quarta-feira, 19 de dezembro de 2012


Parte 10 – Confusão entre igualdade senciente e ambientalismo

#185 – O erro em se pensar que rejeitar o especismo implica em aceitar o ambientalismo

Por fim, Nigro confunde a proposta dos que defendem a igual consideração entre os seres sencientes com a proposta da ecologia profunda. Nigro escreve:

“Não é possível da defesa da valorização de cada pessoa humana, única e especial, derivar para a homofobia, o machismo e o racismo. Mas deriva mesmo para o especismo porque todas as pessoas são muito mais importantes do que os indivíduos das outras espécies - não tente concluir desta frase que eu defendo a extinção de todas as espécies. [...] O indivíduo necessariamente desaparece por trás da animalidade e da coletividade. O que resta é o discurso ecológico, o endeusamento da Terra e da sociedade. São conseqüências dessa dissolução do indivíduo como alguém único e especial: o totalitarismo, o eugenismo, o infanticídio e, em breve, manipulações genéticas e clonagem”.

#186 – Especismo, racismo e sexismo são injustificáveis devido à mesma razão

Com relação à primeira parte do comentário, Nigro, mais uma vez, parece não ter percebido o que os filósofos defensores da igual consideração estão a denunciar: que a espécie biológica é um critério tão moralmente arbitrário e moralmente irrelevante quanto são a raça, gênero ou opção sexual. Como a discussão desse argumento já aparece detalhadamente em partes anteriores do artigo (#3 até #28), me limitarei à segunda.

#187 – Ambigüidade com o termo eugenia

O primeiro problema é que novamente Nigro coloca sob o mesmo grupo questões morais totalmente distintas: totalitarismo, eugenismo, infanticídio, manipulações genéticas e clonagem. Não é objetivo do presente artigo discutir a moralidade de cada uma dessas questões. Na sessão anterior (#177 até #180), falei algo sobre o que torna o infanticídio uma questão moral, e em que condições ele é justificável e em que condições não é. Quanto às outras questões, me limitarei a apontar que o debate contemporâneo sobre eugenia, manipulações genéticas e clonagem – diferentemente do totalitarismo - em nada tem a ver com o totalitarismo e a “dissolução do indivíduo”, como Nigro aponta. O termo “eugenia” sofre do mesmo mal do termo “eutanásia” (que já foi discutido anteriormente): é associado a práticas nazistas que em nada se assemelham ao que se discute no debate contemporâneo. Enquanto que os nazistas enxergavam a “melhoria da espécie humana” como significando torná-la composta somente por indivíduos da raça ariana, o que se refere pelo termo “eugenia” no debate filosófico nada tem a ver com isso. Considere esse exemplo: supondo que se descubra, no futuro, que a causa de vários tipos de câncer e outras doenças é genética. Supondo que se descubra também que é possível eliminar essas doenças de uma vez por todas: basta uma modificação nos genes. Assim, ninguém mais nasceria vulnerável ao câncer e outras doenças. Eu não entendo como é que alguém ser invulnerável ao câncer pode significar a “dissolução do indivíduo”. Quer dizer agora que, para alguém ser um indivíduo, ele precisa ser tão vulnerável a doenças quanto a natureza o fez?

#188 – Diferença entre valor do indivíduo e qualidade da vida do indivíduo/ o defensor dos indivíduos contrário a melhorar a situação dos indivíduos

Nigro e muitas outras pessoas que se colocam a discutir questões como eutanásia e manipulações genéticas cometem uma confusão básica (devido ao preconceito que possuem): não distinguem entre o valor do indivíduo e a qualidade da vida desse indivíduo. Os nazistas também igualavam as duas coisas: pensavam que se uma raça fosse “superior” (no sentido em que tivesse mais habilidades, fosse menos vulnerável a doenças, etc.), então que os membros dessa raça também valiam mais, enquanto indivíduos. Como já discutimos anteriormente, isso é um erro moral básico: aqueles que são mais fortes e habilidosos devem ter apenas mais deveres, e não, mais direitos (muito menos o direito de desconsiderar os interesses dos mais fracos). Para a mentalidade nazista, a constatação de alguém possuir algum problema genético é uma premissa para se inferir a conclusão de que esse alguém não merece respeito. Os que se negam a reconhecer que existem problemas que são genéticos, apesar de se colocarem como defensores da igualdade, partem da mesma premissa moral errada da qual partem os nazistas: de que o fato de alguém ter um problema genético é uma razão para considerá-lo como inferior (por isso, tentam negar a constatação factual de que existem problemas genéticos). Novamente, a discordância entre essas pessoas e os nazistas não é entre princípios morais (como vimos em #158 até #168), é entre os fatos. Ambos acreditam que, se alguém tem um problema genético, então que merece ser considerado como inferior. Os nazistas, partindo dessa premissa moral errada constatam o fato de que existem sim, doenças genéticas, e inferem daí a conclusão que se segue da premissa (de que essas pessoas não merecem consideração). Os que criticam a conclusão dos nazistas, mas partem da mesma premissa moral errada, têm que negar os fatos, para não admitir que a premissa está errada (e, para não admitir a conclusão que se segue logicamente dela). Por isso, negam que existam doenças genéticas. A situação é ridícula, pois são essas pessoas que se intitulam “defensores dos indivíduos” que, por partirem dessa premissa envolta numa confusão moral sem tamanho, são contra a práticas que podem melhorar e muito a vida dos indivíduos. Por outro lado, os que são rotulados por essas pessoas de desconsiderarem o indivíduo por aprovarem determinadas manipulações genéticas, defendem tais manipulações justamente pensando em melhorar a qualidade de vida (conclusão que surge da aceitação de que, quanto pior é a situação de alguém, maior consideração ela precisa) dos indivíduos atingidos pela decisão. É ridículo ver alguém que se intitula “defensor dos indivíduos” ser contra uma modificação genética que poderá curar o câncer, por exemplo, ao mesmo tempo que é a favor de matar animais não humanos sencientes (portanto, indivíduos) para qualquer fim, seja um fim importante, seja um fim banal. A situação é tão absurda, pois envolve uma confusão enorme. E dessa confusão resulta a conclusão de que, por exemplo, para dar igual consideração a alguém que não tem uma perna, tem-se que pensar que é errado lhe fornecer uma prótese; para dar igual consideração a alguém que tem neurofibromatose (a chamada “doença do homem-elefante”), então que não podemos lhe arranjar uma operação que torne menos pior sua condição, e que nem mesmo devamos procurar uma cura. Essa conclusão é imbecil. A negação em aceitar que sim, tais pessoas têm uma doença, só surge daquela premissa moral errada: de que, se alguém tiver mesmo uma doença, então que ela não merece consideração, ou que merece uma consideração menor. A conclusão moralmente correta é a contrária: quando alguém tem uma doença, ela merece prioridade; quanto pior a doença, maior a prioridade. É somente devido a existir um mundo cheio de analfabetos morais  que é possível acontecer situações ridículas como essas: defesas da igual consideração entre os indivíduos são vistas como manobras nazistas; manobras que partem da mesma premissa moral que os nazistas são colocadas como defesa da igualdade pelos próprios auto-intitulados defensores da igualdade.

