sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

IGUALDADE SENCIENTE - Parte 3 (final)

VERDADE, RAZÃO, JUSTIFICATIVA EM ÉTICA E OS SERES SENCIENTES

Luciano Carlos Cunha

Parte 3 - Por que rejeitar o egoísmo; por que isso implica no dever de igual consideração para os seres sencientes e algumas implicações práticas.

Comecemos por lembrar a objeção cética que aponta para a regressão de princípios que visam sustentar uma conclusão moral: “uma razão sustenta uma conclusão, mas, se formos perguntar o que sustenta essa razão, e o que sustenta a outra mais básica que a dá sustentação, uma hora chegaremos a um sentimento que não está aberto à avaliação racional”. Por esse motivo, conclui o cético, alguém que não se sente motivado a levar os outros em consideração está justificado a ser um egoísta. O que quero apontar primeiramente é que, quando se trata do nosso próprio bem, se dá a mesma coisa, em termos de regressão de razões até chegarmos em um motivo que não pode ser justificado com base em outro. Por exemplo, supondo que alguém me pergunte por que eu coloquei o despertador para tocar às seis horas, e eu responda que era porque precisava, antes de ir trabalhar, passar numa farmácia. Se me perguntassem por que eu queria ir na farmácia, eu responderia que queria comprar um remédio. Se me perguntassem por que eu queria comprar um remédio, eu responderia que era para ficar curado de uma doença. Se me perguntassem por que eu queria ficar curado de uma doença, eu responderia que não queria sofrer e queria desfrutar felicidade. Se me perguntassem por que eu não queria sofrer e por que queria desfrutar felicidade, a resposta seria que sofrer é algo ruim e desfrutar felicidade é algo bom. Nesse ponto, a justificação teria que terminar. O sofrimento ser algo ruim e a felicidade ser algo bom não são justificados com base em outra coisa; são intrinsecamente (explicarei essa noção mais detalhadamente adiante) ruim e bom, respectivamente. Note que, ao chegar nesse ponto inicial de justificação, há uma sutil mas importante modificação na forma da justificação: o apelo não se dá mais ao “por que eu quero x”, mas sim, a algo que  é ruim ou é bom, e que é por isso, (e não o contrário) que eu quero evitar ou buscar certas coisas. Quero evitar o sofrimento por que ele é ruim (isso é um julgamento de valor, não uma mera descrição de um fato); quero buscar o prazer porque ele é bom (isso é um julgamento de valor, não uma mera descrição de um fato), e não, que o sofrimento e o prazer se tornam, respectivamente, ruins e bons, porque eu quero evitá-lo e buscá-lo, respectivamente. Isso seria deixar tudo ao contrário. Por isso afirmei anteriormente que o desejo surge depois de um julgamento de valor.

Então, quando se trata de buscarmos nosso próprio bem individualmente também temos de nos basear num princípio baseado em um valor (o de que o sofrimento é intrinsecamente ruim e o prazer intrinsecamente bom) que não pode ser justificado com base em outro. Contudo, note um detalhe importante: ele não pode ser justificado com base em outro, mas isso não indica que aceitá-lo ou não seja uma questão de gosto pessoal e que escolhê-lo ou não seja uma questão não aberta à avaliação racional. Por exemplo, supondo que alguém fizesse exatamente o contrário: que buscasse tudo aquilo que lhe causa sofrimento e evitasse tudo aquilo que lhe causa felicidade (por pensar que o sofrimento é bom e a felicidade é ruim): ele deceparia seus próprios membros e atearia fogo no próprio corpo, por exemplo. Faria todo sentido dizer que alguém assim é um tolo, um irracional (e a irracionalidade aqui consiste em não perceber que é o sofrimento que é ruim e a felicidade que é boa, e não o contrário). Nesse ponto, poderia surgir uma objeção: mas, às vezes é racional escolher passar por um sofrimento, e às vezes é irracional buscar determinada satisfação. Por exemplo, supondo que eu tivesse que fazer uma operação extremamente dolorida, mas que fosse a única forma de salvar minha vida: após a dolorida recuperação, eu ainda teria muito a desfrutar pela frente. Seria racional escolher esse sofrimento. E, por exemplo, supondo que sei que, apesar do meu gosto por determinada comida, ela me causa problemas no fígado, seria irracional se eu buscasse a satisfação de comê-la (isso porque me impediria o desfrute no futuro e causaria sofrimento). Embora o que esses exemplos apontem esteja correto (no primeiro caso, é racional passar por tal sofrimento, e no segundo, é irracional buscar tal satisfação), eles não provam que o sofrimento possa ser algo bom em si e nem que a felicidade possa ser algo ruim em si. Pelo contrário, esses argumentos só fazem sentido se o sofrimento for algo ruim e a felicidade for algo bom. Note que o que se quer, nos dois exemplos, é evitar um sofrimento ainda maior e proporcionar oportunidade para a felicidade. Então, esses exemplos partem de um quadro geral de sofrimento e felicidade na vida de um indivíduo, e afirmam, corretamente, que não vale a pena provocar um sofrimento maior e impedir desfrute maior por causa de um desfrute pequeno, e que vale a pena passar um sofrimento menor com vistas a evitar o maior e a proporcionar desfrute. Tais exemplos são formas do que chamamos de raciocínio prudencial (em oposição ao raciocínio que visa apenas fomentar interesses momentâneos, sem se preocupar com o quadro geral de sofrimento/felicidade da própria pessoa ao longo do tempo).

