todo juízo moral, contudo, aplicamos um juízo de valor a fatos empíricos.

    Pegando o exemplo que você deu, assim seria falácia naturalista:

    (1) Esterilizar equipamentos cirúrgicos traz benefícios
    (2) Logo, devemos buscar benefícios e evitar malefícios.

    Nesse caso, isso é uma falácia porque, embora a premissa 1 seja verdadeira, pensa-se que é o fato físico que sustenta a conclusão que é um "deve".

    Assim não é falácia naturalista:

    (1) Devemos fazer o que trouxer benefícios
    (2) Esterilizar equipamentos cirúrgicos traz benefícios
    (3) Logo, devemos esterilizar equipamentos cirúrgicos.

    Não é falácia naturalista porque o que sustenta a conclusão que é um "deve" é a premissa de valor (a premissa número 1), e não a premissa número 2.

    Assim também não é falácia naturalista:

    (1) Esterilizar equipamentos cirúrgicos traz benefícios
    (2) Logo, devemos esterilizar equipamentos cirúrgicos.

    O que acontece nesse caso é que a premissa de valor está oculta, mas é ela que dá sustentação à conclusão.

    Assim, isso aqui também não é falácia naturalista:

    (1) O sofrimento é um mal (premissa de valor)
    (2) Predação causa sofrimento (premissa descritiva)
    (3) Logo, a predação é um mal (conclusão de valor)

    ou, alternativamente:

    (1) Devemos tentar minimizar danos, independentemente da fonte causadora dos danos
    (2) Os animais silvestres padecem de danos causados naturalmente (predação, inanicação, parasitismo, etc.)
    (3) Logo, devemos tentar minimizar os danos naturais sobre os animais silvestres.

    Não há falácia naturalista nesse caso, porque o que sustenta a conclusão que é um "deve" é a premissa número 1, que é um valor. Esse valor não surge da premissa descritiva. Ao invés, é a premissa descritiva que é analisada à luz do valor, e a conclusão prática é sustentada pela premissa de valor, não pela premissa descritiva.

    Agora, assim com certeza é falácia naturalista:

    (1) No mundo, o mais forte sempre subjulgou o mais fraco
    (2) Logo, está justificado o mais forte subjulgar o mais fraco.

    Isso é uma falácia naturalista porque a premissa da qual se parte para tirar a conclusão é uma mera descrição. Alguém teria de provar, de outra forma, para esse argumento fazer sentido, que é certo o mais forte subjulgar o mais fraco. Dizer que isso sempre aconteceu não dá essa prova (isso é relatar um fato).

    Abraço!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Luciano, muito obrigado por responder.
      Vou ler com mais calma hoje.

      Você acredita que fatos morais são empiricamente detectáveis pela ciência?
      fonte: goo.gl/g7P3b

      Abraço.

      Excluir
  3. Olá, Cney

    Acho que a visão de que a objetividade da ética depende da existência de fatos morais empíricos resulta de uma confusão. Como você já sabe, defendo que a ética é objetiva (ou seja, que existem coisas que todo mundo deve deixar de fazer, coisas que todo mundo deve fazer, coisas que é opcional fazer, etc.), mas não acredito que existam "fatos" morais.

    A idéia de que, para haver objetividade na ética, é preciso a existência de fatos morais vêm da idéia de que, para haver objetividade em uma área do pensamento, é necessário qu hajam fatos equivalentes sustentando essa objetividade. Essa visão toma como modelo a objetividade das ciências empíricas: testamos se uma afirmação científica é verdadeira ou falsa procurando por um fato físico equivalente no universo. Por exemplo, se digo que existem elefantes com asas, eu poderia provar que isso é verdadeiro se lhe mostrasse um elefante com asas. Contudo, pensar que a objetividade em outras áreas se dá da mesma maneira não só é um erro, como é auto-refutante.