#189 – Veneração pelos processos naturais: desvalorização do indivíduo

Outra possível raiz da confusão de Nigro talvez seja a veneração pelos processos naturais. Modificar aquilo que é natural (mesmo quando o que é natural resulta em algo terrível para os indivíduos, como a doença da neurofibromatose, a síndrome da dor crônica, a síndrome do pânico, a depressão e a síndrome de arlequim, por exemplo) é, para essas pessoas, ser arrogante e “brincar de deus”. É claro, essas mesmas pessoas buscam tratamento quando ficam doentes. Mas, como mencionei anteriormente, o fato de elas serem hipócritas não prova que elas estão erradas. O que prova que elas estão erradas é outra coisa, que pretendo discutir agora. Dessa discussão, podemos entender melhor por que a comparação entre os defensores da igualdade senciente (centrada nos indivíduos) e o ambientalismo holista, tal como presente na ecologia profunda [13] (centrado na desvalorização dos indivíduos e na valorização do todo) é, além de errada, espantosa: uma corrente é o oposto da outra, em termos éticos. Dessa discussão, gostaria de mostrar que é o pensamento de Nigro (ainda que o autor não perceba e não tenha má intenção), de ser contra modificar a natureza mesmo quando isso for altamente benéfico para os indivíduos (e altamente prejudicial caso não o fizermos) que têm semelhanças com a postura presente nos regimes totalitários e no ambientalismo holista: a desvalorização do indivíduo.

#190 – Diferença básica entre igualdade senciente e ambientalismo holista quanto ao que possui valor em si e valor instrumental

Comecemos por notar que, se alguém é contra modificar um processo natural, mesmo que esse processo natural seja um inferno para os indivíduos atingidos por ele, então é porque esse alguém acredita que tais processos possuem valor moral (ou seja, que devam ser objeto do respeito). De outra forma, não faria sentido pensar que é errado modificar tais processos. E mais, alguém que pensa assim precisa acreditar que o valor moral de tais processos não é pequeno: é grande a ponto de anular o valor dos indivíduos. Reconhecer o valor dos indivíduos, pelo contrário, nos conduz à conclusão de que temos de aliviar o seu sofrimento, garantir que ele não sofra dano por privação, aumentar o seu desfrute, etc. Mencionei a veneração pelos processos naturais com vistas a agrupar essa visão e outras semelhantes de um lado, e a visão do respeito pelos indivíduos de outro. Outra visão semelhante à veneração pelos processos naturais (e que surge dela) é a visão do ambientalismo holista. No ambientalismo holista (tal como presente, por exemplo, na ecologia profunda), entidades como ecossistemas, espécies, a Terra, enfim, “o todo” têm valor. E, nessa visão, o valor dessas entidades é alto: não apenas supera o valor dos indivíduos em caso de conflitos de decisão para sabermos quem devemos preservar, como também os indivíduos só possuem valor à medida que forem instrumentos para manutenção do valor dessas entidades. É por esse motivo que se diz que, em visões totalitaristas (ou seja, que vêem valor apenas no todo, como por exemplo, a ecologia profunda), os indivíduos possuem valor instrumental. Nesse tipo de visão, o “todo”; seja esse “todo” um ecossistema particular, a Terra inteira, as espécies (não os indivíduos membros das espécies) ou os processos naturais em geral; é que possui valor em si. Já a visão que defende igual consideração para todos os seres sencientes é centrada no oposto: o “todo” (os processos naturais, os ecossistemas, a Terra inteira) possui valor instrumental para os indivíduos sencientes (e apenas quando tais coisas beneficiam os seres sencientes); já os seres sencientes possuem valor em si.

#191 – Pensar que igualar animais humanos e não humanos terminará no ambientalismo só pode vir da própria visão ambientalista da negação do valor do indivíduo quanto a animais não humanos

Estando claro agora que as duas visões são opostas, é possível perceber a enorme confusão que Nigro fez. A defesa da igual consideração para todos os seres sencientes jamais terminará num raciocínio do tipo do ambientalismo holista. Defender que todo ser senciente merece igual consideração é se basear no valor do indivíduo. É defender que cada indivíduo senciente merece estar o melhor que for possível. O detalhe curioso é que, se Nigro conclui da defesa da igual consideração para todos os seres sencientes, que o “indivíduo necessariamente desaparece por trás da animalidade e da coletividade [...] o que resta é o discurso ecológico, o endeusamento da Terra e da sociedade” é porque se baseia na mesma visão ecológica que está a criticar: que os animais não humanos só tem valor instrumental (enquanto membros de espécies, ou partes de um ecossistema, ou quanto à sua utilidade para humanos, etc.). É por esse motivo que Nigro teme que se iguale animais não humanos a animais humanos em termos de status moral: ele pensa que, então, todos possuirão apenas valor instrumental para a manutenção do todo (mas, ele só pensa assim porque assume que o valor dos animais não humanos é instrumental). É só por desvalorizar completamente os animais não humanos enquanto indivíduos que Nigro pode chegar a uma conclusão absurda como essa. Como discutimos detalhadamente na sessão anterior (#169 até #184): a proposta dos defensores dos animais é elevar o status destes enquanto indivíduos, retirá-los da categoria de coisas (sejam coisas para usar como recurso ou coisas para a manutenção da espécie, do “Todo”, do ecossistema, etc.), e não, colocar os humanos nesse mesmo tipo de categoria de coisas.