Foi por esse motivo que caracterizei o sofrimento como intrinsecamente ruim e a felicidade como intrinsecamente boa. O que eu quis dizer é que o sofrimento não pode ser bom nele mesmo; a única maneira do sofrimento ser bom (em termos de raciocínio sobre o bem individual) é que seja um instrumento para a felicidade (ou alguma outra coisa que também tenha valor intrínseco positivo) ou para impedir um sofrimento ainda maior. A felicidade não pode ser ruim nela mesma; a única maneira dela ser ruim (em termos de raciocínio sobre o bem individual) é que seja um instrumento que impeça uma felicidade maior ou que cause sofrimento maior (ou que cause alguma outra coisa que tenha valor intrínseco negativo). Assim, em termos de raciocínio sobre o bem individual (sem levar em conta o impacto sobre outros indivíduos), o sofrimento só pode ser instrumentalmente bom, não intrinsecamente bom; e a felicidade só pode ser instrumentalmente ruim; e não, intrinsecamente ruim. Note que essas constatações apontam apenas para o valor intrínseco do sofrimento e da felicidade, mas não assumem que essas são as únicas coisas possíveis de serem boas ou ruins em si próprias. A lista fica em aberto, em termos de outras coisas possuírem valor intrínseco negativo ou positivo.

Como isso tudo mostra que o egoísmo é eticamente indefensável? Comecemos por notar que, embora o valor intrínseco negativo do sofrimento e o valor intrínseco positivo da felicidade não possam ser justificados com base em outra coisa mais básica, todos nós aceitamos que tais premissas são verdadeiras quando se trata de buscar o nosso próprio bem. Afinal de contas, não há nenhuma razão para duvidar da validade dessas premissas (na falta dessas razões contrárias, deve-se, então, considerar racional – e não apenas uma preferência aleatória não aberta à avaliação racional - buscar a felicidade e evitar sofrimento). Quando se trata de buscar o nosso próprio bem e evitar o nosso próprio mal, nenhum de nós exige que se ofereça uma justificativa para além dessa. Tais exigências só aparecem quando a questão é levar em consideração o bem dos outros. Nessa hora, a maioria de nós pede por uma justificativa para além de se apontar que o sofrer é algo ruim e que a felicidade é algo bom. Contudo, isso mostra que esse pedido é uma racionalização (ou seja, ninguém acredita sinceramente nele). Se acreditássemos, teríamos iguais dúvidas quando se trata de fomentar o nosso próprio bem, e, então, ninguém pensaria estar justificado em buscar o próprio prazer e evitar o próprio sofrimento. O que fiz, para explicar esse erro, foi apelar à regra de tratar casos relevantemente similares de maneira similar. Não faz sentido dizer que algo (no caso o sofrimento e a felicidade) não funciona como justificativa em um caso, e em outro caso, dizer que funciona. E, mesmo que alguém dissesse que não funciona nos dois casos (na busca do próprio bem e do bem dos outros), a menos que a pessoa sugerisse algum argumento que demonstrasse que o sofrimento e a felicidade não possuem valor em si (negativo e positivo, respectivamente), a pessoa em questão seria culpada de irracionalidade, como vimos anteriormente. Assim como o raciocínio prudencial parte da constatação que cada um dos instantes no quadro geral da vida de alguém não possui um status especial, o raciocínio ético parte da constatação de que cada um dos indivíduos não possui um status especial. O raciocínio prudencial depende da percepção de alguém como existindo ao longo do tempo; o raciocínio ético depende da percepção de alguém como existindo entre outros. Como vimos, a única maneira de justificar que o meu sofrimento/felicidade são razões para buscar o meu próprio bem, ao mesmo tempo que o sofrimento/felicidade dos outros não são razões para buscar o bem deles, seria apontar uma diferença moralmente relevante entre os dois tipos de casos. Essa diferença teria que mostrar que, apesar dessa característica comum (que é moralmente relevante; como vimos, não existem razões para duvidar de que o sofrimento é intrinsecamente ruim e a felicidade intrinsecamente boa), devemos, contudo, tratá-los de maneira diferente devido à outra característica moralmente relevante mais forte que anule a primeira.