    Na primeira parte desse artigo, expliquei porque essa visão (o factualismo) é auto-refutante: se tudo o que é verdadeiro precisa de um fato físico equivalente que torne tal coisa objetivamente verdadeira (tese do factualismo), onde está o fato físico que comprova a tese do factualismo? Obviamente, ele não existe, porque o factualismo não é uma tese empírica, é uma tese filosófica.

    A objetividade da matemática, por exemplo, não é dada por fatos. Não existe um fato físico que diga que 2+2 é 4. Você pode até dizer que, se você juntar duas coisas (tijolos, por exemplo) mais duas coisas dará quatro coisas. Mas, um raciocínio empírico desse tipo nunca poderá provar que 2+2 dá sempre quatro (prova apenas que, naquela vez, deu quatro). O que prova que 2+2 dá sempre 4 é a própria definição do conceito de número e da idéia de adição (que são conceitos objetivos que não dependem da existência de fatos físicos para serem objetivos).




    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Resposta ao Cney parte 2:

      A mesma coisa se dá com a ética. Não existem fatos morais que digam que o estupro é errado, mas nem por isso o estupro deixa de ser errado, objetivamente errado. A gente sabe que o estupro é errado devido às razões (não existem razões para se pensar que o estupro é algo bom, justificado), não aos fatos. Essas razões morais não descrevem sobre como o mundo é (fatos); ao invés, são fundadas em valores sobre como as coisas deveriam ser (o que é um bem, o que é um mal, etc.). A razão moral mais básica é a de que danos são um mal e benefícios são um bem. Note que assumir isso sobre danos/benefícios não é descrever um fato (não é como dizer "ele está sofrendo", uma descrição de fato), é fazer um juízo de valor (os termos "bem" e "mal" são adjetivos). Note que, ao dizer que fazer isso é fazer juízo de valor não implica que o juízo seja subjetivo (ou seja, que todo juízo desse tipo seria igualmente plausível). Pelo contrário, qualquer um que já experimentou, por exemplo, um sofrimento extremo, sabe que ele é um mal
      intrínseco (só poderia ser um bem se conduzisse a outra coisa de valor positivo). Enfim, além desse juízo básico sobre o prejuízo ser um mal e benefício ser um bem, outras coisas (que dependem da lógica, e não dos fatos físicos) garantiriam a objetividade da ética (como vimos, a regra de tratar casos relevantemente similares de maneira similar, a regra de pegar apenas o que for relevante para responder a questão, etc.). Por exemplo, sabemos que o especismo é objetivamente errado porque a espécie de alguém não é relevante para se saber se alguém deve ser respeitado ou não (isso porque, alguém precisa de respeito porque é capaz de sofrer um mal, e a
      espécie de alguém, se esse alguém é senciente, não influencia na sua capacidade de sofrer o mal).

      Se existisse uma esfera de fatos éticos empíricos, isso não garantiria objetividade nenhuma para a ética. Alguém poderia ainda perguntar, depois de saber que existe um fato no universo dizendo que estuprar é errado: "sim, mas, por que não devo estuprar?". Uma resposta plausível a essa pergunta só pode ser dada com uma razão moral (uma razão que baseia-se num juízo de valor, por exemplo, que sofrer é um mal - o que ninguém duvida quando se trata do próprio sofrimento pelo menos), não com fatos descritivos. Fatos podem garantir objetividade num domínio descritivo, mas eles não conseguiriam isso num domínio essencialmente normativo (apenas razões podem mostrar que a desigualdade e a injustiça são um mal, por exemplo). Quando alguém pergunta "por que devo fazer isso?", nenhuma descrição sobre como o mundo é poderia oferecer uma resposta; apenas razões
      dizendo como o mundo deve ser.

      Então, respondendo à sua pergunta, não acredito que a ciência possa descobrir fatos morais porque não acredito que existam fatos morais. Isso não quer dizer que a ética não seja objetiva. O que garante a objetividade da ética são as razões. Sabemos que não devemos fazer certas coisas porque existem boas razões para não fazê-las (por exemplo, o mal que a vítima sofre é uma boa razão para não praticar o especismo, isso porque sofrimento e danos são coisas ruins, objetivamente ruins).