#192 – A noção de indivíduo está atrelada à noção de senciência

Infelizmente, (assim como também o fazem inclusive, por mais estranho que isso possa parecer, muitos ativistas dos direitos animais), Nigro confunde ética animal com ambientalismo. Não é possível defender a igual consideração para todos os seres sencientes e ao mesmo tempo negar o valor do indivíduo. Isso porque a noção de senciência está intimiamente atrelada à noção de indivíduo: não existe ser senciente que não seja, ao mesmo tempo, um indivíduo; e não existe indivíduo que não seja senciente. Isso porque, para alguém ser um indivíduo, precisa possuir uma mente, pois é a mente que faz a distinção entre sujeito e objeto. Para isso, é necessário a capacidade de sentir. Toda sensação precisa de um indivíduo que a sinta. É por isso que defender os seres sencientes é a mesma coisa que defender os indivíduos.

#193 – Resumo das diferenças principais entre visões centradas no indivíduo e visões totalitárias

Voltemos então à divisão que fiz anteriormente. De um lado, temos a visão da igual consideração para todos os seres sencientes, que é centrada no valor do indivíduo, e que entidades não-sencientes possuem valor instrumental para os seres sencientes (ou seja, possuem valor apenas quando beneficiarem os seres sencientes). Do outro temos visões totalitárias, dentre elas a visão da ecologia profunda: são centradas no valor do “todo” (seja esse “todo” comunidades, sociedades, espécies, a Terra, ecossistemas, etc.), e os indivíduos possuem valor instrumental (ou seja, possuem valor apenas quando beneficiarem o “todo”). Uma diferença marcante, que às vezes é perdida de vista com relação aos dois tipos de visão, é que elas podem ser resumidas numa divisão assim: (1) Seres sencientes (indivíduos) possuem valor em si; entidades não sencientes possuem valor apenas instrumental; (2) Entidades não sencientes possuem valor em si; seres sencientes (indivíduos) possuem valor apenas instrumental.

#194 - Ambientalismo coerente (não especista) e incoerente (especista): porque é injustificável seja lá de qual forma apareça

Vale a pena ressaltar, contudo, uma observação correta que está implícita no argumento de Nigro: que, para alguém ser coerente com o tipo de ambientalismo holista presente na ecologia profunda, alguém tem que rejeitar por completo o valor de seres humanos, enquanto indivíduos. Isso porque, como vimos, a visão moral embutida na ecologia profunda é que os indivíduos possuem valor apenas instrumental. Contudo, raramente encontramos uma postura ambientalista coerente. Uma das raras exceções é a visão de Penti Linkola [14] : ele rejeita o valor de quaisquer indivíduos, quer sejam humanos, quer sejam não humanos. Note que não estou a afirmar que, devido à sua visão ser coerente, então que está correta. Já expliquei anteriormente (#14 e #15) por que pensar assim é um erro: por que é possível alguém aplicar coerentemente um mau critério. Como explicarei a seguir (#197), a idéia de que indivíduos não possuem valor é um mau critério. O que é importante agora é notar que a maioria dos ambientalistas é incoerente quanto a esse ponto: eles rejeitam o valor de indivíduos apenas quando os indivíduos em questão são membros de outras espécies, e não, quando são humanos. Então, todas essas visões incoerentes de ambientalismo são necessariamente especistas, portanto injustificáveis moralmente. E são injustificáveis porque qualquer razão que explique o valor de seres humanos enquanto indivíduos explica ao mesmo tempo o valor de qualquer indivíduo nãohumano, enquanto seres sencientes. Então, seja lá qual a forma de ambientalismo (coerente ou incoerente), é injustificável: se coerente, é injustificável porque comete o erro de não reconhecer o valor de indivíduos (explicarei por que isso é um erro a seguir, em #197); se incoerente, é injustificável porque é especista.

#195 - Ética animal e ambientalismo não combinam: e os ambientalistas perceberam esse ponto

 O que é curioso em toda essa história é que é mais fácil para os especistas (do que para os defensores dos animais) perceberem que um ambientalismo coerente requer rejeitar o valor de indivíduos em geral (o que inclui rejeitar a idéia de igual consideração para qualquer ser senciente, seja humano, seja não humano), e que a aceitação do valor do indivíduo requer rejeitar o valor dos processos naturais. Aceitar a igual consideração para seres humanos, como vimos, requer aceitar a igual consideração para todo e qualquer ser senciente. Isso porque qualquer razão plausível que explique o valor de seres humanos enquanto indivíduos explica ao mesmo tempo o valor enquanto indivíduos dos demais seres sencientes. Aceitar que indivíduos possuem valor em si, por sua vez, requer a rejeição do ambientalismo (que envolve ou a visão de que indivíduos possuem apenas valor instrumental ao todo, ou então, mesmo admtindo algum valor nos indivíduos, que é sempre menor que o valor do “todo” não senciente). O próprio Callicott [15] , que é um ambientalista incoerente especista (aceita o valor dos indivíduos quando a questão são os humanos; rejeita o valor dos indivíduos quando se tratam de não humanos) percebeu uma incoerência no pensamento da maioria dos animalistas: tentar unir ética animal com ambientalismo.