Qualquer tentativa nesse sentido (de provar que somente o meu bem é que importa) teria que apelar a uma característica que possuo, para fundar a “diferença moralmente relevante”. Afinal de contas, seria circular responder que “somente o meu bem deve ser considerado porque eu sou eu”. Isso é óbvio, mas também é irrelevante. O que se quer saber é “o que há em determinado indivíduo que o torna mais especial?”. A única maneira de tentar algo nesse sentido seria apontar para uma característica que esse alguém possui, que não o fato de ele ser ele mesmo. Contudo, isso gera um problema, se o que se pretende é justificar o egoísmo. Como vimos, a principal característica da razão é sua generalidade. Quando apontamos uma característica que justifica um caso, automaticamente apontamos que a mesma característica justifica outros casos que a apresentem. Assim, por exemplo, se alguém aponta “eu sou mais especial porque todos os outros dependem de mim”, não oferece um argumento a favor do egoísmo. A regra geral a que apela é “é mais especial aquele do qual todos os outros dependem”. Ou seja, tal proponente teria que admitir que, se não fosse ele que ocupasse essa posição, mas qualquer outro, somente esse outro deveria ser considerado. A generalidade das razões gera um problema para a defesa desse tipo de egoísmo, pois toda característica que se aponte (com exceção de que “eu sou eu”, que, como vimos, é circular), cairá no mesmo tipo de impessoalidade, não fornecendo assim, razão alguma a favor do egoísmo.

Outra tentativa de justificar o egoísmo toma uma forma que chamo “universalizada” (em contraste à tentativa anterior, que chamo de egoísmo individual): ao invés de se tentar provar que um indivíduo específico é o único que tem valor (que todos deveriam considerar), tenta-se sugerir que cada um considere apenas o seu próprio bem (que cada um pense que é mais especial que os outros). Esse argumento também não funciona como justificativa. Como vimos, uma justificativa precisa ser racional. Faria sentido cada um considerar apenas si próprio somente se fosse razoável acreditar que cada um de nós é mais especial que os outros. Mas, é exatamente isso que é impossível de ser verdade: “cada um de nós individualmente” não pode ser mais especial que “cada um de nós individualmente” (se um é mais especial, é porque outros não o são). Isso mostra o seguinte: a possibilidade de se universalizar uma prescrição (no caso, “que cada um considere apenas os seus interesses”) não indica que tal prescrição seja racional. Nesse ponto, o egoísta poderia objetar, dizendo que não está a propor que cada um seja mais especial que todos os outros objetivamente (o que, como vimos, é impossível), mas, mais especial “para si”. O problema com essa tentativa é que ela é apenas uma outra forma de expressar a anterior. O que se quer dizer com “eu sou mais especial para mim”, ou “para mim, eu sou mais especial” ou “ele é mais especial para ele”, ou ainda “para ele, ele é mais especial” parecem coisas diferentes, mas, para fazerem sentido, dependem todas da validade de: “na minha opinião eu sou mais especial (objetivamente)” e “na opinião dele, ele é mais especial (objetivamente)”. Ambas as crenças não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo (se um for mais especial, o outro não é). É por isso que afirmar que todos são mais especiais do que todos é uma irracionalidade, e o egoísmo não se justifica, mesmo na forma universalizada[6].