      Excluir
    2. Resposta ao Cney parte 3:

      Isso não quer dizer que, na ética, não precisamos da ciência. Pelo contrário, precisamos da ciência para aplicar corretamente os princípios morais aos casos práticos. Por exemplo:

      (1) Não se deve causar dano a seres sencientes
      (2) Este ser é senciente
      (3) Logo, não se deve causar dano a esse ser

      Dependemos da ciência para descobrir se a premissa número 2 é verdadeira ou falsa.

      Mas, veja, a ciência não nos pode fornecer resposta alguma para a verdade/falsidade da premissa número 1 (já que ela é uma premissa valorativa, e não descritiva; e a função da ciência é descrever como o mundo é).

      Mas, independentemente disso, sabemos que a premissa número 1 é verdadeira porque todos sabemos
      que danos são coisas ruins. Não é necessário ciência alguma para se saber isso (aliás, a ciência
      não teria como dar a resposta para isso, já que a ciência descreve, e afirmar que danos são coisas ruins é fazer juízo de valor). Como somos seres sencientes, e, por isso, fazemos juízos de valor (valorizamos algumas coisas e desvalorizamos outras), então fica fácil entender por que danos e prejuízos são coisas ruins.

      Então, não há nenhuma dependência das descobertas da ciência para haver objetividade em ética (aliás, as descobertas da ciência não tem nada a ver com isso).

      Abraço e obrigado pela questão!

      Excluir
  4. Resposta ao Cney, parte 4:

    Agora que vi o link do texto que você colocou. Tem um deslize na argumentação geral que visa dizer que é a ciência que pode dar respostas ao que devemos ou não fazer. Nesse exemplo, “Se você deseja que seu carro funcione bem, então você deve trocar o óleo regularmente.”, o imperativo é hipotético. Ou seja, o cara só vai ter razões para trocar o óleo se tiver o desejo que o carro funcione bem. Mas, a ciência não conseguiria dar uma resposta dizendo o que alguém deve querer (ela só consegue dizer o que alguém deve fazer para realizar um desejo). Ou seja, isso é o que chamamos de dever instrumental ("se queres isso, então faça isso", ou seja, "se queres tal fim, use tal meio").

    Mas, na ética, o que queremos saber é essencialmente o que desejar, que fins buscar, etc. A ciência não tem poder de responder isso. Apenas investigar o que é um bem e o que é um mal tem poder de dar essa resposta. Concordo com o autor do texto de que a objetividade da ética não depende da religião, mas discordo dele (pelas razões que expus) quando ele diz que são descrições empíricas que garantem essa objetividade.

    Enfim, penso que sim, existe uma lacuna entre o que é e o que deve ser, e a falácia naturalista é mesmo uma falácia.

    Escrevi mais detalhadamente sobre esse assunto nesse artigo: http://www.anda.jor.br/04/08/2011/sobre-a-importancia-da-razao-na-etica

    Abraço!

    ResponderExcluir
  5. Obrigado por dedicar seu tempo às minhas questões.

    Estou lendo "sobre a importancia da razão na ética", em relação a alguns meses atrás, agora me sinto mais capacitado para entender o texto.

    Muito interessante a idéia de que verdade e razão são inescapáveis, esse sempre é um fosso que podemos nos deparar quando alguém quer fugir de algo que o egoísmo "prescreve", o tipo de "argumento" que não se levanta quando seu interesse está sendo aprovado.

    Abraço.

    ResponderExcluir
  6. Oi Cney!

    Eu é que agradeço pelas questões!

    Publiquei ontem a parte 3 do "Igualdade senciente", e entro um pouco nas questões que você colocou. Acho que lá nesse novo post está mais claro do que do "sobre a importância da razão na ética". Se puder, dê uma lida depois e me diga o que achou.

    Abração!

    ResponderExcluir