#196 - Danos naturais

Como já detalhei em outros dois artigos [16], a vida que os animais levam na natureza, devido aos processos naturais mesmos (independentemente dos danos causados por humanos), é um inferno: a regra é a morte por inanição, parasitismo e predação, o que resulta que a qualidade de vida dos seres sencientes sujeitos aos processos naturais quase sempre se resume a apenas sofrimento intenso, do momento que nasce até o momento que morre (a maioria nasce apenas para morrer de inanição). Então, defender o dever de preservar os processos naturais (que, na maioria das vezes, provocam quase que uma maximização do sorfimento) é mostrar uma desconsideração total pela morte e sofrimento dos mesmos indivíduos que se diz proteger. É claro, Callicott menciona essa questão como uma tentativa de redução ao absurdo da proposta da ética animal [17]. Algo como: “vejam, se temos de considerar os animais não humanos enquanto indivíduos, temos de protegê-los da morte por inanição, parasitismo, doenças, predação, etc. – e isso é absurdo; logo, não devemos considerá-los como indivíduos”. Uma análise mais profunda, contudo, revelará que o preconceito, o absurdo, está na veneração pelos processos naturais, embutido na visão ambientalista e, infelizmente, na maioria dos que se dizem defensores dos animais. Afinal de contas, ninguém considera absurdo, uma vez tendo-se reconhecido o valor de seres humanos enquanto indivíduos, então que deve-se protegê-los do mal que sofrem por inanição, parasitismo, doenças, predação, etc. Todos esses danos são causados naturalmente, é verdade. Contudo, isso não é relevante, haja vista que se o dano é artificial ou natural não altera a característica do dano ser algo ruim, ser um prejuízo para o indivíduo. Para uma vítima, não faz diferença se ela sofrerá um sofrimento x devido a uma doença ou devido a um ataque de um humano. Se evitável, permitir que o dano aconteça ou praticá-lo ativamente são igualmente errados. Não direi mais nada sobre essa questão, no presente momento. Os que tiverem interesse no assunto ou objeções podem consultar os dois artigos mencionados.

#197 – Por que indivíduos sencientes possuem valor e por que qualquer teoria moral plausível precisa aceitar esse valor

Já argumentei anteriormente explicando por que a senciência (#17 até #22, #26, #116, #128 até #130, #168, #192) é um critério moralmente relevante. Então, devido a isso, darei como algo não controverso que seres sencientes (indivíduos) possuem valor moral. Apenas recapitulando a razão central: seres sencientes são o tipo de seres que valorizam: faz diferença para eles estar num estado ou em outro. Todo ser senciente busca o prazer e foge do sofrimento. São o tipo de ser que precisa de consideração moral porque são vulneráveis (é possível prejudicá-los, por inflição de sensação ruim ou por privação de sensação boa). Note que já somente devido a seres sencientes possuírem valor moral, a visão incorporada no ambientalismo holista se revela moralmente errada, pois ela nega o valor de seres sencientes (e, o que é pior, sem um argumento que dê base para essa negação). Se adotarmos a visão da ecologia profunda, teremos de dizer que o erro em colocar fogo em outra pessoa não tem nada a ver com o fato de ser uma experiência horrível ser queimado, mas sim, que isso pode afetar prejudicialmente (e apenas se afetar prejudicialmente) um ecossistema, por exemplo. Obviamente, há algo de muito errado nisso. A razão principal para não queimar alguém é que o sofrimento é algo ruim. Então, se quiserem manter sua posição minimamente plausível, os proponentes do ambientalismo holista precisam incorporar a premissa de que os seres sencientes têm valor. Se não se reconhece nem que seres que possuem sensações de dor e prazer precisam ser considerados, fica mais difícil ainda dizer que entidades que sequer sentem alguma coisa, sequer tem alguma experiência, sequer desejam um estado ao invés de outro, precisam. Então, mesmo se reconhecerem o valor dos seres sencientes, os proponentes do ambientalismo holista tem uma tarefa muito mais difícil. Eles têm de provar não apenas que entidades não sencientes possuem valor; tem de provar que esse valor supera o valor dos seres sencientes. Para descobrirmos qual das duas visões devemos adotar (a visão da igual consideração para os seres sencientes ou essa visão de ambientalismo holista modificada para se tornar mais plausível), as perguntas cruciais que temos de responder, então, são as seguintes: entidades não sencientes possuem valor moral? Se possuírem, qual o tamanho desse valor? Minha conclusão, como veremos na seqüência, é que não precisamos responder à segunda pergunta, porque a resposta da primeira é “não”.

#198 - Por que não funciona uma combinação de ética animal com ecologia profunda, nem mesmo se modificarmos as duas visões para atribuírem valor tanto a seres sencientes quanto a entidades não sencientes

Antes de respondermos à primeira pergunta, é importante explicar por que não funciona a tentativa de juntar as duas posições. Essas tentativas são comuns por parte de alguns ativistas dos direitos animais. Como mencionei anteriormente, as duas visões são antagônicas: uma é centrada na idéia de que seres sencientes têm valor em si, e que o valor do “todo” é meramente instrumental; a outra é centrada na idéia de que o “todo” têm valor em si, e que o valor dos seres sencientes é meramente instrumental. Vimos acima que a visão da ecologia profunda, como é colocada inicialmente, é muito pouco plausível. Isso porque, como já analisamos detalhadamente antes (#17 até #22, #26, #116, #128 até #130, #168, #192) temos boas razões para pensar que os seres sencientes possuem valor em si. Se os indivíduos que valorizam não possuírem valor, fica muito difícil explicar que qualquer outra coisa tenha valor. Então, sugeri uma modificação na visão da ecologia profunda, para torná-la menos vulnerável a essa objeção. Modificada dessa maneira, a ecologia profunda pode ser entendida assim: “seres sencientes e algumas entidades não sencientes (a Terra, as espécies, os ecossistemas, etc.) possuem valor em si, mas o valor dessas entidades não sencientes supera o valor dos seres sencientes”. O que alguns ativistas dos direitos animais sugerem é modificar, também, a visão animalista, para que se reconheça que aquelas entidades não sencientes têm valor. Se fosse modificada dessa maneira, a visão da igual consideração para os seres sencientes seria assim: “seres sencientes e algumas entidades não sencientes (a Terra, as espécies, os ecossistemas, etc.) possuem valor em si, mas o valor dos seres sencientes supera o valor das entidades não sencientes”. Olhando bem para as duas definições é que podemos entender por que a junção não funciona: elas continuam antagônicas (uma continua dizendo que os seres sencientes têm mais valor, em casos de conflito; e a outra continua dizendo o oposto). Notadamente, o tempo todo, existem casos de conflitos. Se essa junção fizesse sentido, seria necessário um terceiro critério para desempates. Mas, antes de buscarmos tal critério, é preciso fazer aquela pergunta crucial que mencionei anteriormente: “entidades não sencientes possuem valor em si?”. Se a resposta for “não”, nem precisamos buscar esse terceiro critério. Se a resposta for “sim”, além da busca por esse terceiro critério, teria-se de responder outra questão importante: “por que essas entidades não sencientes (a Terra, os processos naturais, as espécies, os ecossistemas) e não outras (objetos artificiais, por exemplo)?”. Como mencionei anteriormente, penso que não precisamos nos preocupar com nada disso, porque a resposta da primeira pergunta é “não”.