A terceira tentativa de justificar o egoísmo é apontar que a diferença moralmente relevante entre um caso e outro é a motivação. O egoísta afirma que, em relação ao seu próprio bem, sente-se motivado a fomentá-lo; já com relação ao bem dos outros, não se sente. É isso, no entender do egoísta, que justifica que ele considere apenas o seu próprio bem. O problema com esse argumento é que, para essa motivação ser uma diferença moralmente relevante, ela precisa ser racional. Ou seja, precisa haver uma razão (geral) que sustente que é adequado que ele se sinta motivado a fomentar apenas o seu próprio bem. Que razões poderiam ser endereçadas quando a esse ponto? Apenas as razões oferecidas anteriormente pelas defesas do egoísmo individual e do egoísmo universal. Como vimos, tais argumentos são péssimos (um é auto-refutante e o outro é culpado de irracionalidade). Então, o agente em questão não tem razões que sustentem a motivação exclusiva que tem, de fomentar apenas o seu próprio bem. Sua motivação deveria ser outra. O principal erro dessa tentativa de justificar o egoísmo consiste em confundir “o que quero fazer” com “o que devo fazer[7]”. O que se quer saber é “tenho justificativa para fazer somente o que me sinto motivado a fazer?”,  ou ainda, “tenho razões para me sentir motivado apenas dessa maneira?”. Responder que “sim, porque é somente isso que me sinto motivado a fazer” é circular.

A partir do que foi exposto acima, temos então, boas razões para rejeitar o egoísmo. Essa rejeição envolve reconhecer um dos pilares centrais da ética: a imparcialidade. A imparcialidade é a noção de que cada um dos indivíduos a quem devemos considerar moralmente possui igual valor – ou seja, o de que o bem de cada um importa em igual medida; ninguém possui um status especial por ser o indivíduo que é. Assim como o raciocínio prudencial surge do reconhecimento de que um estágio particular da vida de um indivíduo não possui status especial (ele é apenas mais um entre outros), o raciocínio ético surge do reconhecimento de que nenhum indivíduo particular possui um status especial (cada um é apenas mais um entre outros). A noção de imparcialidade não deve ser confundida com a idéia de que devemos dar tratamento igual aos atingidos pela decisão. O ideal de igual consideração, na maioria das vezes, irá requerer tratamento diferente[8]. Isso se dá porque geralmente os indivíduos se encontram em níveis diferentes de sofrimento/felicidade: alguns estão muito bem, outros estão vivendo um verdadeiro inferno. O reconhecimento de que o sofrimento é intrinsecamente ruim e a felicidade é intrinsecamente boa, juntamente com o reconhecimento de que ninguém está intitulado a um status especial conduz à conclusão de que, quanto pior alguém está, maior deve ser a prioridade de seu atendimento (em termos de elevar o seu nível de bem-estar). Note que isso não significa dizer que os indivíduos que se encontram na pior situação possuem um status especial:  se fossem outros indivíduos ocupando a pior situação, a prioridade deveria ser deles (essa é a essência da idéia de imparcialidade: que as razões morais sejam impessoais). A meta é que os bens (no caso, o bem da felicidade) sejam distribuídos de maneira eqüitativa: ou seja, dar mais a quem tem menos, e menos a quem tem mais, até que os resultados finais sejam igualitários. Contudo, a meta não é apenas essa, pois, se fosse, então uma situação seria automaticamente boa, desde que os níveis de bem-estar fossem igualitários, mesmo que todos estivessem numa situação igualmente ruim. A meta não é apenas atingir uma situação igualitária de bem-estar entre os indivíduos: é também que esse bem-estar individual seja o maior possível. Essa posição também surge do reconhecimento de que o sofrimento possui valor intrínseco negativo, e a felicidade valor intrínseco positivo. Então, faz sentido pensar que, quanto mais felicidade melhor, e quanto menos sofrimento melhor. Note que isso não é dizer que, desde que uma decisão maximize a felicidade e diminua o sofrimento, então que ela é moralmente correta. Como vimos, a maneira como uns indivíduos estão, comparativamente a outros (e também comparativamente ao que poderiam estar) é importante. Essa última consideração vêm do reconhecimento de que nenhum indivíduo têm um status especial.

Na explicação acima, parti da idéia de que, dos indivíduos a quem devemos considerar moralmente, nenhum possui status especial. Agora temos de perguntar: “a quem devemos considerar moralmente?”. Ou seja: “qual a característica moralmente relevante para se saber quem deve ser moralmente considerado?”. Que característica é necessária que apresente determinada entidade para que seja um dever moral levá-lo em consideração, respeitá-lo? 

Uma resposta bastante comum a essa pergunta é dizer: “devemos respeitar todos os seres humanos”. Freqüentemente, os que se dizem defensores da igualdade se posicionam contrariamente ao racismo e ao sexismo, elegendo como critério de consideração moral o pertencimento à espécie Homo sapiens (“somos todos humanos”, é o lema freqüentemente pronunciado por tais defensores”). Na seqüência, explicarei por que esse critério (o especismo) é igualmente ruim, enquanto critério de consideração moral, em comparação ao racismo e ao sexismo. Todos esses critérios se baseiam em características moralmente irrelevantes.

Para conseguirmos saber o que é relevante para respeitar alguém, temos de perguntar, em primeiro lugar: “por que alguém precisaria de respeito?”.  Uma maneira de chegar até à resposta é imaginar uma situação onde não faria sentido prático o dever de respeitar alguém. Do que dependeria essa situação? Por exemplo, imagine que existam seres que são invulneráveis. Por invulneráveis, eu quero dizer que é impossível prejudicá-los, seja lá de que maneira. Seja lá o que for que tentemos com nossas decisões, é impossível causar um sofrimento sequer (físico ou psicológico) aos seres do exemplo fictício. Também é impossível diminuir-lhes a felicidade que lhes aguarda: toda e qualquer decisão nossa não conseguirá alterar a quantidade de felicidade que eles têm a desfrutar pela frente. Imagine também que esses seres nunca podem ser enganados: eles nunca acreditariam numa mentira; então, não poderiam ser prejudicados desta maneira. E, de nenhuma outra; seja lá o que for que tentássemos fazer. Num caso como esse, falar que temos o dever de respeitar tais seres não teria nenhuma utilidade prática, pois, seja lá o que for que fizéssemos, não seria possível alterar o seu bem individual, nem para mais, nem para menos. Esse exemplo fictício é importante para encontrarmos aquilo que é relevante para saber se alguém deve ser considerado moralmente: alguém precisa ser respeitado porque é vulnerável (o seu bem-estar pode ser alterado para melhor ou para pior) às nossas decisões práticas (sejam essas decisões ações ou omissões, haja vista que ambos os tipos de movimento implicam em alteração do bem-estar).

Das considerações abaixo, vimos que, da parte de quem toma a decisão, existem duas maneiras básicas pelas quais é possível um indivíduo ser prejudicado: ou prejudicamos um indivíduo diminuindo ou cessando (ou, permitindo que algo ou alguém diminua) o seu nível de bem-estar (incluindo o bem-estar a ser desfrutado no futuro), ou prejudicamos não aumentando (ou, permitindo que algo ou alguém não aumente) o seu nível de bem-estar (incluindo o bem-estar a ser desfrutado no futuro). Da parte do indivíduo a ser considerado, existem duas maneiras básicas nas quais é possível de ele ser prejudicado: por inflição de sensação ruim (sofrimento físico ou psicológico) ou por privação de satisfação (impedimento do prazer e da felicidade, por exemplo[9]). O primeiro tipo de dano explica onde está a razão principal para ser um erro moral causar (por ação ou omissão) sofrimento. O segundo tipo de dano explica onde está a razão principal para ser um erro moral (por ação ou omissão) assassinar (o indivíduo é privado de todo e qualquer desfrute no futuro). 