#199 – Por que entidades não sencientes não possuem valor: o experimento mental do coma total irreversível

Para responder a essa pergunta (“entidades não sencientes possuem valor em si?”), vou recorrer a um experimento mental. Imagine que você está em posição de escolher o seguinte: (1) Ou você morre agora, nesse exato instante; (2) Ou você entra em coma total agora (onde você não terá sensação alguma, nem mesmo sonhos) e fica em coma total por mais cinqüenta anos; depois de passar cinqüenta anos nessa condição, no exato instante em que se completa 50 anos do coma total, você morre. Vamos supor, para melhor entendimento do exemplo, que não há nenhuma vida após a morte. A pergunta é: faz diferença para você alguma das duas opções? Não faz. Se você escolher a opção A, você se torna um corpo não senciente agora mesmo. Se você escolher a opção B, você também se torna um corpo senciente agora mesmo. Os cinqüenta anos do coma não fazem diferença para você. Não há como dizer que você foi mais prejudicado em uma situação do que na outra. Em todas as duas situações, você foi prejudicado porque perdeu de desfrutar (você foi impedido de ter sensações), mas, foi igualmente prejudicado (pois foi impedido de ter sensações na mesma medida, já que nos cinqüenta anos do coma você também não teria nenhuma sensação). É claro, você poderia objetar: “essas duas situações são diferentes moralmente sim; em uma há a angústia da família, a outra não”. Você poderia dizer, também, ao invés: “minha família é muito religiosa, e ficaria muito abalada se soubesse que não fizeram de tudo para me manter vivo”. Você poderia dizer ainda: “eu tenho uma preferência agora pelo meu corpo continuar vivo, mesmo sem sensação alguma”. Tudo isso pode ser verdade, mas o ponto é que nada disso prova que entidades não sencientes têm valor. Isso porque todas essas alegações apelam a preferências de seres sencientes (sua família, ou as suas preferências agora, enquanto você ainda é senciente). Então, em ambas opções no exemplo, você não valorizará mais nada. Sua vida biológica que virá a seguir, se escolher o coma total, não terá valor positivo (satisfação) nem valor negativo (sofrimento): será uma vida com desvalor (valor = 0).

#200 - Como as visões biocentristas teriam de abordar o exemplo do coma total irreversível

Recordemos novamente a questão que esse exemplo visa ilustrar (a saber, se entidades não sencientes possuem valor e, se sim, qual o tamanho desse valor). Ao endereçar essa questão, é importante lembrar que o holismo (a idéia de que apenas “o todo” e não os indivíduos possuem valor, como acontece na ecologia profunda) não é a única forma de visão moral que valoriza entidades não sencientes. Outro exemplo é o biocentrismo, tal como proposto por filósofos como Paul Taylor [18] e Gary Varner [19]. O biocentrismo, assim como o holismo ambientalista, também reconhece valor em entidades não sencientes. A diferença é que, no biocentrismo, cada organismo vivo individualmente possui valor, e, possui o mesmo status moral (valor em igual medida).  Analisemos, então, no caso desse exemplo do coma total irreversível, o que nos mandaria fazer uma visão que reconhecesse igual valor para todas as coisas vivas, independentemente de serem sencientes ou não (a visão biocentrista): não só teríamos de respeitar o corpo vivo, que não é mais alguém (o “alguém” que ali estava já se foi há muito tempo), como teríamos de dizer que o respeito devido a esse corpo vivo é igual ao respeito que era devido quando havia ali um ser senciente, pois ambos podem ser igualmente prejudicados. Claramente há aí uma dificuldade, pois é difícil entender como é possível algo que não pode ter sensação alguma possa ser prejudicado, haja vista que não é possível lhe infligir sensação ruim alguma nem fazer com que ele perca de desfrutar (já que o desfrute para ele é impossível). A única maneira que se poderia dizer que um corpo vivo foi prejudicado é se fosse possível fazê-lo sair do coma e, por algum motivo, não se fizesse isso. Mas, note que o prejuízo nesse caso se torna inteligível porque ele sofre uma perda: a perda do desfrute que teria caso voltasse a ser senciente.

#201 – Como as visões ambientalistas holistas teriam de abordar o exemplo do coma total irreversível

Há ainda uma implicação ainda mais absurda, no caso das visões que afirmam que, em caso de conflito, deve-se dar prevalência às entidades não sencientes (o “todo”, a biosfera, um ecossitemas, etc.). A tentação, nesse ponto, é dizer que essas visões enxergariam o corpo vivo como merecendo mais respeito do que o ser senciente que nele habitava. Contudo, essa acusação é falsa, pois a vertente da ecologia profunda que estamos a examinar aqui não considera valor em coisas individuais (no caso, o corpo vivo individual), mas apenas ao “todo” (espécies, ecossistemas, planetas, etc.). Contudo, há um sentido em que se pode acusar uma visão assim de valorizar em maior grau um mero corpo vivo do que um indivíduo senciente: já que, em se tratando de coisas individuais (sejam seres sencientes, sejam meramente vivos, etc.) essa visão atribui apenas valor instrumental, caso aconteça de o corpo meramente vivo colaborar mais com a manutenção do “todo” do que quando era senciente, então o valor do corpo vivo, de acordo com essa visão, é maior. É importante não confundir aqui com visões que vêem na preservação do “todo” valor instrumental para outros seres sencientes (como poderia-se dizer que um corpo vivo é instrumentalmente bom para pequenos insetos ou para adubar a terra, que gerará frutos para os seres sencientes, etc.). No tipo de visão que estamos discutindo, o valor instrumental é para o “todo” (que é uma entidade não senciente), e não para os seres sencientes que vivem nele.