São essas razões que tornam errado desrespeitar seres humanos. E, ao mesmo tempo, são essas razões que explicam o que há de errado com o racismo e o sexismo: a raça e o gênero de alguém são características moralmente irrelevantes para saber quem deve ser respeitado porque são características que não têm influência alguma nas possibilidades de alguém ser prejudicado por inflição ou privação. O problema, para os especistas, é que o fato de alguém pertencer a uma determinada espécie biológica (no caso, à espécie Homo sapiens) também é uma característica igualmente irrelevante com relação às mesmas possibilidades de prejuízo. O motivo pelo qual é errado torturar um bebê humano não é que ele é um ser humano. O motivo é que ele é possível prejudicá-lo por inflição de sofrimento. Os motivos que tornam errado assassinar esse bebê também não tem a ver com o fato de ele ser humano. O motivo principal é que ele será impedido de todo e qualquer desfrute no futuro (será prejudicado, ainda que não tenha consciência do prejuízo, pois estará morto). Qual a característica moralmente relevante, então, que um indivíduo tem que apresentar, para ser considerado moralmente? Já que a idéia de respeito só faz sentido onde há vulnerabilidade, e já que a vulnerabilidade depende de alguém poder ser prejudicado (por inflição de sensação ruim ou privação de sensação boa), a única característica que faz sentido exigir é que o ser em questão seja capaz de sensações (sofrer e desfrutar),  ou seja, que seja senciente. Note que essas características dão iguais razões para se concluir que é igualmente errado prejudicar (por inflição ou privação) todo e qualquer ser senciente, independentemente de espécie, e não apenas humanos. Isso mostra que eleger como critério de consideração moral o pertencimento à espécie humana é se basear num critério tão moralmente imbecil quanto a raça, gênero ou número de letras no nome de alguém: nenhuma dessas características influi na possibilidade de alguém ser prejudicado. É por isso que especismo, racismo e sexismo são moralmente injustificáveis. A senciência não é mais um critério arbitrário como os mencionados acima, pois influi diretamente na possibilidade de alguém ser prejudicado por inflição ou privação – por isso, é uma característica moralmente relevante para saber quem merece consideração moral[10]. As considerações acima mostram que temos não apenas fortes razões para considerar moralmente os seres sencientes de outras espécies, mas que temos também fortes razões para dá-los igual consideração (ou seja, não atribuir um status especial a membros da espécie humana).

Tendo entendido que o critério da espécie é tão arbitrário quanto o da raça, gênero ou número de letras no nome, alguns defensores da idéia de que os seres sencientes de outras espécies não merecem igual consideração apontam para uma objeção. Alegam que não estão a dizer que deve-se respeitar apenas os seres humanos porque estes pertencem à espécie humana (o que seria um argumento circular), mas sim, devido a uma característica moralmente relevante que apenas os humanos possuem: são dotados de razão. “Somos todos racionais”, é o slogan dessa tentativa de defender a igualdade somente entre humanos. Eu poderia apontar aqui que tal argumento não serviria nem para defender a superioridade humana, porque é falso que todos os humanos sejam dotados de razão. Afinal de contas, os bebês, os idosos senis e portadores de determinadas doenças mentais são muito menos racionais do que qualquer cão normal, por exemplo. Contudo, se eu respondesse ao argumento dessa maneira, não poderia me opor a alguém que defendesse a igualdade apenas entre seres racionais (digamos, se esse alguém resolvesse excluir da consideração os humanos destituídos de razão e os seres sencientes de outras espécies). Então, essa resposta não explica o que há de errado com o critério da posse da razão, enquanto critério para saber quem merece respeito.

O que explica o que há de errado com o esse critério é o seguinte: ele reside numa confusão entre o que é relevante para saber quem merece respeito (a possibilidade de ser prejudicado, que, como vimos, depende da senciência) com o que é relevante para saber quem tem o dever de respeitar os outros (a posse da razão). A posse da razão é um critério relevante para saber quem tem o dever de respeitar os outros porque não faz sentido responsabilizar alguém pelas escolhas que faz se esse alguém não consegue raciocinar sobre essas escolhas. É por esse motivo que não faz sentido responsabilizar crianças muito pequenas, bebês, idosos senis, portadores de determinadas doenças mentais e seres sencientes não humanos, por exemplo. Mas, com relação ao que é relevante para se saber se alguém deve ser respeitado (a possibilidade de alguém ser prejudicado), a posse da razão não é necessária. É possível alguém ser prejudicado, por inflição de sensação ruim ou privação de desfrute sem ser capaz de raciocinar. Aliás, geralmente se dá o contrário: quanto menos capaz de razão alguém é, maior sua vulnerabilidade (porque não sabe defender seus direitos sozinho, por exemplo), então, a conclusão que deveria se seguir disso é que precisa de uma proteção ainda maior, e não, que podemos fazer com eles o que bem entendermos. É por esse motivo que se oferece maior proteção aos bebês do que aos adultos, por exemplo. Só que, se reconhecemos isso, temos de reconhecer o mesmo no caso dos seres sencientes de outras espécies: o fato de serem menos racionais do que nós (que os impede de reivindicar seus direitos) é uma razão para dar-lhes maior proteção, devido à sua maior vulnerabilidade.

As considerações acima nos mostram que existem fortes razões para darmos igual consideração a qualquer ser senciente, independentemente da espécie, raça ou gênero que ele pertence. Vimos também que a maior vulnerabilidade dos seres sencientes que possuem menor capacidade racional é uma razão para lhes oferecer maior proteção. Antes disso, vimos também que a igual consideração requer que se dê prioridade aos indivíduos que estão na pior situação, comparativamente a outros. Quanto maior o número de indivíduos em um nível de bem-estar muito ruim uma situação apresenta, maior a urgência moral em acabar com essa situação[11]. Essas considerações apontam que a situação na qual passam agora os seres sencientes de outras espécies deveria ser vista como prioritária[12]. Essa conclusão está de acordo com a exigência de imparcialidade: se fossem outros indivíduos no lugar desses indivíduos, a prioridade deveria ser deles. Quem sabe o que eles passam nas granjas industriais, na produção de ovos, leite e carne, ou nos outros setores nos quais são utilizados (são mutilados, queimados vivos, não podem se mover, tem os ossos quebrados, etc.), além do fato de todos eles serem assassinados, prontamente precisa reconhecer que eles são, de todos os indivíduos sencientes, os que estão na pior situação. Quem se libertou da ilusão proporcionada pela visão idílica da vida na natureza também reconhece que a situação na qual os seres sencientes viventes na natureza passam, devido aos próprios processos naturais, não é menos pior do que a das granjas industriais (se levarmos em conta o número de indivíduo em situação de sofrimento extremo, pode ser até pior): a maioria só tem sofrimento extremo e nada de desfrute desde o momento que nasce até o momento que morre (a maioria morre de inanição, por parasitismo, ou é predado[13]). Quem ainda não conhece essas realidades precisa conhecer. Não tenho espaço aqui para descrever detalhadamente essas realidades, mas, boas descrições detalhadas podem ser encontradas em outros artigos ou vídeos. E, para quem acredita que, no segundo tipo de caso, não temos dever de abolir tais danos, por serem danos naturais, é preciso dar uma olhada mais de perto nessa idéia, para ver se ela se sustenta após alguns minutos de análise crítica. Afinal de contas, não pensamos que é errado para nós nos medicarmos se estivermos sofrendo de um câncer, igualmente natural. Abordo essa questão mais detalhadamente em outros dois artigos[14]. O reconhecimento de que existem algumas situações piores do que outras e alguns indivíduos numa situação muito pior do que a de outros mostra que a conclusão de que “quando se escolhe uma causa para lutar, todas são igualmente válidas” é moralmente errada. O que a imparcialidade requer é que se dê prioridade a quem está na pior situação, independentemente de quem estiver nessa pior situação. Não temos apenas o dever de não contribuir com essas situações; temos o dever de erradicá-las.

Fora essas implicações, a conclusão que se segue é que, mesmo que fosse verdade que os seres sencientes de outras espécies valessem menos do que os humanos, ainda assim teríamos que mudar radicalmente nossos hábitos. Por exemplo, supondo que fosse errado causar danos aos seres sencientes de outras espécies apenas quando o interesse humano fosse fútil, ainda assim teríamos que abolir, por exemplo, o seu uso como comida. Como sabemos, a produção de ovos, leite e carnes provoca extremos de sofrimento e mortes. Como vimos, sofrimento e morte são danos graves para os seres sencientes, pois o primeiro inflige sensação muito ruim e o segundo impede totalmente o desfrute. O interesse humano em questão, que compete com esses interesses básicos (não sofrer e desfrutar) é um interesse fútil: o gosto por uma comida específica. Já que podemos viver com outro tipo de comida menos danosa (comida vegana), teríamos o dever de abolir o uso de animais como comida mesmo que estes valessem bem menos do que os humanos. Mas, a verdade, como vimos com a argumentação desenvolvida durante todo o artigo, é que temos fortes razões para acreditar que os seres sencientes de outras espécies possuem igual valor, o que gera em nós o dever moral de aumentar o seu bem-estar até que eles estejam tão bem quanto possível (e, se possível, cada vez mais). Então, as implicações de tudo isso são muito mais radicais do que abolir o seu uso enquanto recursos. Isso é só o começo, o mínimo que qualquer pessoa moralmente decente faria. A igual consideração vai muito mais longe do que isso.