#202 – Por que seres sencientes são vulneráveis ao prejuízo e entidades não sencientes não são

É muito difícil entender como seria possível uma entidade não senciente ser prejudicada. Vimos que a possibilidade de se prejudicar um ser senciente se dá porque ele valoriza algo. Seres sencientes vêem valor positivo na satisfação e valor negativo no sofrimento. Se alguém lhes inflige sofrimento (agrega-se valor negativo à sua qualidade de vida, em relação ao que estava antes), ou se diminui-se sua possibilidade satisfação (coloca-se tal ser num estado de qualidade de vida de valor igual a zero) ou impede-se que a satisfação aumente (o que resulta numa qualidade de vida menor em relação ao que poderia estar), são prejudicados. É um tanto enigmático pensar como é que, na ausência de qualquer coisa semelhante (na ausência de qualquer valorização por parte do objeto que será atingido pela decisão), uma entidade não senciente (seja a Terra, os processos naturais, ecossistemas, espécies, idéias, sapatos, cartazes, etc.) podem ser prejudicados. É claro, poderíamos falar algo no sentido metafórico, para querer dizer que tais coisas foram destruídas ou “estragadas”: “o ideal da igualdade será ‘prejudicado’ se não for compartilhado”; “o sapato foi ‘prejudicado’ por ter que andar na lama”; “a espécie foi ‘prejudicada’ por ser extinta”. Em cada um desses casos, o uso é metafórico. No caso do ideal de igualdade, se ele não for propagado, quem é prejudicado são os indivíduos sencientes que estiverem na pior situação. No caso do sapato, quem foi prejudicado foi seu dono. No caso da espécie, quem foi prejudicado foram os indivíduos que morreram (isso somente se algum deles foi assassinado, e se viver era algo de valor positivo para eles, como já discutimos na questão da eutanásia, em #70 até #72 e #175 até #179).

#203 – O “bem próprio” das entidades não sencientes: uso ou metafórico, ou “sencientomórfico”

Para ser possível alguém ser prejudicado, é preciso que haja um indivíduo que valorize alguns estados e desvalorize outros. Para isso, é necessário que o ser em questão seja senciente. Uma possível objeção, quanto a esse ponto, seria alegar que uma planta, por exemplo, valoriza alguns estados em relação a outros, porque só cresce em determinadas condições (o que é comumente chamado de o seu “bem próprio”). Esse uso, contudo, também é, ou metafórico ou “sencientomórfico”. É metafórico se o uso da expressão for o mesmo quando se diz, por exemplo, “o aspirador de pó ‘quer’ sugar o pó”, para se referir ao que vai acontecer se deixarmos o aspirador nas condições de funcionamento, e não para sugerir um suposto desejo por aspirar, por parte do aspirador. Se, por outro lado, se deduz, da constatação de que existem certos processos físico-químicos que orientam o crescimento de uma planta, que então há alguém “ali dentro” valorizando, então isso é um “sencientomorfismo”.

#204 – Argumentos contra o fontismo

Se, quanto a esse ponto, alguém objetar que, no caso do aspirador alguém precisa colocá-lo em funcionamento e, no caso da planta (ou das espécies, da Terra, dos processos naturais, etc.) ela faz isso sozinha, isso não dá sustentação à conclusão de que, então esse tipo de entidade tem valor em si. Isso pelo seguinte motivo. Num caso assim, o produto das forças é similar naquilo que é moralmente relevante (ambos são não sencientes), diferindo apenas com relação aos tipos de força que os coloca em movimento (num caso, são forças naturais, no outro, são forças humanas, ou seja, artificiais), então o objeto de respeito, nesse tipo de visão, são as forças originárias, não os produtos. Nesse caso, tal argumento é culpado do preconceito que denominei “fontismo” em outro artigo [20] : algo é visto como objeto de respeito (valor em si) quando produto de forças naturais; já quando produto de forças humanas, é visto como tendo mero valor instrumental. Essa visão é problemática por três motivos principais. O primeiro, é que, para manter-se coerente, teria-se de dizer que os objetos que são produto de forças naturais possuem apenas valor instrumental para essas forças, e não valor em si (por isso tal argumento não serve para defender a existência de valor em si nesses objetos). O segundo motivo é que a eleição de qual força deve ser objeto de respeito é arbitrária: por que não o contrário? O terceiro, e principal motivo, é que, do fato de que uma coisa foi produto de decisão humana não se pode deduzir, disso, que então o produto dessa decisão possui necessariamente valor instrumental. Isso porque os humanos produzem outros seres sencientes (como quando tem filhos, por exemplo). Como já foi argumentado anteriormente (#17 até #22, #26, #116, #128 até #130, #168, #192, #197, #199, #202) seres sencientes possuem valor em si, e não valor instrumental. Alguém, nesse ponto, pode objetar que o valor do que os humanos produzem é instrumental apenas quando tal produto não for senciente. Contudo, isso é petição de princípio (assumir aquilo que o argumento pretende provar). O que o argumento pretendia era dar sustentação à conclusão de que objetos não sencientes possuem valor instrumental quando são feitos por humanos, e a razão oferecida para isso era a de que tudo o que os humanos fazem possui valor instrumental.

Portanto, temos boas razões para manter a tese de que apenas seres sencientes possuem valor. Essa tese é totalmente contrária àquela que Nigro atribui aos defensores dos animais, pois é uma tese centrada no valor dos indivíduos.

Parte 11 - Conclusões finais

#205 - Os reais motivos da sugestão do critério da posse da razão como critério de consideração moral: o especismo é um preconceito de aparências

Toda a análise que fizemos acima com relação ao especismo mostra não apenas que é um preconceito eticamente injustificável, como o racismo, nazismo, machismo, homofobia, mas também, igualmente a esses outros preconceitos, é um preconceito baseado na aparência física da vítima. Como vimos, os especistas tentam mascarar essa característica de seus preconceitos, alegando que estão a se basear em outra característica para traçar a linha divisória sobre quem merece e quem não merece consideração moral: a posse da razão. Há dois problemas fundamentais com essa tentativa: o primeiro é que, assim como raça, gênero e espécie, ela também é moralmente irrelevante para saber quem deve ter seus interesses considerados. Isso porque ela resulta, como foi apontado inúmeras vezes (#3 até #28), de uma confusão entre o critério relevante para saber quem deve ser responsabilizado pelas suas escolhas (a posse da razão) e o critério relevante para saber quem deve ser moralmente considerado (a possibilidade de alguém ser prejudicado, que depende, por sua vez, da capacidade de sofrer e desfrutar – o que implica em valorizar uns estados e desvalorizar outros - a senciência). O segundo problema é que as manobras ad hoc feitas pelos proponentes desse critério de consideração moral (a posse da razão) para incluir na comunidade moral humanos incapazes de razão indicam que a real motivação para a sugestão de tal critério revela, mesmo a despeito do que dizem, um preconceito de aparências físicas. Isso porque, na maioria das vezes (senão sempre) a sugestão de tal critério é trazida não por se pensar que o critério é relevante, mas como uma mera desculpa para se excluir os animais não humanos da consideração moral (por terem um formato de corpo diferente). Quanto a essa tentativa, podemos concluir a partir de uma das poucas afirmações isentas de erro moral que Nigro fez em seu texto: discriminar com base na cor da pele ou dos olhos – e também com base no fato de alguém ser peludo ou ter escamas, ter um rabo ou não, ter posse da razão ou não, eu acrescentaria – é, nas suas próprias palavras “coisa de imbecis”. Como todos os outros preconceitos de aparência, o especismo é igualmente imbecil.

#206 – Conseqüencias do especismo e da visão da sacralidade da vida humana

Para quem ainda não se deu conta das conseqüências terríveis do especismo, é preciso lembrar que, mesmo que fosse verdade tudo o que Nigro acusa os anti-especistas (e, como vimos, a maioria das coisas não é, e as coisas que são verdadeiras, pelas razões que apontei acima, em #169 até #184, são moralmente corretas, ao contrário do que ele pensa), ainda assim, as conseqüências do especismo são muito piores do que qualquer outra coisa que se possa apontar. É a visão especista incorporada por Nigro e pela maioria das pessoas que manda torturar e matar, a cada ano, trilhões de animais não humanos, pelos motivos mais fúteis possíveis. É esse tipo de visão que produziu algo similar, em termos do número de sofrimento e mortes, a 5000 holocaustos somente nos últimos vinte anos. São os especistas que obrigam animais não humanos a viverem uma vida inteira de sofrimento, sejam galinhas espremidas todas na mesma gaiola que as impede de se mover e tem de viver com os ossos quebrados, além de receberem hormônios e terem seu metabolismo acelerado para que coloquem ovos o dia inteiro, sejam as vacas tratadas como “máquina de leite”, que tem de passar a vida inteira sem poder se mover, sendo estuprada, engravidada e tendo que ver seus filhos serem mortos como carne de vitela; sejam os bilhões de pintinhos que não tem outra coisa senão sofrimento desde que nascem e depois são colocados na pilha de descarte da produção de ovos (existe motivo mais fútil do que esse?), sejam todos os outros animais que morrem no tanque escaldante a passam uma vida inteira de sofrimento e os trilhões de peixes que são fisgados e içados e morrem por asfixia para que os humanos possam continuar a cultivar a prática imbecil autorizada pelo seu preconceito irracional. Isso sem contar os outros males que os animais sofrem, incluindo a morte, pelos outros usos (industriais ou artesanais) que os humanos fazem, e o inferno com que são obrigados a viver, na natureza (sofrimento que poderíamos fazer muito para aliviar se não fôssemos especistas, como já discuti nos dois artigos citados em #196). É a visão especista que faz com que cachorras sejam constantemente engravidadas para que seus filhotes sejam vendidos, e depois, geralmente, abandonados para morrer nas ruas. É a visão de pessoas que acreditam na sacralidade da vida humana, e que, portanto, acreditam que jamais deve-se tirar uma vida humana, seja lá em que condição esteja essa vida, que obriga milhares de humanos a terem negado o seu direito de morrer e serem obrigados a viver em condições de sofrimento extremo e inútil. Isso os conduz a se opor a qualquer caso de eutanásia, aborto e infanticídio. É esse tipo de visão que obriga alguém, por exemplo, a viver em situações de extremo sofrimento, nenhum prazer e nenhuma chance de recuperação. É esse tipo de visão que conduz a conclusões e atitudes morais que não pode ser descrita como outra coisa a não ser uma atitude de sádicos e moralmente doentes. Infelizmente, essas atitudes são a da maioria de nós, pior ainda por ser praticada todos os dias.

#207 - O truque de retórica de argumentar contra a razão

Como vimos, temos razões de peso para rejeitar o especismo (mesmo que o anti-especismo fosse tudo de ruim que Nigro aponta, o que não é verdade). Isso porque, mesmo se o fato de darmos igual consideração a todos os seres sencientes fosse terminar em todas as conseqüências (imaginárias e altamente especulativas) que Nigro aponta, ainda assim, comparado com as conseqüências reais (e não, imaginárias) do especismo, tal situação não seria muito menos pior, pois envolveria ainda menor número de sofrimento e mortes. Nesse ponto, geralmente se começa a tentar argumentar contra a razão. Isso acontece geralmente depois de se perceber que a posição que se defende não possui boas razões a seu favor. Não penso que Nigro tentaria essa tática, pois é uma pessoa que afirma aceitar a razão. Minha crítica, nesse ponto, é a outras pessoas, que utilizam dessa tática estúpida e má intencionada. Essa é uma tática muito empregue, infelizmente. Muitas pessoas entram em um debate cheias de argumentos, acreditando que se tratam de bons argumentos. Quando se mostra, um por um, que tais argumentos estão errados, depois do nocaute do último argumento, a cartada final da pessoa é argumentar contra a razão. Infelizmente, essa tática de retórica, das mais nojentas, é muito utilizada por alguns defensores dos animais que teimam em utilizar argumentos ruins e descartar os argumentos bons. Afirma-se, comumente, por exemplo, que seguir a razão produz uma moralidade “fria”, isenta de emoções. O motivo dessa tática demasiada estúpida é que não é possível de se oferecer um argumento para se afirmar que a razão não é confiável. Isso porque, para esse argumento fazer algum sentido, a razão tem de ser confiável. Senão, nenhum argumento, incluindo o que diz que a razão nunca é confiável, faz sentido. É por isso que tentativas assim são auto-refutantes. O segundo problema com essa tática, quando utilizada como acusação de que seguir a razão produz um moralidade “fria”, isenta de emoções, é que ela resulta de uma confusão e mistura de dois âmbitos distintos da moralidade: descobrir qual a decisão correta (conteúdo da moralidade) e descobrir que sentimentos deveríamos fomentar para conseguir fazer as coisas corretas (o que estariam entre as virtudes). Com relação à primeira, o papel razão é imprescindível, pois, como já vimos anteriormente, se formos nos basear em nossas intuições, é possível que estejamos apenas reproduzindo preconceitos. Com relação à segunda, o papel da razão também é imprescindível, pois, se não soubermos a resposta para a primeira pergunta, e se não soubermos que sentimentos melhor conduzem a produzir o que foi concluído nas respostas da primeira pergunta (o que requer razão também), como encontraremos esses sentimentos então? Isso mostra que, ao contrário do que essas pessoas pensam, a razão não exclui sentimentos morais (aliás, a conclusão racional mostra que alguns sentimentos, como o da empatia, devem ser fomentados), o que ela exclui é a escravidão a sentimentos que impedem as pessoas de se livrarem de seus preconceitos (as impede de raciocinar bem). Por fim, essa tática é um truque de retórica dos mais nojentos porque seus proponentes o utilizam apenas quando percebem que seus argumentos são ruins. Isso mostra que nem seus proponentes acreditam no que estão a afirmar. Se acreditassem, começariam já por essa questão, e não, tentar argumentar em outra.