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Notas:

[6] Essa argumentação contra o egoísmo pode ser encontrada mais detalhada em NAGEL, Thomas. The Possibility of Altruism. New Jersey: Princeton University Press, 1970, capítulos IX - XIV. Também pode ser encontrada em MURCHO, Desidério. Como não Compreender a Moral. In: Crítica na Rede. 01/12/2009b. Disponível em: http://criticanarede.com/html/pensamentomoral.html

[7] Essa confusão é criticada em  MURCHO, Desidério. Ética e Direitos Humanos. In: Crítica na Rede. 27/11/2009a.
Disponível em: http://criticanarede.com/html/valoresrelativos.html

[8] Cf. SINGER, Peter. Ética Prática. 3 ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo. Martins Fontes, 2002, p. 32.
 
[9] Essas duas modalidades básicas de dano são melhor desenvolvidas em REGAN, T., The Case for Animal Rights, 2nd ed, Los Angeles: University of California Press, 2004, pp. 87-103.

[10] Para uma defesa do critério da senciência, ver HORTA, Oscar. Por qué la Capacidad de Sufrir y Disfrutar es lo Importante. In: Ética Más Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos,  2009. http://masalladelaespecie.wordpress.com/2009/11/20/la-capacidad-de-sufrir-y-disfrutar/

[11] Para uma análise da questão da prioridade, ver HORTA, Oscar. Questions of Priority and Interspecies Comparisons of Happiness. In: Ética mas Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos. 2010. http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2010/05/questions_priority_interspecies.pdf.; Id. Igualitarismo, igualatión a la baja, antropocentrismo y valor de la vida. In: Revista de Filosofía da Universidad Complutense de Madrid. Vol. 35 Núm. 1 (2010), pp. 133-152, ISSN: 0034-8244.

[12] Os dados da FAO (2010) apontam que entre 55.000 e 60.000 milhões de mamíferos e aves são mortos por ano mundialmente. Cf. FAO – Food and Agriculture Organization of the United Nations (2010): “Livestock Primary”, FAO Statistical Database, http://faostat.fao.org/site/569/default.aspx#ancor [visitado o 26 de outubro de 2010]. Nesse tipo de cálculo, não é computado o número de peixes, que são a imensa maioria dos animais mortos por humanos. Segundo Mood e Brooke (p. 9), o número de peixes capturados poderia oscilar entre 0,97 e 2,74 trilhões. Cf. Mood, Alison e Brooke, Phil (2010): “Estimating the Number of Fish Caught in Global Fishing Each Year”, Fishcount.org.uk, http://www.fishcount.org.uk/published/std/fishcountstudy.pdf [visitado o 18 de outubro de 2010].

[13] Para um crítica à visão idílica da natureza, ver HORTA, Oscar. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. In: Télos, vol. 17, 2010, 73–88, Allan Dawrst nos lembra que o número de animais utilizados por humanos some frente ao número de animais padecendo de danos naturais. Cf. DAWRST, Alan, “How Many Animals are There?”, Essays on Reducing Suffering, 2009a; Id, “The predominance of wild-animal suffering over happiness: An open problem”. Essays on Reducing Suffering, 2009b, http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf.

[14] Cf. CUNHA. Luciano C., O Princípio da Beneficência e os Animais Não Humanos: Uma Discussão Sobre o Problema da Predação e Outros Danos Naturais. In: Agora: Papeles de Filosofia, Vol. 30, N. 2, 2001. ISSN 0211-6642. Cf. CUNHA, Luciano C., Sobre Danos Naturais. In: Ética mas Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos, 2011. http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf







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