#208 - A piada do caçador

Carlos Nigro termina sua postagem em seu site, com uma piada (que está localizada em seu blog abaixo dos comentários), que é a seguinte: “Era uma vez um czar naturalista que caçava homens; quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, ficou muito espantado e achou uma barbaridade”. Como já analisamos anteriormente, já que Nigro pensa que retrata o pensamento dos defensores dos animais, isso prova que seu pensamento está envolto numa confusão gigante em pensar que o anti-especismo se assemelha em alguma coisa ao ambientalismo defendido por, por exemplo, a ecologia profunda. Se Nigro realmente comete essa confusão por ignorância dos fundamentos opostos das posições anti-especistas e ambientalistas ou se é uma tática de retórica para retratar os defensores dos animais como pessoas anti-humanos só ele pode saber (acredito, pessoalmente, que o autor tenha boa motivação e só tenha se confundido quanto aos fundamentos dessas posições). Tomo a liberdade aqui de fazer uma versão da piada, cujo protagonista é um especista (que infelizmente, são a maioria dos humanos): “existia alguém que já aceitava que considerar alguém não digno de respeito com base na cor da pele ou a cor dos olhos desse alguém era coisa de imbecis. Ele já percebia que a cor da pele ou dos olhos não influenciava naquilo que era relevante para saber se alguém deveria ser respeitado: a possibilidade desse alguém ser prejudicado por inflição de sofrimento ou pela perda do desfrute. Quando lhe contaram que considerar alguém não digno de respeito com base na espécie biológica ou na posse da razão desse alguém era uma coisa igualmente imbecil (já que também não influencia naquilo que é relevante), ele ficou espantado e achou uma barbaridade”.
Espero, sinceramente, que o Dr. Carlos Nigro, como pessoa racional e defensor do princípio ético da igualdade que se mostrou, reconheça que aquilo que explica o que torna os humanos dignos de igual consideração (a capacidade de sofrer e desfrutar) explica, ao mesmo tempo, por que todo e qualquer ser com a capacidade de sofrer e desfrutar, independentemente de espécie biológica, é digno de igual consideração moral. E, que seja muito bem-vindo como novo defensor da igual consideração para todos os seres sencientes.

Notas:


[13] Tenho aqui em mente as visões de CALLICOTT, J. Baird, “Animal Liberation and Environmental Ethics: Back Together Again”, en Eugene C. Hargrove (ed.), The Animal Rights/Environmental Ethics Debate: The Environmental Perspective (Albany: State University of New York Press, 1992), pp. 249-261; CALLICOTT, J. B. 1989. In defense of the land ethic: Essays in environmental philosophy. Albany: State University of New York; Hargrove, E. 1992. Foundations of wildlife protection attitudes. In: The Animal Rights/Environmental Ethics Debate: The Environmental Perspective, 151–183, ed. E. C. Hargrove, Albany: State University of New York.; LEOPOLD, A., A Sand County Almanac, New York: Oxford University Press, 1987; LINKOLA, P., Can life prevail?: A radical approach to the environmental crisis. London: Integral Tradition Publishing, 2009; NÆSS, A. 2005. The selected works of Arne Næss. Deep ecology of wisdom, vol. X.Dordrecht: Springer. NORTON, B. G. 1987. Why preserve natural variety? Princeton: Princeton University Press.


 [14] Linkola, P., Can life prevail?: A radical approach to the environmental crisis. London: Integral Tradition Publishing, 2009.

 [15] CALLICOTT, J. B. 1989. In defense of the land ethic: Essays in environmental philosophy. Albany: State University of New York.

[16] CUNHA. Luciano C., O Princípio da Beneficência e os Animais Não Humanos: Uma Discussão Sobre o Problema da Predação e Outros Danos Naturais. In: Agora: Papeles de Filosofia, Vol. 30, N. 2, 2001. ISSN 0211-6642; CUNHA, Luciano C., Sobre Danos Naturais. In: Ética mas Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos, 2011. http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf

[17] CALLICOTT, J. Baird, “Animal Liberation and Environmental Ethics: Back Together Again”, en Eugene C. Hargrove (ed.), The Animal Rights/Environmental Ethics Debate: The Environmental Perspective (Albany: State University of New York Press, 1992), pp. 249-261.

[18] TAYLOR, P., Respect for nature, Princeton: Princeton University Press, 1986.

[19] VARNER, G. 2002. Biocentric individualism. In Environmental ethics: What really matters, what really works, 108–120, ed. D. Schmidtz and E. Willot. Oxford: Oxford University Press.

[20] CUNHA. Luciano C., O Princípio da Beneficência e os Animais Não Humanos: Uma Discussão Sobre o Problema da Predação e Outros Danos Naturais. In: Agora: Papeles de Filosofia, Vol. 30, N. 2



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